Segui o conselho do Matias. Fui a Estremoz.
É ao som da música do Fernão Capelo Gaivota que começo a escrever. Nada mais apropriado que um símbolo que considero ser de liberdade. O desejo de novos rumos. Voos pelas estradas dos caminheiros do éter. que refiro nos meus poemas. Sem rumo. Sem destino. A propósito dos poemas, sou eu quem os escreve. E também pequenas prosas poéticas. Quanto ao meu amigo António, é o contista.
De súbito, volto vinte e três anos atrás e reencontro a gaivota que picava para a rebentação à procura do peixe mais aventureiro que é referido em "Os longos dias azuis". Também o sonho impossível. O desencanto. Tudo caiu por terra. Já cá não estás, estrela. Agora só vejo “Patrícias” à minha volta. São duas da tarde e estou de regresso. Chegou o tempo de recordar. Nunca te esqueci, estrela...
Antes das sete da manhã já estava já a caminho de Estremoz. Aos poucos, o dia clareava. Cumpria-se, mais depressa do que imaginava, uma das profecias da Verónica, uma vidente de Ribamar.
«Vai fazer uma viagem...»
«Eu? É muito difícil! Não gosto de fazer viagens.»
O caso da cassete suspensa era mais que evidente. Mais que um sinal, um chamamento.
Chegado a Estremoz, estacionei o carro junto ao lago do Gadanha. Se recuasse no tempo trinta anos estaria bem perto dela.
O caso da cassete suspensa era mais que evidente. Mais que um sinal, um chamamento.
Chegado a Estremoz, estacionei o carro junto ao lago do Gadanha. Se recuasse no tempo trinta anos estaria bem perto dela.
Lá estava o lago. Agora sem cisnes. E a antiga casa da Manuela, desabitada. Não havia uma cortina, um rosto a espreitar. Apenas a verdade da manhã com o sol a brilhar num céu sem nuvens.
Dei alguns passos e enquadrei a casa no visor da máquina fotográfica. Só a casa. Quando acabei de fotografar, fiquei parado, à espera de um sinal que nunca viria. À espera de a ver sair, sorridente, a caminhar ao meu encontro.
«Demorei muito?»
Uma eternidade. Perdi-a para sempre.
O tempo continuou a correr. A fugir. Ela ficou para trás. E eu também. No momento que passava, sem tempo, não sei se era eu o ladrão do tempo, ou se ele me acolhia e deixava que mergulhasse nas suas entranhas misteriosas, alongadas.
Havia duas ou três pessoas no cemitério. Ainda era muito cedo e o calor já apertava e prometia apertar mais ao longo da tarde.
Comecei a procurar. Logo à entrada encontrei, numa sepultura, a fotografia de um primo da Manuela. Morrera, talvez em 1958, num fatídico acidente de viação.
Mais adiante, deparei com a sepultura de um familiar dela. Tinha o mesmo apelido da mãe.
Procurei por todo o lado e nada. Não descobri a sepultura da Manuela. Resolvi regressar ao portão de entrada do cemitério e fiquei aí durante uns ou dois minutos. Precisava de ganhar serenidade. Ao mesmo tempo, desesperava por não conseguir encontrar a sua sepultura, o que nada favorecia a capacidade de concentração que era bem precisa no momento. O sol estava já mais alto e o calor que sentia também não ajudava.
Que fazer então?
Desci outra vez o caminho principal, orientado para poente. Fui olhando para um e outro lado. Em vão. O desespero era cada vez maior. Apertei com força a imagem da Senhora que trouxera de Fátima.
Eis que...
Passara tão perto e não tinha visto! Estava ali, mesmo na minha frente e do lado direito da pequena rua. Emocionei-me. De seguida, senti-me culpado.
De quê?, da sua morte?
Não consegui compreender. Morreu com 32 anos. Era ainda muito nova para Deus a levar. Talvez fosse castigo por a amar tanto e não ter tido a coragem para mudar o rumo dos acontecimentos. Se a amava, estava nas minhas mãos não ter deixado que se afastasse de mim. Mas não foi isso que aconteceu.
Havia umas frases gravadas na pedra da campa. Eram palavras simples que traduziam muito amor e orgulho da mãe, dos avós e dos tios. Uma mensagem que achei bela. Cheguei-me mais perto. Uma mulher lavava uma pedra da campa a menos de cinco metros. Baixei-me, fingindo que atacava os sapatos (há muitos anos que não usava sapatos abotinados; os meus eram de pala) e pus a imagem junto à sepultura. Continuava a sentir-me culpado.
Afastei-me alguns metros e continuei, aparentemente, a ver a mulher a lavar a pedra em mármore.
O funeral tinha sido em 5 de junho, dois dias depois da sua morte física. Morte
física. Que triste ideia a minha! Ela não estava ali. Se a vida prevalecia para além da morte, ela não podia estar ali. Apenas os ossos. Os nossos que esperavam pelos vossos. Mais nada. Só a recordação e a saudade.
O funeral realizou-se dois dias depois de morrer.
Terá sido autopsiada?
De novo a sensação de culpa. Desta vez ainda mais forte. Perdi-a para sempre depois daquele incidente na casa dos meus tios. Perdi-a e nunca mais a procurei. Nem ela.
«Minha pobre estrela que já não brilhas!»
Retirei uma folha de papel do bolso do blusão. Desdobrei-a. A prova do crime, pensei. No conto, a Manuela morreu "embriagada por uma mistura de propano-butano". Um conto maldito, pensei. A seguir, rasguei a folha aos bocados, olhei em volta e deitei-os, disfarçadamente, junto a uma parede. Era a última página de “Os longos dias azuis”.
Já estava fora do cemitério. Se rasguei a última parte do conto, isso podia significar que ele não tinha chegado ainda ao fim.
Mas que fim estava à espera de ser escrito?
A Manuela existiu e existia ainda no meu subconsciente. Daí ter o sentimento de culpa enquanto ela vivesse dentro de mim.
Parei, algo intrigado. Tinha dado conta de uma coisa. Faltava um dado importante.
Voltei a entrar no cemitério. Queria ler de novo a mensagem gravada na pedra em mármore. Era isso. Primeiro, o seu nome. Maria Manuela. E depois, lia-se o seguinte: “Homenagem da mãe, avós e tios”.
Não figurava o nome do marido, porquê?
O corpo do pai, falecido quando ela tinha só quatro anos, estava sepultado junto com a filha. Morrera a 28 de setembro de 1946. Por associação lembrei-me de um outro 28 de setembro em que começámos a namorar oficialmente. O dia não fora escolhido ao acaso. Era um dia muito importante para ela. O da morte do pai.
Reparei ainda nas flores que estavam sobre uma jarra. Tinham secado há vários dias. Mas alguém lembrara-se dela.
Abandonei de vez o cemitério. Desejei ardentemente que ela se libertasse. O meu encosto. A Verónica falara de um homem que morrera num acidente ou que se suicidara, mas afinal o encosto era ela. Agora tinha a certeza.
Quando cheguei ao carro senti-me mais aliviado. Livre como a gaivota que tem todo o azul do céu para voar.
Liguei o rádio à saída de Estremoz. Os olhos humedeceram-se. Era um sentimental. Sentia-me a voar, lado a lado com a gaivota. O snack de bancos altos junto ao balcão. Os copos vazios. As chávenas vazias. Patrícia e o desencanto. Sim. A Manuela existiu. E existe ainda. Vive em comunhão com o meu espírito até um dia encontrar a paz que perdeu.
Não deixarei que parta enquanto não tiver luz.
Foi a música do Capelo Gaivota, cantada pelo Neil Diamond, que me fez humedecer os olhos. Estranha coincidência. Ou sinal de uma ligação eterna.
«Não passas de um sentimental, Mário!»
Mudei para FM. Queria ouvir a música em estereofonia. Não consegui e mudei de novo para AM. Não demorei mais que dez segundos, mas foi o tempo suficiente para perder a música.
De regresso, já depois de Setúbal, perto da portagem, recebi um novo sinal. Este bem evidente, mas de significado desconhecido. Por acaso tinha olhado o indicador de nível da gasolina e estava a “zeros”, embora tivesse atestado o depósito nas proximidades de Estremoz.
Pouco tempo depois, o ponteiro voltava à posição normal. Fiquei mais descansado depois daquele convite para parar na zona de Setúbal.
Premonição ligada a Setúbal?
O futuro diria...
Continuei a viagem de regresso. Era quase uma da tarde quando cheguei a casa. A seguir ao almoço deitei-me em cima da cama e estive a ver o álbum de fotografias do tempo da minha juventude. Mais precisamente, umas fotografias tiradas na serra de S. Mamede em que estávamos só os dois. Juntos. Muito juntos. Numa delas, olhava para a Manuela. Estava pensativa. Triste. Como triste foi sempre a expressão do seu olhar.
