Há mais de vinte anos que não voltava ao Porto e as memórias dessa cidade estavam quase apagadas, daí as confusões que fiz com “praças e avenidas”. A seu tempo. De qualquer forma, foi bom para exercitar a memória.Aproveitei a oportunidade ao aceitar o convite de um amigo recente para passarmos o S. João, um ícone da cidade a propósito das festas dos santos populares.
Chegámos ao fim ao tarde. O calor que se fizera sentir ao longo do dia não dava mostras de abrandar. Uma chuveirada de água fria veio mesmo a calhar. Nunca me dei bem com este tipo de duches, mas desta vez foi bom e oportuno.
Já recomposto, bem como as minhas duas companheiras de viagem, encaminhei-me para a sala de jantar onde me esperava um lauto jantar.
À noite, o nosso anfitrião, um industrial de renome da cidade invicta, levou-nos no seu Mercedes a visitar a cidade, numa corrida de pôr os nervos à flor da pele, já que conduzia rápido e os seus problemas de visão faziam com que só parasse em cima do acontecimento.
A seguir a alguns sustos...
«Só vejo sombras...» Desculpou-se, depois do carro estacar bruscamente.
«Ah sim?» perguntei, desejoso que a curta viagem chegasse ao fim.
«Desde que levei com uma bola de ténis numa vista, perdi qualidades na visão. Como o outro olho nunca funcionou bem, vê lá o meu problema, Mário.»
«Estou a ver.» Pensei.
O certo é que ele não se preocupava com a condução. Muito menos com as sombras. Prego a fundo e fé em Deus. De tal forma que passei todo o tempo a travar, receando ter que levar uma mão ao volante, tal como fazia com os recrutas nos meus tempos de tropa. Mas esses não sabiam conduzir. Com o meu amigo era diferente. Apenas via mal. E muito mal. Mesmo assim, no meio de vários sustos, pude ainda ver à distância o antigo quartel em que fiz a recruta como soldado-cadete. O resto do passeio noturno não teve história, além de mais uns tantos sustos que quase se tornaram rotinas. Foi o que se chamou uma condução radical de consequências imprevisíveis.
E assim se passou o resto da noite, com grandes sobressaltos e o credo na boca. Isto pelas razões já referidas. Mas pronto, chegámos sãos e salvos.
Levantei-me cedo. A manhã era minha. Depois de cuidar da higiene e de tomar um suculento pequeno-almoço, decidi atacar sozinho as ruas do Porto. Apanhei um autocarro para o centro da cidade. Sem dificuldades cheguei à rua Sá da Bandeira. Foi aí que, em tempos muito recuados, na véspera de ser incorporado no CICA 1 como soldado-cadete, vi um filme no Teatro Sá da Bandeira e do qual não conservo o mínimo registo na memória.
Por momentos fiquei indeciso.
Que fazer?
Talvez tomar essa rua como ponto de partida.
Tudo começou com um equívoco. Numa placa existente na parede de um edifício li “Praça dos Aliados”.
«Pronto... É a partir daqui que vou ao encontro com o passado.» Pensei.
Um mergulho de mais de vinte anos. Sem perguntar a qualquer pessoa comecei a subir por uma rua ao acaso. Guiava-me apenas o instinto.
Pouco depois descobri a Torre dos Clérigos, construída em granito. Parei para observar com detalhe aquela bela torre barroca de arquitetura exuberante. O topo era simplesmente espectacular.
Continuei a subir sem a mínima hesitação e acabei por chegar ao primeiro destino. Tinha quase a certeza de ter acertado na mouche. Naquele edifício vetusto, já sem vestígios da presença de militares, estava guardado uma parte importante da minha mocidade.
Acertar na mouche foi coisa que nunca consegui em tempo de tropa. Nos famigerados exercícios de tiro errava sempre o alvo, quer a cem metros quer a cinquenta metros, utilizando a velhinha espingarda Mauser que não tinha a mínima culpa, a não ser nos dolorosos coices com que nos presenteava. Só mais tarde descobri a causa da minha ineficácia no tiro. Aconteceu no segundo ano em que dei aulas, quando vi os rostos dos alunos envoltos numa neblina permanente. Primeiro, interroguei-me. Depois, quase que entrei em pânico e tive que tomar uma medida que não podia ser outra. Marquei uma consulta de oftalmologia.
Diagnóstico rápido e preciso: miopia.
Havia um guarda à entrada do edifício, precisamente na embocadura que um curto túnel que dava para um pátio cuja extensão não se adivinhava. Ainda com um resto de dúvidas, avancei na sua direção e perguntei-lhe se ali não tinha funcionado em tempos um quartel. Disse logo que sim.
«É curioso, senhor! Não imagina quantas pessoas já me fizeram essa pergunta...»
Não teci qualquer comentário e deixei que falasse.
«Agora o edifício está dividido em duas partes. Numa é o hospital e na outra funciona agora uma Universidade.»
Lembrei-me que os nossos quartos já tinham sido enfermarias noutros tempos.
«Fiz aqui a recruta. Será que posso entrar para dar uma vista de olhos?»
«Faz favor...»
Identifiquei logo onde ficava a antiga porta de armas. Em breve estava no campo de terra batida onde fora a parada. Fui andando em frente, até que parei. Olhei ao longo daquele terreno aplanado e sorri. Tantas recordações!
