quarta-feira, 17 de maio de 2023

A traição

 

Chegou a noite do jantar. O amigo tocou à campainha já com meia hora de atraso. Fomos recebê-lo. Beijou a Anabela nas duas faces e estendeu-me a mão que apertei. Senti logo a força do aperto, mas ripostei apertando mais.
«Então, é o Mário...»
«Não, sou a rainha de Inglaterra.» Pensei.
Lembrei-me de um célebre magistrado da nossa praça.O tal Rito trazia um ramo de rosas vermelhas da cor da paixão. Meia dúzia. Nada mais nada menos.
Olhou para mim e engasgou-se mentalmente.
«Não sabia o que havia de trazer...»
Cinismo de ambos porque ela respondeu, sem se comprometer:
«Não precisavas...»
Podia ter dito:
«Obrigada.»
«Não há tempo para aperitivos. Vamos já para a mesa que o cabrito não pode esperar mais.»
«Desculpem o atraso, mas tive que ir mostrar um andar e demorou mais do que esperava.»
«Ao menos vendeste...?»
«Sim, por acaso vendi.» Disse com uma certa indiferença, como se tivesse negociado um carrinho de linhas.
«Se não se importam vou à casa de banho.»
«Já sabes onde é.» Disse ela.
Aproveitei a sua ausência para comentar:
«O fulano é descarado. Rosas vermelhas. Sabes o significado?»
«É uma forma de cortesia.»
Se o meu humor não estava bem, para melhor não foi.
«Julgas que sou ingénuo?»
«É apenas um amigo...»
Raramente dava ordens, mas desta vez teve que ser.
«Quando esse gajo for embora deitas a merda das rosas fora, está bem, Anabela?»
«Malcriado!»
«Que seja.»
Entretanto ele já estava na sala de jantar.
«Sentem-se. O Rito fica na minha frente e tu à cabeceira.»
De patriarca tinha pouco. O passar do tempo tinha-me aberto os olhos. Já nada era como dantes. O carinho. A paixão. Tudo não passava de uma lenda. Lamentei o encantamento.
Mas por que carga de água ela fez tudo para me agarrar?
Sentámo-nos e ficámos em silêncio. Tive logo a impressão que se defrontavam dois galos.
«Aqui está o cabrito. Espero que ainda tenha molho. A culpa é tua, Rito.» Comentou em tom irónico.
Há muito tempo que não via aquela expressão alegre no seu rosto. Ou então estava a imaginar coisas onde não as havia.