Tirei a fotografia da folha e virei-a. Tinha escritas as palavras: “e prometia impossíveis”.
Quem prometia impossíveis?
Pensei na palavra "premonição". Sim. Era adequada. A machadada final ocorreu quando interrompi o curso para prestar serviço militar. Primeiro no Porto. Depois em Coimbra, neste caso por mero acidente, pois houve manipulação nas colocações dos aspirantes a oficiais. De seguida, Figueira da Foz. Finalmente, Lisboa. Voltei à vida civil após mais de três anos passados em sucessivos congeladores. A minha obsessão era concluir o curso interrompido abruptamente pelo serviço militar e não a Manuela que já não estava nos meus horizontes.
A partir do rompimento com a Manuela, por causa de ciúmes que não admiti e se tornaram insuportáveis, vi-me metido numa encruzilhada de amizades e paixões, onde faltava sempre qualquer coisa. O amor verdadeiro. O tal sinal de feromonas no ar que nunca mais apareceu. Tive uma paixão “forçada” pela Simone, que foi a mulher que me desviou o destino. Fui idolatrado por uma jovem e atraente açoriana. Roubei num baile uma linda rapariga ao meu colega de quarto, mas a nossa relação nunca passou para lá da atração mútua. Quando as coisas corriam mal, a Odete era o meu lago de bonança. Quanto à relação com a minha companheira não passou de uma paixão doentia, nunca correspondida, até que a perseverança destruiu as barreiras. Optei pela paixão e a Manuela continuou esquecida. Até que um dia voltou. No estranho dia da cassete suspensa e da aposta mística que fiz no totoloto. Que mensagem?
Tenho a sua fotografia na minha frente e sinto uma grande amargura de não conseguir ser ladrão do tempo. Recuar, recuar e assim poder modificar o meu destino!
Mas entretanto aconteceu que três esferográficas apareceram no bolso do blusão e horas antes não estavam lá. Talvez para desafiar o fenómeno insólito meti duas esferográficas no bolso do blusão. Uma azul e outra preta.
No intervalo entre duas aulas lembrei-me que tinha umas fichas para entregar no Conselho Diretivo. Essas fichas estavam na pasta. Abri-a e meti-as no sítio. Fechei-a e fui para dar aulas. Num gesto automático, voltei a abrir a pasta e vi no seu interior uma esferográfica azul. Pensei logo que era uma das que estavam no bolso. Mas não. Continuavam lá as duas.
Tinha quase a certeza que não havia qualquer esferográfica na pasta!
Pus a terceira esferográfica no bolso.
Ia aparecer mais alguma?
A morte da Manuela atormenta-me. Ao fim destes anos todos! Tinha quase a certeza que não havia qualquer esferográfica na pasta!
Pus a terceira esferográfica no bolso.
Ia aparecer mais alguma?
Gravei uma cassete com música e poesias relacionadas com a Manuela. Também gravei uma prosa poética que se refere ao regresso de um espírito. Sinto, ao mesmo tempo, um grande cansaço e uma acrescida capacidade intelectual. Parece que as coisas surgem como se fossem sopradas por alguém.
Fiz uma nova descoberta para o programa de escrutínio do totoloto. Dá-me, de uma só vez, todo o escrutínio. Foram apenas cinco minutos de inspiração!
Que força superior parece querer dominar o meu cérebro?
As palavras não vão chegar para contar o que me aconteceu hoje. Começo por dizer que foi uma experiência que nunca mais esquecerei. O abrir de mais uma cortina das muitas que escondem o lado de lá, onde não posso chegar. Aí vive alguém que espera por mim há mais de vinte anos. A partir daí tempo a minha vida ficou a zeros. Tenho consciência do erro cometido e é proibido voltar atrás.Que força superior parece querer dominar o meu cérebro?
Sinto-me triste. Não é depressão. Apenas amargura. Ao mesmo tempo sou o ladrão e a vítima.
«Abstrais imenso...»
Estou de facto a abstrair, ao som da música do Fernão Capelo Gaivota. Com vontade de gritar que não sou livre.
Mas vamos ao caso...
Levantei-me cedo. Como fora combinado com a Lenita e a dona Flora, tinha por missão levar à casa da praia uma senhora chamada Ima e que morava para os lados da Estefânia.
Mal saí, começaram os contratempos. Enquanto ligava o motor do Renault, pensava no conselho que me tinham dado:
«Enquanto fores a conduzir não fales com ela sobre coisas estranhas. Pode ser perigoso...»
Podia ser perigoso, disseram. Entrava em transe, levava as mãos ao volante e íamos por uma ribanceira abaixo.
Sorri ante aquele cenário macabro. Mas que se passava com o carro? Não queria pegar. Achei estranho porque o tempo não estava húmido. Impressão minha? Pegou. Sol de pouca dura. O motor ia-se abaixo sempre que o carro parava num sinal vermelho. Ligava a ignição e lá seguia. Novo sinal vermelho, novo desligar.
Era proibido continuar?
Pensei em desistir do carro e tomar um táxi. Mas tinha que levar a dona Ima à casa da praia onde havia pessoas à espera. O carro foi andando e parando, como se forças opostas se digladiassem. Tudo normalizou quando cheguei perto da casa dela. Outras influências mais fortes, pensei. Aí, sim. O motor deixou de falhar. Estava intrigado com o fenómeno. Fenómeno?
Parecia ser.
Ela estava já preparada para sair quando toquei à campainha, pois apareceu logo no patamar. Já na rua, depois de me apresentar, contei-lhe o estranho caso do motor ir-se abaixo sempre que parava num sinal vermelho. Antes de entrarmos no carro, claro.
«Parecia que não queria vir...»
A sua reação traduziu-se num sorriso largo. Não teceu comentários.
Pouco falámos pelo caminho. Aconteceu uma coisa que não posso deixar de relatar. Numa descida perto de Montachique, começou a esticar os braços para a frente. Talvez fosse um gesto nervoso, mas não deixei de a vigiar pelo canto do olho. Julguei ver uma alteração no rosto da dona Ima. Logo de seguida, deu um arroto e voltou a esticar os braços. Comecei a ficar ansioso.
Ia agarrar no volante?
Mas eu tinha ficado calado! Que diabo! Cumpri as ordens à risca.
Procurei não perder o controlo. Ela continuava de braços esticados e voltou a arrotar. Os arrotos eram cavernosos. Vinham bem dos fundos. Nunca ouvira coisa igual!
«Eles não querem que eu diga...»
Não queriam o quê...?
E quem eram eles?
Achei por bem não perguntar. Podia arranjar um sarilho dos grandes. Nunca se sabia. Notei alteração na voz. O tom era mais grave.
Estaria mesmo na presença de uma médium?
Era a primeira vez que me via metido em assados de tal natureza. Uma médium nunca se encontrava todos os dias.
«Como?» perguntei.
Voltou-se para mim. Tinha os olhos esquisitos.
«Eles não querem que eu diga mas eu digo! Vai escrever um livro?»
Fiquei estarrecido. Esperava tudo menos aquela pergunta.
«Não. Por acaso já escrevi um livro...»
Menti e o Ildefonso que me perdoasse pela usurpação. De certeza que ele me ia perdoar. Por vezes até parecia que éramos um só.
Perdi o medo e perguntei:
«Quem são eles?»
«Não posso dizer.»
Ficámos por aqui. Era melhor dar atenção à condução na estrada, não fosse o diabo tecê-las.
Recomeçou a arrotar quando entrámos na rua onde eu morava. Ao mesmo tempo que avançávamos, ia perguntando, fazendo lembrar um cego experimentando sensações:
«É aqui?»
Frio. Tinha pressa de chegar. Pouco depois, morno. Entrámos na rua onde morava.
A minha prima Lenita, o marido e a minha irmã estavam à nossa espera. Houve uma sinfonia de arrotos pelas escadas acima. Desta vez, quente. De certeza que o prédio estava muito habitado.
«Nunca a vi assim!» disse a minha prima.
Foi com alívio que a vi entrar em casa. Que diriam os vizinhos se tivessem ouvido toda aquela flatulência cavernosa da dona Ima?
Não pude evitar um sorriso perante tais pensamentos. Mas estava um pouco preocupado. Os vizinhos podiam ter ouvido aqueles arrotos da vidente.
Almoçámos no terraço. Nada aconteceu de especial, a não ser numa altura em que alguém evocou uma tia já falecida. Foi o bastante para a dona Ima sair de si e começar a falar e a fazer gestos que logo interpretei como sendo da minha tia Clarinha. Parecia criticar a nora. Pelo menos foi a impressão de quem estava presente.