«Pelotão, des... troçar!»
Era o que queríamos ouvir. Cada um a ver se corria mais do que o outro. Só se ouvia praguejar de “cabrão do alferes” para cima.
Já recolhido nos claustros, reparei no Valinho ainda à chuva, aparentemente com vontade de se molhar mais um pouco. A sua indiferença à chuva, enquanto o pelotão tinha corrido a bom correr para zona de abrigo, encerrava uma explicação lógica, mas o comandante não sabia de nada. Como resultado, o Valinho recebeu um louvor por espírito de sacrifício e abnegação. E mais umas tantas palavras bonitas que o tempo apagou.
O louvor dado pelo comandante foi recebido pela malta com muito gozo. É que o Valinho simplesmente tinha dificuldade em correr porque em Vendas Novas, quando fazia a recruta, passou-lhe por cima dum pé a roda de um canhão de obus catorze. Teve sorte no meio da desgraça. Baixou à enfermaria e deram-no logo como incapaz para todo o serviço militar, passando aos serviços auxiliares. Louvor talvez justo em relação à maioria dos imbecis em maioria no pelotão da recruta, já que era um dos poucos que não precisara de uma cunha miraculosa para fazer a recruta no CICA. Um bem caído do céu, aquela roda pesadíssima.
Portanto, o Valinho não gostava de correr porque sentia ainda alguns dores num dos pés. Era lógico depois do que lhe tinha acontecido. Se não fosse estarmos em plena guerra do Ultramar teria passado logo à disponibilidade.
Chegámos ao fim ao tarde. O calor que se fizera sentir ao longo do dia não dava mostras de abrandar. Uma chuveirada de água fria veio mesmo a calhar. Nunca me dei bem com este tipo de duches, mas desta vez foi bom e oportuno.
Já recomposto, bem como as minhas duas companheiras de viagem, encaminhei-me para a sala de jantar onde me esperava um lauto jantar.
À noite, o nosso anfitrião, um industrial de renome da cidade invicta, levou-nos no seu Mercedes a visitar a cidade, numa corrida de pôr os nervos à flor da pele, já que conduzia rápido e os seus problemas de visão faziam com que só parasse em cima do acontecimento.
A seguir a alguns sustos...
«Só vejo sombras...» Desculpou-se, depois do carro estacar bruscamente.
«Ah sim?» perguntei, desejoso que a curta viagem chegasse ao fim.
«Desde que levei com uma bola de ténis numa vista, perdi qualidades na visão. Como o outro olho nunca funcionou bem, vê lá o meu problema, Mário.»
«Estou a ver.» Pensei.
O certo é que ele não se preocupava com a condução. Muito menos com as sombras. Prego a fundo e fé em Deus. De tal forma que passei todo o tempo a travar, receando ter que levar uma mão ao volante, tal como fazia com os recrutas nos meus tempos de tropa. Mas esses não sabiam conduzir. Com o meu amigo era diferente. Apenas via mal. E muito mal. Mesmo assim, no meio de vários sustos, pude ainda ver à distância o antigo quartel em que fiz a recruta como soldado-cadete. O resto do passeio noturno não teve história, além de mais uns tantos sustos que quase se tornaram rotinas. Foi o que se chamou uma condução radical de consequências imprevisíveis.
E assim se passou o resto da noite, com grandes sobressaltos e o credo na boca. Isto pelas razões já referidas. Mas pronto, chegámos sãos e salvos.
Levantei-me cedo. A manhã era minha. Depois de cuidar da higiene e de tomar um suculento pequeno-almoço, decidi atacar sozinho as ruas do Porto. Apanhei um autocarro para o centro da cidade. Sem dificuldades cheguei à rua Sá da Bandeira. Foi aí que, em tempos muito recuados, na véspera de ser incorporado no CICA 1 como soldado-cadete, vi um filme no Teatro Sá da Bandeira e do qual não conservo o mínimo registo na memória.
Por momentos fiquei indeciso.
Que fazer?
Talvez tomar essa rua como ponto de partida.
Tudo começou com um equívoco. Numa placa existente na parede de um edifício li “Praça dos Aliados”.
«Pronto... É a partir daqui que vou ao encontro com o passado.» Pensei.
Um mergulho de mais de vinte anos. Sem perguntar a qualquer pessoa comecei a subir por uma rua ao acaso. Guiava-me apenas o instinto.
Pouco depois descobri a Torre dos Clérigos, construída em granito. Parei para observar com detalhe aquela bela torre barroca de arquitetura exuberante. O topo era simplesmente espectacular.
Continuei a subir sem a mínima hesitação e acabei por chegar ao primeiro destino. Tinha quase a certeza de ter acertado na mouche. Naquele edifício vetusto, já sem vestígios da presença de militares, estava guardado uma parte importante da minha mocidade.
Acertar na mouche foi coisa que nunca consegui em tempo de tropa. Nos famigerados exercícios de tiro errava sempre o alvo, quer a cem metros quer a cinquenta metros, utilizando a velhinha espingarda Mauser que não tinha a mínima culpa, a não ser nos dolorosos coices com que nos presenteava. Só mais tarde descobri a causa da minha ineficácia no tiro. Aconteceu no segundo ano em que dei aulas, quando vi os rostos dos alunos envoltos numa neblina permanente. Primeiro, interroguei-me. Depois, quase que entrei em pânico e tive que tomar uma medida que não podia ser outra. Marquei uma consulta de oftalmologia.