O jantar propriamente dito não teve história. Só dois pormenores quando a Anabela se ausentou duas vezes da sala . Em ambos os momentos o telemóvel do Rito vibrou dando sinal de mensagem. Limitou-se a ler e a sorrir para mim. Acompanhei o seu cinismo. Mas não podia dar um tiro no escuro.
Parece que eu e o Rito aguardávamos pela hora do jantar. Entretanto a Anabela surgiu na sala, vinda do fundo. Já na nossa frente, virou-se para ele e insistiu para que fosse tomar banho. Achei estranho. Completamente descabido.
Olhou para ela muito sério. Sem uma palavra levantou-se e seguiu-a. Subiram uma escadaria em cimento. Fiquei na expectativa. A porta ao fundo, e à direita, era envidraçada e deixava refletir as suas imagens. Já de pé, vi, através dos vidros, a Anabela virar-se para trás e dar-lhe um beijo. Aproximei-me de imediato da porta, disposto a segui-los. Havia um corredor estreito e, talvez a meio, uma porta do lado esquerdo. Talvez a porta da casa de banho. Mesmo à entrada abraçaram-se e beijaram-se. Apareci de repente e disse-lhe que já não podia negar.
«Então as rosas eram só cortesia?»
Não respondeu, limitando-se a sorrir. Agarrei-a e empurrei-a com violência contra a parede. Não se queixou. Apenas esboçou um gesto vago, como quem quisesse dizer:
«Que se lixe!»
Depois, virei-me para ele e levantei-o no ar como se fosse uma pena e atirei-o pelas escadas abaixo.
Ela foi socorrê-lo e eu... acordei!
Ontem dei com ela na cozinha agarrada ao telemóvel. Passava das onze e meia da noite e tínhamos acabado de ver uma telenovela. Levantou-se logo e eu fiquei durante dois ou três minutos sentado no sofá. Levantei-me para ir à casa de banho e deparei com o telefonema. Fiquei parado uns segundos. Ela viu-me. Falava baixo, mas ainda ouvi:
«Amanhã às onze...»
Não se justificou nem eu perguntei. Mas fui logo para o quarto e fechei a porta. Quando se deitou, chegou-se a mim e repeli-a, fingindo que estava ensonado.
Levantei-me por volta das oito horas. Fiz a barba, tomei banho e vesti-me. Ela continuava deitada, aparentemente adormecida. Tomei o café na cozinha, voltei à casa de banho para escovar os dentes, espreitei furtivamente pela porta entreaberta do quarto. Já estava levantada. Logo a seguir, saí. Tive o cuidado de não fazer barulho a fechar a porta. Mesmo assim deve ter ouvido e vi-a chegar à porta do quarto. Tinha vestido um robe vermelho (claro que já era outro) e o cinto estava desapertado. Artes que nos primeiros tempos deixavam louco e que agora já não me atraíam.
«Vais sair sem dizeres nada, amor?»
«Falsa!» pensei.«E tu quando sais, avisas. Mas não dizes onde vais...»
«Nunca perguntas. Duvidas da minha seriedade?»
Sinfonia imperfeita vinda de um violino a que lhe faltava pelo menos uma corda.
«A propósito... vais sair hoje de manhã?»
«Por acaso vou. Preciso de ir ao Colombo.»
«Boas compras.» Sorri com uma certa ironia.
E apanhei o elevador.
Seria que ia encontrar-se com ele às onze horas?
Aspirei sofregamente o ar, pois parecia que me faltava o ar. A manhã estava esplêndida, valorizada por um céu azul sem vestígio de nuvens. Não havia vento. A temperatura era agradável.
Que mais queria?
Queria o que não tinha. O tempo da paixão que não voltou. Por exemplo, naquela tarde muito azul que passeámos na praia de Tróia e eu estiquei o pé direito e o sapato de pala se libertou, ensaiando simbolicamente um voo rumo à liberdade. Mas estava a pedir muito porque o tempo não voltava atrás.
«Olha o senhor doutor!»
Virei-me. Mesmo a propósito. Era uma vizinha, mãe de um aluno do sétimo ano. Não a via há uns tempos e o filho já não era meu aluno.
«Viva, dona Clotilde. Como vão os estudos do Ricardo?»
«Felizmente vão bem. Mas ele tem saudades do senhor doutor...»
«Pois é. No secundário os professores não andam com os alunos ao colo. Até porque cresceram...»
«Pois é. E a doutora Anabela?»
«Vai andando...»
Olhou para mim com carinho e eu fiquei a pensar:
«Que vai sair dali?»
«Eu não queria meter-me. O doutor é uma pessoa de bom coração e não merece que lhe façam mal. Não posso calar-me...»
«Não mereço o quê?»
«É cá uma coisa.»
«Diga, dona Clotilde. Agora deixou-me intrigado.»
«Sobre a doutora Anabela...»
«Não tenha problemas de consciência que eu já estou por tudo.»
«Ah... afinal o senhor já sabe...»
«Afinal sei o quê?»
«Vi-a entrar com um homem para a vossa antiga casa...»
Consultei o relógio. Eram onze horas. Exatamente onze horas.
«Será que me enganei?»
Escondido entre dois carros estava numa posição privilegiada para abranger toda a área em volta de um prédio azul com sacadas largas do primeiro ao oitavo andar.
Entretanto os minutos foram passando.
«Onze e vinte. Vou esperar só mais quinze minutos...»
Quais quinze minutos? Não tinha acabado de estabelecer o limite de espera quando vi aparecer o Seat preto da Anabela que acabou por estacionar uns metros mais à frente do prédio.
«Então sempre é aqui...»
Saiu do carro e ajeitou o cabelo. Pouco depois estava em frente à porta. Olhou para a sua esquerda e depois para a direita e procurou qualquer coisa na mala.
«A gaja tem a chave!» exclamei.
Deixei que a porta da rua se abrisse e que ela entrasse e dei cinco minutos de graus de liberdade para o que desse e viesse. Só então saí do meu posto de espionagem. Sentia-me o espião que saiu do frio e se preparava para entrar num sítio que ia aquecer. Ai ia, ia! E muito!
A porta estava aberta. Sorte? Sim e não. Tinha a mola avariada. Sim, porque a porta estava aberta. Não, porque não.
Entrei e subi meia dúzia de degraus até chegar ao elevador.
«Vamos então ao segundo direito.»
Desisti do elevador. Preferi usar as escadas. Sentia-me anormalmente calmo para uma situação daquelas.
Premi o botão da campainha e aguardei. Pouco depois alguém perguntou:
«Quem é?»
«Correio» disfarcei a voz. «Tenho uma encomenda para entrega em mão...»
A porta abriu-se e vi o safado do Rito que recuou de imediato.
«Vá, pulha! Segue na minha frente!»
Nem piou. Obedeceu de imediato. Que remédio. É que tinha uma Walther de nove milímetros apontada ao seu peito.
Atravessámos um pequeno corredor e entrámos numa sala.
«Tu?!...»
«Quem querias que fosse? Fantasma é que não sou...»
Apontava a pistola ora para um ora para o outro. Mais para ela do que para ele porque não gostei de a ver com as mamas à mostra. Achei-as demasiado grandes para o meu gosto. Lamentei não ter dado conta antes. talvez tivesse havido amarração.
«Então aqui é que é o Colombo! Já está tudo visto o que tinha para ver. Não rezem porque é pecado rezarem. Encomendem antes as almas a Satanás. É mais barato. Lá não precisam de aquecimento. Especialmente tu, Anabela, que és muito friorenta!»

Mas não foi bem assim que aconteceu. Quando ele abriu a porta, não deixei que a fechasse porque pus um pé à frente, entre a ombreira e a porta. Depois, talvez com o susto, recuou e eu entrei em casa.
Sorte marreca! Ainda lhe dá uma coisa...
O homem estava apavorado. Mas, pelo sim pelo não, levei a mão direita ao bolso das calças, simulando que ia puxar de uma arma. Resultado reforçado. O homem virou-se e caminhou em frente.
«Onde está ela?»
«Eu não sei de nada! Juro que não está cá ninguém!»
«Pois não.»
Percorri as divisões da casa e não consegui descobrir a Anabela. Mas ia jurar que ela tinha entrado no apartamento. Devia haver um compartimento secreto onde se enfiou.
«Vou apertar com ele.» Disse entre dentes.
Foi então que ouvi o bater de uma porta. O Rito tinha-se esgueirado como uma enguia.
«Ainda bem. Podia ser pior se o voltasse a ver.» Disse para mim. «Mas deixa-me cá ver uma coisa...»
Abri uma porta que dava para a varanda e espreitei para a rua.
«Bem me parecia!»
Eram eles a entrar para o Seat.
Desconfiem sempre de uma mulher que toda a vida foi pobre ou remediada e que, de um momento para o outro, enriqueceu. Vão por mim.

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