Só começou a trabalhar depois do almoço. A primeira pessoa a ser atendida foi a minha prima. Depois fui eu. Por acaso estávamos em volta de uma mesa circular de pé de galo. Só por acaso.
Ficámos frente a frente. Enquanto conversámos, não deixou de arrotar. A casa estava possuída pelos espíritos, pensei. Mas também podia ser encenação. Iria ficar atento. Tinham-me alertando para todos os truques, possíveis e impossíveis.
Mostrei-lhe várias fotografias de pessoas. Mortos misturados com vivos, para lançar a confusão. Ela usava óculos de ver ao perto, mas tinha-os em cima da mesa.
«Esta mulher desviou-lhe o destino!»
Era uma fotografia da Simone. Uma coincidência curiosa, pensei. Logo a seguir a vidente pôs-se, de seguida, a descrever uma casa que tinha uma cercadura de arbustos e mais coisas que esqueci por desinteresse. Por certo estava a improvisar. Nunca tinha visto tal casa. Bem me tinham dito para ficar atento aos truques.
«Não conheço essa casa...»
Indiferente, continuou a descrever a casa. Então a minha irmã exclamou, com convicção:
«É a casa de campo da Simone!»
A Simone foi fumo de verão na minha vida. Apareceu e desapareceu como um meteoro. Teve um grande choque quando decidi acabar o namoro e emagreceu muito. Se pequei, ela pecou mais. Esse namoro foi só um obstáculo para me afastar da Manuela. A própria vidente falou de uma rapariga (não disse mulher) loura que gostava muito de mim e que desviou o meu destino. Acabava de meter o dedo na ferida.
O tema Simone esgotou-se rapidamente. Era o momento de mostrar uma fotografia da Manuela. Parece que leu o meu pensamento. Sem qualquer hesitação, afirmou:
«Essa, sim... essa fazia-o feliz...»
Fiquei abismado. Os óculos continuavam sobre a mesa. Não havia hipótese de fraude. E mesmo que visse bem ao perto sem óculos, certamente que não conheceu a Manuela. O caso começava a tornar-se sério e tinha que rever o ceticismo com que encarara aquela reunião. Houve uma altura em que foi até ao curto corredor, onde esteve a ver um quadro com fotografias. Depois voltou à sala e, inesperadamente, caiu no sobrado. Fiquei preocupado, mas a Lenita acalmou-me logo.
«É costume cair.»
«Mas pode ter caído mal! Vamos levantar a senhora...»
Impossível. Parecia chumbo. Só conseguimos levantá-la quando pediu.
Outra vez em Estremoz...
Perdi o medo e perguntei:
«Quem são eles?»
«Não posso dizer.»
Ficámos por aqui. Era melhor dar atenção à condução na estrada, não fosse o diabo tecê-las.
Recomeçou a arrotar quando entrámos na rua onde eu morava. Ao mesmo tempo que avançávamos, ia perguntando, fazendo lembrar um cego experimentando sensações:
«É aqui?»
Frio. Tinha pressa de chegar. Pouco depois, morno. Entrámos na rua onde morava.
A minha prima Lenita, o marido e a minha irmã estavam à nossa espera. Houve uma sinfonia de arrotos pelas escadas acima. Desta vez, quente. De certeza que o prédio estava muito habitado.
«Nunca a vi assim!» disse a minha prima.
Foi com alívio que a vi entrar em casa. Que diriam os vizinhos se tivessem ouvido toda aquela flatulência cavernosa da dona Ima?
Não pude evitar um sorriso perante tais pensamentos. Mas estava um pouco preocupado. Os vizinhos podiam ter ouvido aqueles arrotos da vidente.
Almoçámos no terraço. Nada aconteceu de especial, a não ser numa altura em que alguém evocou uma tia já falecida. Foi o bastante para a dona Ima sair de si e começar a falar e a fazer gestos que logo interpretei como sendo da minha tia Clarinha. Parecia criticar a nora. Pelo menos foi a impressão de quem estava presente.
Só começou a trabalhar depois do almoço. A primeira pessoa a ser atendida foi a minha prima. Depois fui eu. Por acaso estávamos em volta de uma mesa circular de pé de galo. Só por acaso.
Ficámos frente a frente. Enquanto conversámos, não deixou de arrotar. A casa estava possuída pelos espíritos, pensei. Mas também podia ser encenação. Iria ficar atento. Tinham-me alertando para todos os truques, possíveis e impossíveis.
Mostrei-lhe várias fotografias de pessoas. Mortos misturados com vivos, para lançar a confusão. Ela usava óculos de ver ao perto, mas tinha-os em cima da mesa.
«Esta mulher desviou-lhe o destino!»
Era uma fotografia da Simone. Uma coincidência curiosa, pensei. Logo a seguir a vidente pôs-se, de seguida, a descrever uma casa que tinha uma cercadura de arbustos e mais coisas que esqueci por desinteresse. Por certo estava a improvisar. Nunca tinha visto tal casa. Bem me tinham dito para ficar atento aos truques.
«Não conheço essa casa...»
Indiferente, continuou a descrever a casa. Então a minha irmã exclamou, com convicção:
«É a casa de campo da Simone!»
A Simone foi fumo de verão na minha vida. Apareceu e desapareceu como um meteoro. Teve um grande choque quando decidi acabar o namoro e emagreceu muito. Se pequei, ela pecou mais. Esse namoro foi só um obstáculo para me afastar da Manuela. A própria vidente falou de uma rapariga (não disse mulher) loura que gostava muito de mim e que desviou o meu destino. Acabava de meter o dedo na ferida.
O tema Simone esgotou-se rapidamente. Era o momento de mostrar uma fotografia da Manuela. Parece que leu o meu pensamento. Sem qualquer hesitação, afirmou:
«Essa, sim... essa fazia-o feliz...»
Fiquei abismado. Os óculos continuavam sobre a mesa. Não havia hipótese de fraude. E mesmo que visse bem ao perto sem óculos, certamente que não conheceu a Manuela. O caso começava a tornar-se sério e tinha que rever o ceticismo com que encarara aquela reunião. Houve uma altura em que foi até ao curto corredor, onde esteve a ver um quadro com fotografias. Depois voltou à sala e, inesperadamente, caiu no sobrado. Fiquei preocupado, mas a Lenita acalmou-me logo.
«É costume cair.»
«Mas pode ter caído mal! Vamos levantar a senhora...»
Impossível. Parecia chumbo. Só conseguimos levantá-la quando pediu.
Outra vez em Estremoz...
Estou a dois passos de ti, perto da casa em ruínas. Oiço a música de Fernão Capelo Gaivota, mas são andorinhas que, às centenas, voam à volta do carro. No prédio do antigo clube há imensos ninhos. Foi aí que os nossos corpos, enquanto dançávamos boleros românticos da época, estiveram muito próximos. Os rostos tocaram-se em promessas que nunca foram cumpridas. Sonhámos um mundo diferente, só nosso. Um mundo que não passou do sonho. Mas nessa noite foi diferente. Nem a dança das vassouras nos separou. Agarraste-me obsessivamente e não deixaste que outra mulher me levasse na tal dança. Era Carnaval. No Carnaval nada parecia mal. Mas tu receavas perder-me. Afinal tanto receio para nada. O que fizeste para me reconquistares foi pouco. O mesmo aconteceu da minha parte. Ficámos empatados.
Conseguira juntar dinheiro das explicações de Matemática e Física para ir ver-te a Estremoz. Foram dias maravilhosos. Hoje tento recordar-me de pequenas passagens do pouco que ainda conservo na memória. Recordo-me apenas do dia do baile e do acordar mal disposto na manhã seguinte por ter dormido cerca de uma hora. Alugaste um dominó que não cheguei a vestir, pois ninguém do teu grupo de amigos se mascarou. Ao anoitecer foste à cabeleireira e eu fiquei ao frio, à tua espera. O tempo ia passando. O frio apertava. Mas eu já estava habituado a esperar por ti. Acontecia o mesmo em Portalegre. Danava-me por tanto esperar e só tinha vontade de explodir. Quando aparecias, muito bonita, sorridente, esquecia tudo e sorria também.
Gostavas do meu sorriso?
Nunca o disseste.
«Está frio!»
«Não, está fresco.»
«Fresco?»
Foi este curto diálogo que se repetiu muitas vezes. Tu dizias que estava frio e eu sugeria, logo de seguida, que estava fresco. E tudo acabava num sorriso que nos aquecia a alma.
Fiquei de facto ao frio. Mas não o sentia. O tempo é que custava muito a passar. Eram as saudades de não estares ao pé de mim.