Diagnóstico rápido e preciso: miopia.
Havia um guarda à entrada do edifício, precisamente na embocadura que um curto túnel que dava para um pátio cuja extensão não se adivinhava. Ainda com um resto de dúvidas, avancei na sua direção e perguntei-lhe se ali não tinha funcionado em tempos um quartel. Disse logo que sim.
«É curioso, senhor! Não imagina quantas pessoas já me fizeram essa pergunta...»
Não teci qualquer comentário e deixei que falasse.
«Agora o edifício está dividido em duas partes. Numa é o hospital e na outra funciona agora uma Universidade.»
Lembrei-me que os nossos quartos já tinham sido enfermarias noutros tempos.
«Fiz aqui a recruta. Será que posso entrar para dar uma vista de olhos?»
«Faz favor...»
Identifiquei logo onde ficava a antiga porta de armas. Em breve estava no campo de terra batida onde fora a parada. Fui andando em frente, até que parei. Olhei ao longo daquele terreno aplanado e sorri. Tantas recordações!
«Pelotão, des... troçar!»
Era o que queríamos ouvir. Cada um a ver se corria mais do que o outro. Só se ouvia praguejar de “cabrão do alferes” para cima.
Já recolhido nos claustros, reparei no Valinho ainda à chuva, aparentemente com vontade de se molhar mais um pouco. A sua indiferença à chuva, enquanto o pelotão tinha corrido a bom correr para zona de abrigo, encerrava uma explicação lógica, mas o comandante não sabia de nada. Como resultado, o Valinho recebeu um louvor por espírito de sacrifício e abnegação. E mais umas tantas palavras bonitas que o tempo apagou.
O louvor dado pelo comandante foi recebido pela malta com muito gozo. É que o Valinho simplesmente tinha dificuldade em correr porque em Vendas Novas, quando fazia a recruta, passou-lhe por cima dum pé a roda de um canhão de obus catorze. Teve sorte no meio da desgraça. Baixou à enfermaria e deram-no logo como incapaz para todo o serviço militar, passando aos serviços auxiliares. Louvor talvez justo em relação à maioria dos imbecis em maioria no pelotão da recruta, já que era um dos poucos que não precisara de uma cunha miraculosa para fazer a recruta no CICA. Um bem caído do céu, aquela roda pesadíssima.
Portanto, o Valinho não gostava de correr porque sentia ainda alguns dores num dos pés. Era lógico depois do que lhe tinha acontecido. Se não fosse estarmos em plena guerra do Ultramar teria passado logo à disponibilidade.
«Meu Deus! Tantas recordações!
Resolvi voltar para o centro da cidade. Doutra forma teria passado ali todo o dia a recordar cinco meses de uma "santa recruta".
Desta vez segui por um caminho diferente àquele que tinha escolhido para subir. Todos os caminhos iam desaguar no centro, pensei.
A certa altura, sem saber porquê, lembrei-me da velha história do homem que semeava moedas para colher mais tarde a recompensa.
Nada premeditado. Agarrei numa moeda de cinco escudos e baixei-me, fingindo que atava os atacadores de um sapato que, por sinal, era de pala. De seguida, deixei a moeda sobre o empedrado e continuei o meu caminho, sempre a descer. Nessa ocasião já me doíam as pernas e, especialmente, um pé.
Numa zona muito movimentada vi então uma personagem digna das histórias de terror da banda desenhada. Um velho muito velho, horrivelmente feio, de rosto muito pálido, cor de cera, como se estivesse pintalgado por tintura de iodo. Pela primeira vez na vida tive a certeza que lhe vi a aura e não augurei coisa boa no homem. Arrastava-se com dificuldade como o apoio de uma bengala, dando a ideia de ter sofrido em tempo um acidente vascular. Sem saber porquê, lembrei-me de imediato do homem curvado (a seu tempo falarei dele).
«Vou fazer-te a vida negra e nunca saberás quem eu sou!»
Senti um arrepio de alto a baixo e tentei logo esquecer. O homem de rosto cor de cera ficou a ver uma montra. Parecia procurar qualquer coisa. As pessoas que passavam, jovens, homens e mulheres de meia idade, velhos, não ligavam a mínima importância ao velho que cada vez era mais suspeito para mim. Mas estava deveras intrigado com aquela visão.
Seria que só eu estava a vê-lo?
Decidiu-se a atravessar para o outro lado a rua larga que devia ser uma praceta porque, na realidade, não passavam ali carros. Continuei parado, a observá-lo. Não queria perder de vista aquela personagem horrível.
Vi-o entrar numa padaria.
«Outra?» perguntei aos meus botões.
Na verdade a montra que ele estivera antes a observar era também de uma padaria.
E tinha atravessado para outro lado com o intuito de entrar noutra padaria?
Num impulso entrei na padaria. O homem do rosto cor de cera estava a ser atendido pela empregada.
«Deseja alguma coisa?»
«Não... não, obrigado. Entrei só para ver o pão.»
«Esteja à vontade.»
«Obrigado.»
Que desculpa parva! Afinal os outros viam o velho, mas não da mesma forma que eu via. Era estranho. Mesmo muito estranho.
Voltei ao exterior. Ficava no passeio de olho na porta. Queria ter a certeza absoluta de que não estava a sofrer de alucinações. E, que diabo! Só tinha tomado o pequeno almoço.