Chegou a hora do baile. O contacto dos nossos corpos, do teu rosto de veludo. O apertar das nossas mãos. Foi a única noite que passámos juntos até quase ao amanhecer. Nessa noite do baile disseste-me quem era o Melícias. Um rapaz que te perseguia com insistência, que odiavas e com quem casaste quando soubeste que eu vivia com outra mulher.
Ostensivamente fomos ao bar do seu pai para ele nos ver bem. Estava a atender ao balcão.
Como tu o odiavas! Dizias que te perseguia. Achavas abominável e foste casar com o homem que mais odiavas.
E já estavam separados antes de morreres...
Deixaste filhos?
Creio que não. Na mensagem da tua campa não existe a mínima referência a filhos nem ao teu marido oficial. É um facto incontestável.
Hoje estou aqui para recordar a rapariga do vestido branco e olhar triste. Já fui ao cemitério. Pouco passava das oito. Havia malmequeres na tua campa. Deviam ter sido postos há cerca de uma semana. Senti uma forte comoção ao ler as palavras de apreço deixadas pelos familiares. Quantas saudades a tua mãe deve ter de ti! Não. Tu não desejas o meu mal. A dona Flora está errada. E sabes uma coisa? Não vim aqui como um estranho, Vim prestar homenagem ao nosso amor. Um amor não conseguido marcado para toda a vida. Alguém nos afastou. Podíamos ter sido muito felizes, amor!
Não fui bem recebido nesta cidade que te viu crescer.
Não queres que esteja cá amanhã?
As cólicas intestinais voltaram.
São sinais de repúdio?
Começaram perto de Estremoz. Tive de parar o carro na berma da estrada e acocorar-me num silvado. E foi então que vi, a pouca distância, dois polícias de trânsito. Felizmente eles não me viram nem ao carro que tinha dois pneus na estrada.
Foi na Torre que escrevemos, algures nas escadas em caracol, os nossos nomes, lembras-te?
Agora há uma pousada na zona da Torre.
Quando cheguei ao cimo, fui acometido por uma súbita dor de barriga. Correste comigo da Torre. Não aconteceu o mesmo no tempo em que éramos jovens. Aconteceu tudo menos poesia. Desci apressadamente a escada, quase chocando no escuro com uns turistas que vinham a subir. Nem me deste tempo de recordar.
Para quê mostrares tanto ódio?
Um dia, no verão, fui à boleia para Estremoz. Levei sanduíches para comer pelo caminho. Uma viagem que podia ter demorado cerca de uma hora, acabou por ser feita em cerca de três. Apanhei três boleias. Uma até Monforte. Outra até Veiros e, finalmente, a última levou-me a Estremoz. Claro que, enquanto esperava por boleia na estrada, ia comendo o meu farnel.
Arranjaste-me um quarto em casa de uns amigos. De noite, acordei com suores frios. Tinha uma enorme dor de barriga. Lembrei-me logo das sanduíches. Ou então foi do jantar. Não conhecia a casa. Também não queria abrir as luzes. Depois de deambular no escuro pela casa, cada vez mais aflito, já nos limites da resistência, encontrei uma pia num anexo da cozinha. Que alívio!
No dia seguinte andei sempre com problemas intestinais. Mas o amor era mais forte. Nem as dores de barriga me podiam separar de ti, embora andasse sempre de olho nas casas de banho. Será um sinal? Estás mesmo presente, estrela?
Fui eu quem te destruiu?
E a destruição lenta que me transformou neste mutante que perdeu o verdadeiro sentido da vida?
Já não sou o mesmo. Devo a ti a mutação. Os primeiros sinais vêm mais de trás, quando tive falsos problemas nas coronárias. Um eletrocardiograma trocado acusou insuficiência coronária.
Hoje os meus pensamentos dizem que faço mais parte de ti que de mim. A minha vida nunca mais teve sentido. Sei tardiamente, é certo. Há sinais de mudança, mas é tarde. Vim pelo nosso amor destroçado. Sei que não é possível trazê-lo de volta. Mas vim beber a dor dos teus últimos dias. Sofrer o teu martírio. Vim para estar junto de ti. Em espírito. Se quiseres, em espírito. Não me repudies. Ouve. Sei que é loucura. Mas alguém disse-me um dia. Tenho o cofre aberto. Quero receber-te. Vem. Não tenho medo. Dá-me um sinal. Nem que seja uma carícia gélida.
Como era a tua voz?
Só oiço o gorjeio das andorinhas que esvoaçam à minha volta. Talvez sejas uma delas. Não consigo descodificar a mensagem. Não te sinto. Não te vejo.
Qual delas...?, és todas?
A música voltou ao princípio. É bela. Há uma mensagem no voo da gaivota e eu vou atrás dela. Nem que seja para encontrar os anos-luz do nosso afastamento. Não sou mais aquela pessoa amorfa e inibida a quem cortaram as asas. Quero aprender de novo a voar. Ensina-me, estrela. Desce ao meu mundo. Não tenhas medo, estrela! Desce ao meu mundo que eu subo ao teu. Encontramo-nos a meio. Assim, nem um nem outro cede. Será uma vitória dos dois.
Onde devo ir agora?
Foi na estação do caminho de ferro que se deu a despedida. Ia triste de partir. Amargurado. Deixei-te no cais e rumei para novas madrugadas. Mas a verdadeira utopia eras tu. O futuro que nunca chegou. No cais, o sonho premonitório deixava notícias terríveis. Não acreditei nos teus olhos tristes que diziam adeus.
Também não te vi na estação. No ar, apenas ar. No chão, apenas chão. Sinais de fumo. Não o fumo negro das locomotivas antigas. Sinais de fumo da última paixão que não se extinguiu e há de persistir até que o pensamento voe para lá da consciência. Fui enviado para noivar o amor. Um amor que durará até à eternidade.
A imagem que está na tua campa é bela. É talvez uma réplica da imagem da Senhora de Fátima. Vejo-te nela. Tem o teu rosto sereno e triste. Lembra-me a imagem que vi na igreja de Fátima, perto do altar. Um dia, ao olhar para essa imagem, vi-te. Talvez não passasse de uma alucinação. Vi-te.
Aqui, em Estremoz, os meus olhos quase que adivinham o que viram os teus no tempo em que viveste aqui. Sigo os passos que deste. Os odores de hoje misturam-se no céu das gaivotas com odores que foram teus. Quase alucinado, pressinto a tua presença. Estás invisível, mas existes. É impossível esquecer que vivemos um amor impossível. Existes, sim. Na eternidade. E existes também na magia das palavras da jovem alentejana que trabalhava no restaurante onde fui almoçar. Porque não sei fazer magia, procuro-te nos olhos da jovem que parecem “falar-me” de ti. Vejo-a procurar os pratos, os talheres, os copos. Coloca-os sobre a mesa. Volta atrás. Falta qualquer. Faltas tu. Traz dois guardanapos de papel.
«Está só?»
(O corpo frio de Manuela...)
Adivinhou. Como de costume. Mário também ficou só.
«É verdade...»
«Vou tirar o outro prato para se sentir mais à vontade.»
Hesito. Sinto uma enorme vontade de pedir para não levantar o prato. Mas é só simbolismo. Para quê?, se tu não vens?
Almoço com o passado e, paradoxo, o passado nunca volta. Na minha frente, vejo apenas um copo meio de cerveja e um caroço de azeitona que já não é azeitona. Depois, virá o futuro. Talvez na jovem que não és tu e que há de trazer o almoço. Julgo que não. Desesperadamente, procurarei no rosto dela o sinal que nunca aparecerá. Patetices. Não passam de patetices estes pensamentos. É melhor esquecer as conjeturas que estava construindo. No domínio do paranormal estas seriam certezas.
Mas o quê?
Imaginemos que podia ter acontecido uma transferência de espíritos quando a jovem do restaurante me informou que frutas havia para a sobremesa. O seu olhar era firme. Estava debruçada sobre mim e os olhos não fugiram dos meus. Eram castanhos. Bonitos. Gostei deles. Por uns momentos pareceu-me ver outros olhos que nada tinham a ver, por exemplo, com uma vulgar Patrícia. Foi um instante.
Seria que...?
Conjeturas. Apenas conjeturas.
Jantei bem. Bifinhos com cogumelos. A sobremesa também estava saborosa. Era pudim..
«Obrigadinho...» Agradeceu a gratificação.
(«De quem são esses olhos?»)
Foi uma despedida. Por momentos vivi a ilusão.
Que forças terei de acumular para atingir tal grau de poder?
Preciso da tua ajuda, estrela. Se foste tu a autora de muitos dos fenómenos que aconteceram à minha volta, não entendo a razão de ser dos mesmos. Para quê, se continuas distante? Tenta, ao menos uma vez, uma transferência de espíritos e dá-me sinais que és tu. Só depende de ti, estrela. Tu que estás presente nas noites das gravações insólitas, quando o silêncio me canta ao ouvido os desesperantes queixumes do teu afastamento. Nessa altura, julgo que apareces, furtivamente, roubando o tempo que parece parar, por detrás de outros rostos, disfarçada. Por exemplo, a empregada do restaurante, por momentos imagino que tenhas sido tu.
E se vivêssemos aqueles romances que imaginei nas muitas cartas apaixonadas que te escrevi?, lembras-te?
Não davas seguimento às histórias que eu criava e sentia-me agastado. Frustrante! A mulher única desinteressada das obras da minha imaginação criadora.
«Está frio.»
«Não. Está fresco...»
«Apesar de não o conhecer agradeço e retribuo as Boas-Festas enviadas.»
«Quase igual...»
«Igual!»
«Não. Escreveste “retribuio”.»
«Meu Deus! Se eu pudesse...»
«Essas palavras são tuas? É só quereres.»
«Não é assim tão fácil. Ainda és uma barreira...»
«Que queres que faça?»
«Perde o medo. Deixa que entre em ti.»
«Há muito que estou preparado. Já lá vai o tempo. Ensina-me. Diz o que é preciso fazer. Será que estamos em mundos paralelos?»
«O nosso mundo é o mesmo. O modo de ver é que é paralelo. Eu vejo-te. Tu não. Uma vez por outra há uma oportunidade. E tu ainda não sabes aproveitar as oportunidades.»
Era verdade. Nunca aproveitei as oportunidades que tive na vida. Fui sempre levado pela maré vazia.
«A jovem do restaurante podias ser tu! Tenta de novo...»
«Nunca mais a vais ver.»
Certeza.
«Ela falou de uma procissão aos dois casais que estavam ao meu lado no jardim.»
«Ingénuo.»
«Vamos encontrar-nos outra vez?»
«Como posso saber?»
«Ainda não dominas o amanhã? Eu consigo alterar o amanhã! Somos nós que construímos o futuro.»
«Talvez tenhas razão.»
«Bem sabes que na minha vida só um homem me interessou. Mas preferiste a Simone. Era uma mulher atraente.»
«Não tive intenção de te trocar pela Simone. Foi uma coisa estranha que me passou pela cabeça. Que me dominou e fez com que esquecesse o compromisso assumido. Um sonho mau de que acordei pouco depois. Mas tu também nunca ajudaste. Sabias onde encontrar-me.»Conseguira juntar dinheiro das explicações de Matemática e Física para ir ver-te a Estremoz. Foram dias maravilhosos. Hoje tento recordar-me de pequenas passagens do pouco que ainda conservo na memória. Recordo-me apenas do dia do baile e do acordar mal disposto na manhã seguinte por ter dormido cerca de uma hora. Alugaste um dominó que não cheguei a vestir, pois ninguém do teu grupo de amigos se mascarou. Ao anoitecer foste à cabeleireira e eu fiquei ao frio, à tua espera. O tempo ia passando. O frio apertava. Mas eu já estava habituado a esperar por ti. Acontecia o mesmo em Portalegre. Danava-me por tanto esperar e só tinha vontade de explodir. Quando aparecias, muito bonita, sorridente, esquecia tudo e sorria também.
Gostavas do meu sorriso?
Nunca o disseste.
«Está frio!»
«Não, está fresco.»
«Fresco?»
Foi este curto diálogo que se repetiu muitas vezes. Tu dizias que estava frio e eu sugeria, logo de seguida, que estava fresco. E tudo acabava num sorriso que nos aquecia a alma.
Fiquei de facto ao frio. Mas não o sentia. O tempo é que custava muito a passar. Eram as saudades de não estares ao pé de mim.
Chegou a hora do baile. O contacto dos nossos corpos, do teu rosto de veludo. O apertar das nossas mãos. Foi a única noite que passámos juntos até quase ao amanhecer. Nessa noite do baile disseste-me quem era o Melícias. Um rapaz que te perseguia com insistência, que odiavas e com quem casaste quando soubeste que eu vivia com outra mulher.
Ostensivamente fomos ao bar do seu pai para ele nos ver bem. Estava a atender ao balcão.
Como tu o odiavas! Dizias que te perseguia. Achavas abominável e foste casar com o homem que mais odiavas.
E já estavam separados antes de morreres...
Deixaste filhos?
Creio que não. Na mensagem da tua campa não existe a mínima referência a filhos nem ao teu marido oficial. É um facto incontestável.
Hoje estou aqui para recordar a rapariga do vestido branco e olhar triste. Já fui ao cemitério. Pouco passava das oito. Havia malmequeres na tua campa. Deviam ter sido postos há cerca de uma semana. Senti uma forte comoção ao ler as palavras de apreço deixadas pelos familiares. Quantas saudades a tua mãe deve ter de ti! Não. Tu não desejas o meu mal. A dona Flora está errada. E sabes uma coisa? Não vim aqui como um estranho, Vim prestar homenagem ao nosso amor. Um amor não conseguido marcado para toda a vida. Alguém nos afastou. Podíamos ter sido muito felizes, amor!
Não fui bem recebido nesta cidade que te viu crescer.
Não queres que esteja cá amanhã?
As cólicas intestinais voltaram.
São sinais de repúdio?
Começaram perto de Estremoz. Tive de parar o carro na berma da estrada e acocorar-me num silvado. E foi então que vi, a pouca distância, dois polícias de trânsito. Felizmente eles não me viram nem ao carro que tinha dois pneus na estrada.
Foi na Torre que escrevemos, algures nas escadas em caracol, os nossos nomes, lembras-te?
Agora há uma pousada na zona da Torre.
Quando cheguei ao cimo, fui acometido por uma súbita dor de barriga. Correste comigo da Torre. Não aconteceu o mesmo no tempo em que éramos jovens. Aconteceu tudo menos poesia. Desci apressadamente a escada, quase chocando no escuro com uns turistas que vinham a subir. Nem me deste tempo de recordar.
Para quê mostrares tanto ódio?
Um dia, no verão, fui à boleia para Estremoz. Levei sanduíches para comer pelo caminho. Uma viagem que podia ter demorado cerca de uma hora, acabou por ser feita em cerca de três. Apanhei três boleias. Uma até Monforte. Outra até Veiros e, finalmente, a última levou-me a Estremoz. Claro que, enquanto esperava por boleia na estrada, ia comendo o meu farnel.
Arranjaste-me um quarto em casa de uns amigos. De noite, acordei com suores frios. Tinha uma enorme dor de barriga. Lembrei-me logo das sanduíches. Ou então foi do jantar. Não conhecia a casa. Também não queria abrir as luzes. Depois de deambular no escuro pela casa, cada vez mais aflito, já nos limites da resistência, encontrei uma pia num anexo da cozinha. Que alívio!
No dia seguinte andei sempre com problemas intestinais. Mas o amor era mais forte. Nem as dores de barriga me podiam separar de ti, embora andasse sempre de olho nas casas de banho. Será um sinal? Estás mesmo presente, estrela?
Fui eu quem te destruiu?
E a destruição lenta que me transformou neste mutante que perdeu o verdadeiro sentido da vida?
Já não sou o mesmo. Devo a ti a mutação. Os primeiros sinais vêm mais de trás, quando tive falsos problemas nas coronárias. Um eletrocardiograma trocado acusou insuficiência coronária.
Hoje os meus pensamentos dizem que faço mais parte de ti que de mim. A minha vida nunca mais teve sentido. Sei tardiamente, é certo. Há sinais de mudança, mas é tarde. Vim pelo nosso amor destroçado. Sei que não é possível trazê-lo de volta. Mas vim beber a dor dos teus últimos dias. Sofrer o teu martírio. Vim para estar junto de ti. Em espírito. Se quiseres, em espírito. Não me repudies. Ouve. Sei que é loucura. Mas alguém disse-me um dia. Tenho o cofre aberto. Quero receber-te. Vem. Não tenho medo. Dá-me um sinal. Nem que seja uma carícia gélida.
Como era a tua voz?
Só oiço o gorjeio das andorinhas que esvoaçam à minha volta. Talvez sejas uma delas. Não consigo descodificar a mensagem. Não te sinto. Não te vejo.
Qual delas...?, és todas?
A música voltou ao princípio. É bela. Há uma mensagem no voo da gaivota e eu vou atrás dela. Nem que seja para encontrar os anos-luz do nosso afastamento. Não sou mais aquela pessoa amorfa e inibida a quem cortaram as asas. Quero aprender de novo a voar. Ensina-me, estrela. Desce ao meu mundo. Não tenhas medo, estrela! Desce ao meu mundo que eu subo ao teu. Encontramo-nos a meio. Assim, nem um nem outro cede. Será uma vitória dos dois.