O homem saiu. Estranhamente a cor do rosto já parecia normal. E assim, deixei-o ir em paz já que era eu quem não estava em paz.
Como foi que aconteceu, Mário?
Dispus-me a continuar a descida. Vi um autocarro aproximar-se e julguei ler no destino Praça da Liberdade.
Então... havia duas praças? Não me parecia.
Era a altura de entrar numa livraria. Não podia deixar de ser. E dito e feito. Estava uma na minha frente. Na mostra havia um anúncio de saldos. Mais um motivo para entrar e comprar livros que nunca iria ler. O costume.
À entrada vi logo de um golpe de vista onde eram os saldos. Nada de especial. Saí sem comprar um livro. Coisa rara. Foi então que me apercebi que já não me doíam as pernas.
Havia outra livraria mais abaixo. Entrei. Era diferente. Mais parecia ser loja de um alfarrabista.
Logo a seguir, descobri o motivo que me levou a entrar. Livros sobre Fernando Pessoa. E... e logo aquele que estava esgotado e que o Alfredo me tinha emprestado há uns bons dois meses! Nem sequer o tinha folheado porque gostava de sublinhar e deixar apontamentos, e o livro não era meu. Agora, sim. Podia lê-lo e fazer o que quisesse. A não ser que custasse um balúrdio.
O livro custava mil novecentos e oitenta escudos. Paguei-o com duas notas de mil e recebi como troco uma moeda de vinte escudos. Pedi para que fosse apagado o preço no seu interior.
«É para oferecer?»
«Não.»
Afinal não quis dizer que era para oferecer a mim mesmo. Primeiro, o empregado deixou escapar um sorriso irónico, depois introduziu o livro no num envelope grosso, passou-mo para as mãos, saí satisfeitíssimo com a minha compra e continuei a descer a rua muito inclinada.
«Esta agora! Coincidência incrível!»
O livro estava mais que esgotado, segundo o Alfredo. Logo ia aparecer de mão beijada...
Dentro em breve estava na praça.
«Não! Não pode ser! Mas eu li...»
Praça da Liberdade. Avenida dos Aliados. A realidade reposta.
Olhei para o relógio. Era quase uma da tarde. Boa hora para almoçar. Apressei o passo. Devia estar há uns tempos com uma quebra de açúcar. Tinha que descobrir com urgência um restaurante económico. Com a compra do livro não me podia entregar a mais despesas supérfluas.
Mas...!
Que estava a ver?
Um bilhete de lotaria que parecia flutuar perto do solo. Certamente que a extracção já tinha acontecido.
Parou um carro que tapou-me a visão do bilhete. Logo a seguir outro. O meu campo de visão estava completamente tapado. O apetite de ver as frações de lotaria ficou ainda mais aguçado. Afinal de contas podia estar ali uma oportunidade de ouro para enriquecer de um momento para o outro. Aquilo era um sinal, tinha a certeza. Quase a certeza. Ou não me chamasse Mário!
Como chegar ao bilhete?
Resposta pronta ao ver um dos carros arrancar. Contornei de imediato o outro carro e apanhei o bilhete. Procurei a data. Não havia dúvidas. A extração realizava-se em vinte e dois de novembro.
Olhei em volta a ver se descobria um possível dono de semelhante preciosidade. Ninguém. Nem um simples cauteleiro. Portanto, aquele maravilhoso bilhete de lotaria estava ali à minha espera. Concretizava-se em mim o sonho do tal indivíduo que semeava dinheiro para, mais tarde, colher a riqueza. Uma metáfora bem sucedida.
Observei melhor. Confirmava-se o mês e o ano. E terminava em oitenta e quatro.
Senti um arrepio percorrer todo o corpo, em especial o rosto, onde se deteve. Uma sensação muito parecida com a que tive, em tempos, no minúsculo hall da casa da praia, depois de ver que o relógio de pêndulo estava parado. Dispus-me de imediato a dar-lhe corda, mas o relógio tinha a corda toda!
Mas antes de me aproximar do relógio, tinha ouvido uma voz:
«Não dês corda ao relógio!»
Desandei pela porta fora como uma seta...
Admiti que o melhor era procurar um restaurante na Sá da Bandeira.
Outra miragem?
Vi um velho estender-me a mão. Estava sentado junto a uma porta. A barba muito branca, muito crescida, dava-lhe um ar digno. Por hábito não dava esmola a quem me estendia a mão ou puxava pelo braço. Continuei em frente, mas logo estaquei. Levei a mão esquerda ao bolso do caso e encontrei uma moeda de cinco escudos. Não era suficiente. Lembrei-me então do troco que o alfarrabista me tinha dado.
Onde estava a moeda de vinte escudos?
Ah!, finalmente. E logo de segui ofereci a moeda ao mendigo. Depois, segui em frente. Precisava de encontrar o tal restaurante com preços em conta.
Passaram alguns dias depois que fui ao Porto. Claro que já sou conhecedor dos resultados da extração da lotaria. Branco. Saíu branco. Bem feito, Mário! Aquilo foi um gozo danado. Bem sabias que a sorte nunca quis nada contigo. Toma para aprenderes. E... Pronto. Não fales de coisas estranhas. A seu tempo virão.