Onde devo ir agora?
Foi na estação do caminho de ferro que se deu a despedida. Ia triste de partir. Amargurado. Deixei-te no cais e rumei para novas madrugadas. Mas a verdadeira utopia eras tu. O futuro que nunca chegou. No cais, o sonho premonitório deixava notícias terríveis. Não acreditei nos teus olhos tristes que diziam adeus.
Também não te vi na estação. No ar, apenas ar. No chão, apenas chão. Sinais de fumo. Não o fumo negro das locomotivas antigas. Sinais de fumo da última paixão que não se extinguiu e há de persistir até que o pensamento voe para lá da consciência. Fui enviado para noivar o amor. Um amor que durará até à eternidade.
A imagem que está na tua campa é bela. É talvez uma réplica da imagem da Senhora de Fátima. Vejo-te nela. Tem o teu rosto sereno e triste. Lembra-me a imagem que vi na igreja de Fátima, perto do altar. Um dia, ao olhar para essa imagem, vi-te. Talvez não passasse de uma alucinação. Vi-te.
Aqui, em Estremoz, os meus olhos quase que adivinham o que viram os teus no tempo em que viveste aqui. Sigo os passos que deste. Os odores de hoje misturam-se no céu das gaivotas com odores que foram teus. Quase alucinado, pressinto a tua presença. Estás invisível, mas existes. É impossível esquecer que vivemos um amor impossível. Existes, sim. Na eternidade. E existes também na magia das palavras da jovem alentejana que trabalhava no restaurante onde fui almoçar. Porque não sei fazer magia, procuro-te nos olhos da jovem que parecem “falar-me” de ti. Vejo-a procurar os pratos, os talheres, os copos. Coloca-os sobre a mesa. Volta atrás. Falta qualquer. Faltas tu. Traz dois guardanapos de papel.
«Está só?»
(O corpo frio de Manuela...)
Adivinhou. Como de costume. Mário também ficou só.
«É verdade...»
«Vou tirar o outro prato para se sentir mais à vontade.»
Hesito. Sinto uma enorme vontade de pedir para não levantar o prato. Mas é só simbolismo. Para quê?, se tu não vens?
Almoço com o passado e, paradoxo, o passado nunca volta. Na minha frente, vejo apenas um copo meio de cerveja e um caroço de azeitona que já não é azeitona. Depois, virá o futuro. Talvez na jovem que não és tu e que há de trazer o almoço. Julgo que não. Desesperadamente, procurarei no rosto dela o sinal que nunca aparecerá. Patetices. Não passam de patetices estes pensamentos. É melhor esquecer as conjeturas que estava construindo. No domínio do paranormal estas seriam certezas.
Mas o quê?
Imaginemos que podia ter acontecido uma transferência de espíritos quando a jovem do restaurante me informou que frutas havia para a sobremesa. O seu olhar era firme. Estava debruçada sobre mim e os olhos não fugiram dos meus. Eram castanhos. Bonitos. Gostei deles. Por uns momentos pareceu-me ver outros olhos que nada tinham a ver, por exemplo, com uma vulgar Patrícia. Foi um instante.
Seria que...?
Conjeturas. Apenas conjeturas.
Jantei bem. Bifinhos com cogumelos. A sobremesa também estava saborosa. Era pudim..
«Obrigadinho...» Agradeceu a gratificação.
(«De quem são esses olhos?»)
Foi uma despedida. Por momentos vivi a ilusão.
Que forças terei de acumular para atingir tal grau de poder?
Preciso da tua ajuda, estrela. Se foste tu a autora de muitos dos fenómenos que aconteceram à minha volta, não entendo a razão de ser dos mesmos. Para quê, se continuas distante? Tenta, ao menos uma vez, uma transferência de espíritos e dá-me sinais que és tu. Só depende de ti, estrela. Tu que estás presente nas noites das gravações insólitas, quando o silêncio me canta ao ouvido os desesperantes queixumes do teu afastamento. Nessa altura, julgo que apareces, furtivamente, roubando o tempo que parece parar, por detrás de outros rostos, disfarçada. Por exemplo, a empregada do restaurante, por momentos imagino que tenhas sido tu.
E se vivêssemos aqueles romances que imaginei nas muitas cartas apaixonadas que te escrevi?, lembras-te?
Não davas seguimento às histórias que eu criava e sentia-me agastado. Frustrante! A mulher única desinteressada das obras da minha imaginação criadora.
«Está frio.»
«Não. Está fresco...»
«Apesar de não o conhecer agradeço e retribuo as Boas-Festas enviadas.»
«Quase igual...»
«Igual!»
«Não. Escreveste “retribuio”.»
«Meu Deus! Se eu pudesse...»
«Essas palavras são tuas? É só quereres.»
«Não é assim tão fácil. Ainda és uma barreira...»
«Que queres que faça?»
«Perde o medo. Deixa que entre em ti.»
«Há muito que estou preparado. Já lá vai o tempo. Ensina-me. Diz o que é preciso fazer. Será que estamos em mundos paralelos?»
«O nosso mundo é o mesmo. O modo de ver é que é paralelo. Eu vejo-te. Tu não. Uma vez por outra há uma oportunidade. E tu ainda não sabes aproveitar as oportunidades.»
Era verdade. Nunca aproveitei as oportunidades que tive na vida. Fui sempre levado pela maré vazia.
«A jovem do restaurante podias ser tu! Tenta de novo...»
«Nunca mais a vais ver.»
Certeza.
«Ela falou de uma procissão aos dois casais que estavam ao meu lado no jardim.»
«Ingénuo.»
«Vamos encontrar-nos outra vez?»
«Como posso saber?»
«Ainda não dominas o amanhã? Eu consigo alterar o amanhã! Somos nós que construímos o futuro.»
«Talvez tenhas razão.»
«Bem sabes que na minha vida só um homem me interessou. Mas preferiste a Simone. Era uma mulher atraente.»
« Daqui a pouco vou tomar ar, mas não aquela mistura invisível de propano-butano que receitei no livro à Manuela. Vou tomar ar e talvez encontre o passado. Imagens do meu passado remoto.
Aspirei, sequioso, o ar escaldante habitual das tardes de verão em Estremoz e constatei que já não era o mesmo ar que não respiraste quando o teu corpo, de transição nesta Terra onde estamos, imergiu no mundo dos vermes.
Agora estou no jardim perto da casa onde moraste. Não podia ficar mais tempo no café. Talvez fosse influenciado pela presença estranha de um homem que ocupava uma mesa ao lado. Aparentava a minha idade, usava óculos e tinha qualquer problema numa perna. As canadianas encostadas a uma cadeira faziam prova disso.
Tive a impressão que o homem conhecia-me. Comecei a sentir-me mal. Nauseava-me a presença do homem.
Não era má ideia se vomitasse em cima da mesa. Melhor ainda: em cima dele.
Saí com alguma pressa. Aquele homem pôs-me fora dos carretos.
O jardim está diferente. Olho para o sítio onde costumávamos ficar. Agora só encontro baloiços. Para falar verdade, não sei o que havia antes. Só sei que está diferente. A sensação de mau estar desapareceu. A própria dor de estômago. Num momento tudo passou.
Onde era o colégio?
Ainda está calor para procurar. Mas tenho um palpite. Talvez em frente à zona dos baloiços. Há pouco imaginei ter por companheira, no banco onde estou sentado, a dona dos olhos mais tristes do mundo. Castanhos. Puros. Lembro-me do dia em que fui ter com ela ao colégio. Tinha vindo à boleia de Portalegre. Com tanto azar - já nessa altura tudo se conjugava para nos dificultar a vida - que só consegui chegar a Estremoz ao fim da terceira boleia.
Acabo de ver aranhas. São minúsculas. Sinal de boa sorte. Para os outros.
O colégio estava pintado com um rosa carregado e tinha um gradeamento em frente. Viam-se algumas salas de aula. Perguntei a uma aluna que saía se a tinha visto. Voltou para trás. Minutos depois, a Manuela estava na minha frente. Vestia uma bata de colegial. Penso que a bata era preta. Havia qualquer peça de vestuário nela de cor vermelha. Um cinto. Talvez sapatos vermelhos. Não seriam os brincos?
Definitivamente era o cinto.
O ar de felicidade da Manuela fez o meu coração transbordar de luz. Era sempre assim. Sentia-me feliz ao pé dela.
«Já tem luz...» Afirmou uma vidente.
Um casal sentou-se num banco ao lado. Eram talvez da minha idade. Ele olhou com uma certa ironia para os meus pés. Só então reparei que tinha descalçado os sapatos. Os pés doíam-me. Tinha andado muito nesse dia e havia ainda mais ruas para palmilhar.