Falando da estadia na casa do Almeida, tudo correu normalmente, salvo termos ficado fechados uma noite em casa. E passo a explicar. O casal nosso amigo teve que sair para um jantar de cariz social e nós ficámos em casa. Por uma questão de segurança, segundo o sacana do Almeida, apenas ficámos com acesso à cozinha e aos quartos. Nem sequer podíamos sair para a rua! No mínimo era desagradável. Falta de confiança nos amigos que éramos. Isto depois do Almeida me mostrar uma divisão da casa com porta blindada, transformada em casa forte, onde guardava o dinheiro (muitas notas), jóias e uma coleção de selos que não chegou a mostrar a um filatelista como eu era, amante dos selos desde os onze, doze anos de idade.
«Almeida, meu velhaco, estás excomungado.» pensei. «Que falta de chá!»
Vingámo-nos na cozinha, comendo bem e bebendo do melhor. Desculpa-me, Almeida, mas abrimos uma garrafa de Quinta da Bacalhoa. Sabes uma coisa? A vingança serve-se fria. Ou por outra, neste caso bebe-se à temperatura normal, depois da "respiração" obrigatória deste nectar dos deuses. Repetindo, Quinta da Bacalhoa. Tinto.
No dia seguinte, à despedida, fez-me uma revelação algo surpreendente, depois de uma pergunta curiosa:
«Não deste conta de nada?»
Estive para lhe responder com outra pergunta:
«A propósito de termos ficado ontem fechados em casa?»
Optei diplomaticamente com outra pergunta:
«Conta de quê?»
«Ruídos no quarto, por exemplo...»
«Dormi que nem um justo.»
Bendito tinto da Quinta da Bacalhoa!
Já sabia que o Almeida e a mulher estavam também virados para os fenómenos paranormais, embora não tivessem dons ou conhecimentos profundos.
«Mas então o que se passa? Só senti umas pressões à tarde, na sala.»
Resolvi voltar para o centro da cidade. Doutra forma teria passado ali todo o dia a recordar cinco meses de uma "santa recruta".
Desta vez segui por um caminho diferente àquele que tinha escolhido para subir. Todos os caminhos iam desaguar no centro, pensei.
A certa altura, sem saber porquê, lembrei-me da velha história do homem que semeava moedas para colher mais tarde a recompensa.
Nada premeditado. Agarrei numa moeda de cinco escudos e baixei-me, fingindo que atava os atacadores de um sapato que, por sinal, era de pala. De seguida, deixei a moeda sobre o empedrado e continuei o meu caminho, sempre a descer. Nessa ocasião já me doíam as pernas e, especialmente, um pé.
Numa zona muito movimentada vi então uma personagem digna das histórias de terror da banda desenhada. Um velho muito velho, horrivelmente feio, de rosto muito pálido, cor de cera, como se estivesse pintalgado por tintura de iodo. Pela primeira vez na vida tive a certeza que lhe vi a aura e não augurei coisa boa no homem. Arrastava-se com dificuldade como o apoio de uma bengala, dando a ideia de ter sofrido em tempo um acidente vascular. Sem saber porquê, lembrei-me de imediato do homem curvado (a seu tempo falarei dele).
«Vou fazer-te a vida negra e nunca saberás quem eu sou!»
Senti um arrepio de alto a baixo e tentei logo esquecer. O homem de rosto cor de cera ficou a ver uma montra. Parecia procurar qualquer coisa. As pessoas que passavam, jovens, homens e mulheres de meia idade, velhos, não ligavam a mínima importância ao velho que cada vez era mais suspeito para mim. Mas estava deveras intrigado com aquela visão.
Seria que só eu estava a vê-lo?
Decidiu-se a atravessar para o outro lado a rua larga que devia ser uma praceta porque, na realidade, não passavam ali carros. Continuei parado, a observá-lo. Não queria perder de vista aquela personagem horrível.
Vi-o entrar numa padaria.
«Outra?» perguntei aos meus botões.
Na verdade a montra que ele estivera antes a observar era também de uma padaria.
E tinha atravessado para outro lado com o intuito de entrar noutra padaria?
Num impulso entrei na padaria. O homem do rosto cor de cera estava a ser atendido pela empregada.
«Deseja alguma coisa?»
«Não... não, obrigado. Entrei só para ver o pão.»
«Esteja à vontade.»
«Obrigado.»
Que desculpa parva! Afinal os outros viam o velho, mas não da mesma forma que eu via. Era estranho. Mesmo muito estranho.
Voltei ao exterior. Ficava no passeio de olho na porta. Queria ter a certeza absoluta de que não estava a sofrer de alucinações. E, que diabo! Só tinha tomado o pequeno almoço.
O homem saiu. Estranhamente a cor do rosto já parecia normal. E assim, deixei-o ir em paz já que era eu quem não estava em paz.
Como foi que aconteceu, Mário?
Dispus-me a continuar a descida. Vi um autocarro aproximar-se e julguei ler no destino Praça da Liberdade.
Então... havia duas praças? Não me parecia.
Era a altura de entrar numa livraria. Não podia deixar de ser. E dito e feito. Estava uma na minha frente. Na mostra havia um anúncio de saldos. Mais um motivo para entrar e comprar livros que nunca iria ler. O costume.
À entrada vi logo de um golpe de vista onde eram os saldos. Nada de especial. Saí sem comprar um livro. Coisa rara. Foi então que me apercebi que já não me doíam as pernas.