Era forçoso relembrar aquela tarde em que a encontrei à saída do colégio. Como ela estava bonita naquela tarde! Nunca a tinha visto vestida de colegial. Não posso esquecer do seu cabelo em rabo de cavalo sempre muito bem cuidado.
E a voz?... A doçura da sua voz de alentejana genuína que nunca mais ouvi?
Três horas e o calor não dá sinal de abrandar. Aproveito para tirar uma fotografia ao jardim, mais precisamente à zona oposta ao lago do Gadanha. A casa onde ela morava está agora em ruínas. Sonhei mais que uma vez com a casa, em ruínas. Talvez fosse mais do que coincidência. Ainda hoje pergunto a mim mesmo e não consigo encontrar explicação. Ruínas. Talvez também a minha vida esteja arruinada e ainda não tenha dado conta.
Meia hora mais tarde resolvi procurar o colégio. Parece que a memória não falhou, apesar das “histórias mal contadas”. Era em frente ao jardim. Não tinha dúvidas, embora agora fosse um quartel ou messe de um quartel.
Começou a festa. A alergia está a atacar com força. Ela também tinha esta alergia e nessa altura eu não sonhava com espirros e comichões de nariz que se repetem, todos os anos em fins de maio e na primeira quinzena de junho.
Aparentemente, estou constipado. Tudo é ilusão. A única verdade é que neste momento estou deitado na cama, de barriga para baixo, escrevendo, espirrando e fungando, ao mesmo tempo. O ataque começou, por coincidência, quando falei de “histórias mal contadas”.
Julgava que o colégio não era tão perto da casa dela. Estava em frente ao jardim. O gradeamento e os pormenores de uma janela do primeiro andar, situada centralmente, avivaram-me a memória. O prédio sofrera alterações.
Tenho tosse. Que se passa com esta tosse? É um desafio. Se existe alguém presente, que se manifeste. Ótimo. Só o silêncio me responde. Posso então continuar...
Quanto mais olhava para o edifício, mais me convencia que existira ali um externato. Há mais de vinte anos.
Outra vez a tosse.
Voltando ao externato, só à terceira tentativa encontrei a pessoa certa e a minha hipótese foi confirmada. O indivíduo que contactei falou mesmo do doutor Cotta, o diretor do externato. Lembro-me ainda do contencioso que houve com ele por causa de uma carta que escrevi para o externato e endereçada a ela. Acontece que a carta foi parar às mãos do doutor Cotta e houve problemas. Mas a mãe da Manuela estava do nosso lado. Só não compreendo por que motivo escrevi para lá. Talvez por causa do avô. Lembro-me que era uma pessoa muito agressiva. Devia ser da bebida. Ou então já estava esclerosado.
Posteriormente o edifício foi vendido ao Exército.
«Quando as coisas estão bem encaminhadas, quando estou quase a descobrir... aparecem logo os obstáculos. Tudo começou com a diarreia (não rias). Depois, o mal estar no café e o agravamento do problema que tenho no pé direito (um vaso dilatado que me causa apreensão; apareceu ontem, à noite). Outra “história mal contada”, minha querida, foram os cães a ladrar para mim, incessantemente, antes de subir à Torre.»
«...»
«Continuas a não responder. Passa das sete. Daqui a pouco cai a noite e é altura de voltar à rua. O calor abrandou. Já não és um corpo negro e frio. Tens luz. Quero uma pista. Dá-me o calor infinitesimal da tua mente superior. Ao menos uma vibração. Vou ao restaurante procurar a jovem. Espero que o pé não me dê problemas.»
Escrevo de Lisboa…
Aspirei, sequioso, o ar escaldante habitual das tardes de verão em Estremoz e constatei que já não era o mesmo ar que não respiraste quando o teu corpo, de transição nesta Terra onde estamos, imergiu no mundo dos vermes.
Agora estou no jardim perto da casa onde moraste. Não podia ficar mais tempo no café. Talvez fosse influenciado pela presença estranha de um homem que ocupava uma mesa ao lado. Aparentava a minha idade, usava óculos e tinha qualquer problema numa perna. As canadianas encostadas a uma cadeira faziam prova disso.
Tive a impressão que o homem conhecia-me. Comecei a sentir-me mal. Nauseava-me a presença do homem.
Não era má ideia se vomitasse em cima da mesa. Melhor ainda: em cima dele.
Saí com alguma pressa. Aquele homem pôs-me fora dos carretos.
O jardim está diferente. Olho para o sítio onde costumávamos ficar. Agora só encontro baloiços. Para falar verdade, não sei o que havia antes. Só sei que está diferente. A sensação de mau estar desapareceu. A própria dor de estômago. Num momento tudo passou.
Onde era o colégio?
Ainda está calor para procurar. Mas tenho um palpite. Talvez em frente à zona dos baloiços. Há pouco imaginei ter por companheira, no banco onde estou sentado, a dona dos olhos mais tristes do mundo. Castanhos. Puros. Lembro-me do dia em que fui ter com ela ao colégio. Tinha vindo à boleia de Portalegre. Com tanto azar - já nessa altura tudo se conjugava para nos dificultar a vida - que só consegui chegar a Estremoz ao fim da terceira boleia.
Acabo de ver aranhas. São minúsculas. Sinal de boa sorte. Para os outros.
O colégio estava pintado com um rosa carregado e tinha um gradeamento em frente. Viam-se algumas salas de aula. Perguntei a uma aluna que saía se a tinha visto. Voltou para trás. Minutos depois, a Manuela estava na minha frente. Vestia uma bata de colegial. Penso que a bata era preta. Havia qualquer peça de vestuário nela de cor vermelha. Um cinto. Talvez sapatos vermelhos. Não seriam os brincos?
Definitivamente era o cinto.
O ar de felicidade da Manuela fez o meu coração transbordar de luz. Era sempre assim. Sentia-me feliz ao pé dela.
«Já tem luz...» Afirmou uma vidente.
Um casal sentou-se num banco ao lado. Eram talvez da minha idade. Ele olhou com uma certa ironia para os meus pés. Só então reparei que tinha descalçado os sapatos. Os pés doíam-me. Tinha andado muito nesse dia e havia ainda mais ruas para palmilhar.
Era forçoso relembrar aquela tarde em que a encontrei à saída do colégio. Como ela estava bonita naquela tarde! Nunca a tinha visto vestida de colegial. Não posso esquecer do seu cabelo em rabo de cavalo sempre muito bem cuidado.
E a voz?... A doçura da sua voz de alentejana genuína que nunca mais ouvi?
Três horas e o calor não dá sinal de abrandar. Aproveito para tirar uma fotografia ao jardim, mais precisamente à zona oposta ao lago do Gadanha. A casa onde ela morava está agora em ruínas. Sonhei mais que uma vez com a casa, em ruínas. Talvez fosse mais do que coincidência. Ainda hoje pergunto a mim mesmo e não consigo encontrar explicação. Ruínas. Talvez também a minha vida esteja arruinada e ainda não tenha dado conta.
Meia hora mais tarde resolvi procurar o colégio. Parece que a memória não falhou, apesar das “histórias mal contadas”. Era em frente ao jardim. Não tinha dúvidas, embora agora fosse um quartel ou messe de um quartel.
Começou a festa. A alergia está a atacar com força. Ela também tinha esta alergia e nessa altura eu não sonhava com espirros e comichões de nariz que se repetem, todos os anos em fins de maio e na primeira quinzena de junho.
Aparentemente, estou constipado. Tudo é ilusão. A única verdade é que neste momento estou deitado na cama, de barriga para baixo, escrevendo, espirrando e fungando, ao mesmo tempo. O ataque começou, por coincidência, quando falei de “histórias mal contadas”.
Julgava que o colégio não era tão perto da casa dela. Estava em frente ao jardim. O gradeamento e os pormenores de uma janela do primeiro andar, situada centralmente, avivaram-me a memória. O prédio sofrera alterações.
Tenho tosse. Que se passa com esta tosse? É um desafio. Se existe alguém presente, que se manifeste. Ótimo. Só o silêncio me responde. Posso então continuar...
Quanto mais olhava para o edifício, mais me convencia que existira ali um externato. Há mais de vinte anos.
Outra vez a tosse.
Voltando ao externato, só à terceira tentativa encontrei a pessoa certa e a minha hipótese foi confirmada. O indivíduo que contactei falou mesmo do doutor Cotta, o diretor do externato. Lembro-me ainda do contencioso que houve com ele por causa de uma carta que escrevi para o externato e endereçada a ela. Acontece que a carta foi parar às mãos do doutor Cotta e houve problemas. Mas a mãe da Manuela estava do nosso lado. Só não compreendo por que motivo escrevi para lá. Talvez por causa do avô. Lembro-me que era uma pessoa muito agressiva. Devia ser da bebida. Ou então já estava esclerosado.