Havia outra livraria mais abaixo. Entrei. Era diferente. Mais parecia ser loja de um alfarrabista.
Logo a seguir, descobri o motivo que me levou a entrar. Livros sobre Fernando Pessoa. E... e logo aquele que estava esgotado e que o Alfredo me tinha emprestado há uns bons dois meses! Nem sequer o tinha folheado porque gostava de sublinhar e deixar apontamentos, e o livro não era meu. Agora, sim. Podia lê-lo e fazer o que quisesse. A não ser que custasse um balúrdio.
O livro custava mil novecentos e oitenta escudos. Paguei-o com duas notas de mil e recebi como troco uma moeda de vinte escudos. Pedi para que fosse apagado o preço no seu interior.
«É para oferecer?»
«Não.»
Afinal não quis dizer que era para oferecer a mim mesmo. Primeiro, o empregado deixou escapar um sorriso irónico, depois introduziu o livro no num envelope grosso, passou-mo para as mãos, saí satisfeitíssimo com a minha compra e continuei a descer a rua muito inclinada.
«Esta agora! Coincidência incrível!»
O livro estava mais que esgotado, segundo o Alfredo. Logo ia aparecer de mão beijada...
Dentro em breve estava na praça.
«Não! Não pode ser! Mas eu li...»
Praça da Liberdade. Avenida dos Aliados. A realidade reposta.
Olhei para o relógio. Era quase uma da tarde. Boa hora para almoçar. Apressei o passo. Devia estar há uns tempos com uma quebra de açúcar. Tinha que descobrir com urgência um restaurante económico. Com a compra do livro não me podia entregar a mais despesas supérfluas.
Mas...!
Que estava a ver?
Um bilhete de lotaria que parecia flutuar perto do solo. Certamente que a extracção já tinha acontecido.
Parou um carro que tapou-me a visão do bilhete. Logo a seguir outro. O meu campo de visão estava completamente tapado. O apetite de ver as frações de lotaria ficou ainda mais aguçado. Afinal de contas podia estar ali uma oportunidade de ouro para enriquecer de um momento para o outro. Aquilo era um sinal, tinha a certeza. Quase a certeza. Ou não me chamasse Mário!
Como chegar ao bilhete?
Resposta pronta ao ver um dos carros arrancar. Contornei de imediato o outro carro e apanhei o bilhete. Procurei a data. Não havia dúvidas. A extração realizava-se em vinte e dois de novembro.
Olhei em volta a ver se descobria um possível dono de semelhante preciosidade. Ninguém. Nem um simples cauteleiro. Portanto, aquele maravilhoso bilhete de lotaria estava ali à minha espera. Concretizava-se em mim o sonho do tal indivíduo que semeava dinheiro para, mais tarde, colher a riqueza. Uma metáfora bem sucedida.
Observei melhor. Confirmava-se o mês e o ano. E terminava em oitenta e quatro.
Senti um arrepio percorrer todo o corpo, em especial o rosto, onde se deteve. Uma sensação muito parecida com a que tive, em tempos, no minúsculo hall da casa da praia, depois de ver que o relógio de pêndulo estava parado. Dispus-me de imediato a dar-lhe corda, mas o relógio tinha a corda toda!
Mas antes de me aproximar do relógio, tinha ouvido uma voz:
«Não dês corda ao relógio!»
Desandei pela porta fora como uma seta...
Admiti que o melhor era procurar um restaurante na Sá da Bandeira.
Outra miragem?
Vi um velho estender-me a mão. Estava sentado junto a uma porta. A barba muito branca, muito crescida, dava-lhe um ar digno. Por hábito não dava esmola a quem me estendia a mão ou puxava pelo braço. Continuei em frente, mas logo estaquei. Levei a mão esquerda ao bolso do caso e encontrei uma moeda de cinco escudos. Não era suficiente. Lembrei-me então do troco que o alfarrabista me tinha dado.
Onde estava a moeda de vinte escudos?
Ah!, finalmente. E logo de segui ofereci a moeda ao mendigo. Depois, segui em frente. Precisava de encontrar o tal restaurante com preços em conta.
Passaram alguns dias depois que fui ao Porto. Claro que já sou conhecedor dos resultados da extração da lotaria. Branco. Saíu branco. Bem feito, Mário! Aquilo foi um gozo danado. Bem sabias que a sorte nunca quis nada contigo. Toma para aprenderes. E... Pronto. Não fales de coisas estranhas. A seu tempo virão.
Falando da estadia na casa do Almeida, tudo correu normalmente, salvo termos ficado fechados uma noite em casa. E passo a explicar. O casal nosso amigo teve que sair para um jantar de cariz social e nós ficámos em casa. Por uma questão de segurança, segundo o sacana do Almeida, apenas ficámos com acesso à cozinha e aos quartos. Nem sequer podíamos sair para a rua! No mínimo era desagradável. Falta de confiança nos amigos que éramos. Isto depois do Almeida me mostrar uma divisão da casa com porta blindada, transformada em casa forte, onde guardava o dinheiro (muitas notas), jóias e uma coleção de selos que não chegou a mostrar a um filatelista como eu era, amante dos selos desde os onze, doze anos de idade.
«Almeida, meu velhaco, estás excomungado.» pensei. «Que falta de chá!»
Vingámo-nos na cozinha, comendo bem e bebendo do melhor. Desculpa-me, Almeida, mas abrimos uma garrafa de Quinta da Bacalhoa. Sabes uma coisa? A vingança serve-se fria. Ou por outra, neste caso bebe-se à temperatura normal, depois da "respiração" obrigatória deste nectar dos deuses. Repetindo, Quinta da Bacalhoa. Tinto.
No dia seguinte, à despedida, fez-me uma revelação algo surpreendente, depois de uma pergunta curiosa:
«Não deste conta de nada?»
Estive para lhe responder com outra pergunta:
«A propósito de termos ficado ontem fechados em casa?»
Optei diplomaticamente com outra pergunta:
«Conta de quê?»
«Ruídos no quarto, por exemplo...»
«Dormi que nem um justo.»
Bendito tinto da Quinta da Bacalhoa!
Já sabia que o Almeida e a mulher estavam também virados para os fenómenos paranormais, embora não tivessem dons ou conhecimentos profundos.
«Mas então o que se passa? Só senti umas pressões à tarde, na sala.»
Então revelou-me que, no quarto e na sala, era vulgar ouvirem respirações, passos pesados, e darem conta que certos objectos mudavam de sítio.
«Mais grave ainda. O meu filho chegou a levar chapadas!»
«Bateste-lhe?»
«Claro que não, Mário. Ele foi esbofeteado mais que uma vez e nunca viu quem o esbofeteou.»
«Uhm... Foi de noite?»
«Acontecia a qualquer hora do dia...»
«E só agora me dizes!»
«Foi para te apanhar de surpresa.»
«Ah sim. Parece que o fantasma simpatizou comigo e não me chateou. De facto não senti nada.»
Humilhante! Digamos, outro gozo. Agora vindo de um hóspede da casa que todos sentiam e nunca ninguém viu. E que eu nem senti!
«Nem na sala?»
«Nem na sala.»
«Precisamente o local mais habitado...»
E eu que não dei conta de nada!
Onde estavam as minhas percepções extra-sensoriais?
A não ser que o Almeida me tivesse contado uma história, daquelas de embalar.
Esta ida ao Porto, tirando a visita de saudade que fiz ao quartel, foi principalmente, um gozo aos meus dons. Ou um aviso para que me fechasse e não transmitisse para o exterior tudo o que se passava de estranho à minha volta.
Bem me tinha avisado a Lara (1).
«Mário, cuidado. O que estás a contar-me, não contes a ninguém. Podem pensar que não estás bom da cabeça!»
Todos os dias nascem interrogações sobre a realidade enganadora do outro lado da porta. Aparentemente estou na zona de transição. Digo aparentemente, pois preocupa-me a possibilidade de tudo não passar de uma alucinação provocada pelo fortalecimento do subconsciente. Cavalo à solta, de instinto aguçado, vai controlando as minhas defesas que se arrastam ao sabor do aleatório, até as coisas, boas ou más, acontecerem.
Tudo tem o seu timing. Por exemplo, ontem estava no quintal e fazia exercícios físicos, sob a tutela do meu primo Justino que ia registando numa folha os números que quantificavam a desejada evolução que tardava em aparecer. Eram as flexões, os exercícios para os abdominais, os lançamentos do peso, a corrida, o salto em altura. Nada de cambalhotas por causa do empedrado do quintal e não só. Nunca gostei de dar cambalhotas. E pasmem. No quinto ano do liceu fiz parte de uma classe especial de ginástica.
Parecia que estava a levar a sério a tentativa de melhorar os índices físicos. Preparava-me meticulosamente para um objetivo não definido. Tal como Fernando Pessoa, também não sabia o que me esperava o amanhã. De certeza que ia ser muito diferente de hoje.De repente, os objetivos estavam definidos. Azar o meu! Em agosto ia para a tropa e deixava o curso a meio.
Acabaria alguma vez o curso?
Um interrogação que se punha. Havia vozes, vindas dos ditos velhos do Restelo, que falavam duma congelação provocada pelo marasmo da vida militar.
Portanto, sem apelo nem agravo, o Porto ia ser o meu novo destino…
Para minha boa sorte ia fazer a recruta no Porto e não em Mafra. Uma recruta leve, perfeitamente ao meu alcance. Sem mácula, ou “cunhas”, penso. Nunca conhecerei a verdade.
Passados três meses de recruta adivinhei que teria um resto duma tropa tranquila, isto caso não fosse mobilizado para a guerra. Sem surpresas de maior, enquanto muitas vidas desgraçadamente se perdiam na guerra do Ultramar e outras acabavam estropiadas, física ou psiquicamente, os meus momentos militares estavam a ser quase sempre calmos, com poucos sobressaltos.
Fiz então parte de um “grandioso” pelotão de futuros oficiais milicianos ineptos e oportunistas, alguns porque não conseguiam ultrapassar um simples muro de terceira categoria, saltar o galho, ou subir ao pórtico, e outros porque fingiam ter dificuldades, pura e simplesmente. O seu problema não era só fingimento. Havia muito medo e cobardia à mistura. De certa forma ganhei vantagem porque não fui mobilizado para a guerra. Mas congelei. Congelei durante três anos e três meses ao ser surpreendido a meio do curso. Isto não contando com o tempo de adaptação ao novo ritmo de trabalho quando passei à disponibilidade. Mais de dois anos em que tive de sobreviver num emprego que mal dava para pagar o aluguer da casa e, ao mesmo tempo, reaprender a estudar. Mas isso é outra história.