Posteriormente o edifício foi vendido ao Exército.
«Quando as coisas estão bem encaminhadas, quando estou quase a descobrir... aparecem logo os obstáculos. Tudo começou com a diarreia (não rias). Depois, o mal estar no café e o agravamento do problema que tenho no pé direito (um vaso dilatado que me causa apreensão; apareceu ontem, à noite). Outra “história mal contada”, minha querida, foram os cães a ladrar para mim, incessantemente, antes de subir à Torre.»
«...»
«Continuas a não responder. Passa das sete. Daqui a pouco cai a noite e é altura de voltar à rua. O calor abrandou. Já não és um corpo negro e frio. Tens luz. Quero uma pista. Dá-me o calor infinitesimal da tua mente superior. Ao menos uma vibração. Vou ao restaurante procurar a jovem. Espero que o pé não me dê problemas.»
Escrevo de Lisboa…
Voltemos ao dia de ontem. Quando fui alugar o quarto, dei de caras com um homem mal encarado que me olhou com certa desconfiança. Era o dono da pensão. Não sei o que se passava na sua cabeça, mas a imagem que fazia de mim parecia não ser muito abonatória. Talvez pensasse que eu fosse um criminoso em fuga. Mentira. Fui a Estremoz com vontade de encontrar uma verdade que há muito me escapava. Verdade essa que continua por descobrir. Inclusivamente vim de Estremoz com mais dúvidas do que aquelas com que tinha chegado. E tudo começou quando aluguei o quarto. Quando passei a porta principal dei de caras com o dono que estava por detrás de um balcão. Havia três portas: uma delas dava entrada para os quartos do primeiro andar; a outra, para a sala de refeições; a terceira, não descobri para onde. Além do balcão, vi um frigorífico e duas ou três mesas. Digamos que aquela entrada funcionava como taberna. Ainda havia uma outra porta que comunicava com a cozinha.
Depois das formalidades do registo tentei meter conversa com o homem. Não resultou. O homem não gostava mesmo de mim. Valeu-me a presença na altura um velhote simpático que estava presente. Seguiu-se a conversa já referida atrás e que não me convenceu.
Jantei no Alentejano, conforme já referi. Comi bifinhos com cogumelos que foram acompanhados com vinho tinto Reguengos. Vinho da colheita do ano passado. Mentira de há pouco em que falei de imperiais. Nada de cerveja. Os bifes estavam saborosos. Depois de pagar a conta, despedi-me da jovem.
«Então até para o ano...»
«Vem só para o ano?»
«Pois é, venho de seis em seis meses...»
Menti, sem saber porquê.
Fui tomar um descafeinado na esplanada ao lado. Frente a frente com quem? Claro que com o tal homem das canadianas. Curiosamente, notei um certo ar de contrariedade nele. Não se fez velho lá. Nem eu, também. Soprava uma brisa forte, desagradável e, inevitavelmente, veio a alergia. Não pude evitar um acesso de espirros e comichões, ao mesmo tempo que me assoei por várias vezes. Era um convite para abandonar a esplanada.
No jardim senti-me ainda mais atacado pela alergia e só parei em frente ao edifício do antigo externato. Pensei nas afirmações categóricas do homem que me alugou o quarto. Segui em frente.
Senti a alergia apossar-se de mim ainda com mais força. Parecia que estava anestesiado. Deslocava-me como um autómato. O sono atacava forte. Queria resistir. Não conseguia. Fui forçado a voltar para trás. Já perto do externato, em vez de seguir para a pensão, onde me esperava uma cama acolhedora, meti por uma rua à direita. Cada vez mais o sono era dono e senhor. Duas crianças cruzaram-se comigo. Vinham de uma travessa de nome S. Pedro. Tentei chamá-los. A voz saiu rouca, quase impercetível. Foi só à terceira tentativa que um deles correspondeu ao chamamento feito com dificuldade. Queria saber onde era a rua de S. Pedro. Fácil. Se continuasse pela travessa encontraria a rua.
Era uma rua estreita e mal iluminada. Várias pessoas apreciavam, à janela, o ar morno da noite. Caminhando ao longo da rua, ia olhando alternadamente para um e outro lado sem encontrar vestígios do externato.
Um externato ali?!...
Passei pela praça de touros. Fui encontrando ruas cada vez menos iluminadas, até que cheguei de novo ao local de partida. Experimentei a voz. Estava cada vez mais rouca.
«Bonito... Estou quase afónico!» pensei.
Já na pensão tentei dizer duas ou três palavras que não saíram. Ficara mesmo afónico.
Mal entrei no quarto, despi-me e enfiei o pijama. Nem fui à casa de banho. Deitei-me então sobre a cama e ali fiquei, sem reagir. Precisava de raciocinar.
Aquilo não era normal. Donde viera a sonolência irresistível?
Devo ter adormecido a pensar na sonolência. Meia hora mais tarde meti-me entre os lençóis e apaguei logo a luz.
Acordei às quatro horas para ir à casa de banho. Adormeci de novo. Eram sete horas quando me levantei. Tinha a sensação que o sono fora muito agitado.
Agora, o mais importante...
A certa altura da noite julgo que acordei com uma visão. Do meu lado direito, entre a cama e a parede, havia uma espécie de tabuleiro algo profundo. Digamos que era uma caixa de forma prismática. Aberta. Talvez fosse um caixão. Mas um caixão com muita, muita luz. Uma luz branca, intensa, que não deixava ver mais senão... luz!
Voltei-me para o outro lado. A luz intensa ofuscava-me. Não senti medo. Adormeci de imediato.
Que se passara? Apenas fora um sonho?
De manhã, ainda na cama, tentei rever a visão. Um tabuleiro vazio e muito iluminado que não deixava ver mais nada além da luz. Um caixão talvez à espera de alguém ou abandonado por alguém que já tinha muita luz.
De qualquer das formas, que significado dar?
E outra coisa de que me estava a esquecer: já não estava afónico!
Dirigi-me muito cedo ao cemitério e levei meia dúzia de rosas vermelhas. As flores que estavam na campa eram as mesmas de ontem. De certeza que ninguém lá tinha ido. Coloquei as rosas sem tirar as outras flores. Havia um rosário. A imagem redonda da Senhora de Fátima que deixara da última vez já lá não estava. Talvez a mãe ainda fosse viva e viesse na rodoviária. Estávamos a 3 de junho e fazia anos que a Nelinha morrera.
Informei-me do horário. Chegou de Évora um autocarro. Trazia meia hora de atraso e não vi a mãe dela. Dei mais algumas voltas pela cidade e voltei ao cemitério por volta das dez. De novo tudo igual. Fui para o carro e dispus-me a esperar. Talvez que aparecesse alguém. Manobrei o carro para a sombra. O calor começava a apertar. Enquanto esperava por alguém que certamente não prometera vir, o corpo prismático inundado de luz não me saía da cabeça. Inundado... Era isso! A Manuela já não precisava de mim. Tinha luz. Só estava materialmente naquela campa onde havia um amontoado de ossos. Ossos sobre ossos. Mais nada. O resto estava comigo. Talvez para toda a vida.
Não sei se estás comigo. Apenas sei que me senti bem a recordar o nosso passado e era isso que tu querias, julgo. Só não gostaste que fosse à Torre. Mal cheguei ao cimo senti fortes cólicas intestinais e desci as escadas a correr. Precisava de encontrar com urgência uma casa de banho. Felizmente que as cólicas se atenuaram quando desci os últimos degraus. Coincidência? Não sei. Tive tempo de entrar no carro e voltar ao Rossio. Encontrei uma casa de banho providencial no café onde tinha estado antes. Mas voltando ao nosso passado. Tivemos uma relação curta. Nunca amei nem amarei como te amei. Quis-te muito e ainda te quero, estrela. É um absurdo, bem sei, mas o amor é assim.
Agora não te vejo. Nem te oiço. Apetece-me recordar mais. Lembras-te quando fomos à Torre e escreveste os nossos nomes algures, na parede da escadaria? Desta vez, quando comecei a subir as escadas, lembrei-me, mas estava muito escuro. Só ouvia o zumbido das varejeiras e de moscas mais pequenas. Certamente que os nomes continuam lá se a caliça não caiu. O estado de conservação da parede que flanqueia a escada em caracol não é o melhor e também não vi indícios de obras.
Nunca mais te vi e nunca mais te verei. Embora te oiçam chorar e estejas tão perto!
Nunca mais te vi e nunca mais te verei. Embora te oiçam chorar e estejas tão perto!



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