Lembro-me do discurso de despedida atabalhoado que fiz no bar da sala de oficiais, na presença do implacável comandante que carregava muito nos “ss”. Lamentei mais a “traição” de dois camaradas oficiais que também iam passar à disponibilidade e que, no momento, me passaram a “batata quente” do famigerado discurso, do que descobrir mais tarde que o comandante se estava borrifando para meia dúzia de patacoadas que um simples miliciano lançou cá para fora em menos de meia dúzia de minutos. Provavelmente queria dizer outras coisas, mas... quem tem cu tem medo.
Respirei de alívio, mas não tive um bom recomeço de vida. Sem o curso acabado, sem dinheiro, senti-me escorraçado para o deserto onde sabia que moravam os meus longos dias cinzentos.
Mas isso é a tal outra história que não cabe aqui e que fala dos tempos de humilhação e dos desenganos que tive que ultrapassar.
O inferno bem pode esperar. Ninguém me disse tais palavras, mas não saí deste belo canteiro à beira-mar plantado para dar lugar a um outro futuro me foi destinado por Deus, se é que esse Deus existe e é infinitamente Bom e Omnipotente, ou que então não existe, ou que então foi “destacado” para me guiar um tal deus menor e assim posso dizer que fui posto a novas provas, caminhos de alta pressão psicológica, tortuosos até dizer basta, alguns com meandros como os de um rio que não tem pressa em chegar à foz, cheios de afluentes que eu subia até julgar que chegava à nascente. Alongo a vista pelos horizontes do passado e sinto sempre um sabor amargo a missão não cumprida. Não fui feliz, nem fiz ninguém feliz. Não tive êxito profissional, nem fracassei. Considero-me um vulgar homem de fato cinzento que, mesmo depois de o despir, continuou sempre com ele vestido.
Não fui escolhido para “matar”, mas para viver num patamar tranquilo, destinado aos favorecidos pela sorte, com a contrapartida pesada de permanecerem desencantados com a vida, de nunca estarem satisfeitos com o que têm e de lamentarem sempre que perderam o comboio que nunca mais voltou atrás. Desse patamar estático vejo o fracasso dos meus sonhos sem poder intervir. Nunca terei o futuro que desejei. Não existe porque passou ao lado e não o vi passar.
Então, vamos lá para a minha breve carreira militar...
Não pode haver condutor mais aselha que eu. Tenho desculpa porque estou a aprender a conduzir. O ingénuo do Valdo, filho do major que gere as mobilizações fatais e comanda o destino rumo ao paraíso, confiou-me o carro e lá vamos na estrada que liga o Porto a Lisboa. O medroso (ou merdoso?) diz que não se sente seguro. Apesar de ter carta de condução, é melhor eu conduzir. Santa ignorância, a minha! Tenho meia dúzia de lições de condução que o sargento se dignou dar, mal e porcamente. Contudo, não me atrapalho. Como estou na tropa, é lógico que seja mais arrojado, mais inconsciente. A viagem continua, aparentemente sem perspectivas de sobressaltos. Atrás, o Valeriano deve pensar que já não é tão porreiro ir para Lisboa comigo ao volante. Ai não é, não. Que triste ideia tiveste, Valdo!
Três alunos num Mercedes, não contando com o sargento. Todos muito atrofiados, como é natural. O soldado-cadete agarrado ao volante, receoso dos ralhetes da besta do sargento, e os outros dois muito encolhidos, atrás, à espera do momento da tortura. Eu era um deles.
Ah!, aquela da rampa até teve graça.
O sargento da instrução mandou o Pincariço levar a alavanca das mudanças a ponto morto e puxou o travão de mão para cima. Ato contínuo, saltou do carro e pôs-se a falar com outro camarada de igual patente. A conversa ia animada. Falavam de um negócio de galinhas ou de coelhos. Apurei o ouvido. Azar do diabo. Moléstia fatal. Muitos animais mortos. Negócio completamente falhado. Conversa e mais conversa. Tretas.
Mas o que estava a acontecer no interior do carro?
Pouca coisa. O Mercedes começou a deslizar, lentamente, na rampa. Perigo iminente, pensámos os três. O "Valeriano-porreiríssimo-tudo-bem" fez cara de caso e eu encolhi-me no meu lugar, instintivamente. Parecia adivinhar o que estava para acontecer. Quanto ao Pincariço, esse agarrou-se ainda mais ao volante, sem saber o que fazer. Mas como era alentejano de gema, não perdeu a calma ou continuou a pensar com demasiada calma, mantendo em vigília o número mínimo indispensável de neurónios. Tanto fazia uma coisa como outra porque não adiantava. A sua calma era atávica. E o carro a deslizar, já dois metros à frente do sargento-instrutor, fora de controlo, a aumentar a velocidade
O Pincariço começou a desesperar, despertando enfim da letargia. Já não era sem tempo.
«Meu sargento, por favor... onde é a embraiagem?»
Ideia brilhante! Queria travar e ficou indeciso. Três pedais. O homem nunca lhe disse que havia três pedais! Lembrou-se da embraiagem. Afinal qual era o pedal da embraiagem?
Finalmente o sargento deu conta da situação. Largou de imediato o negócio fracassado dos frangos ou dos coelhos e correu para o carro. Ainda de fora, puxou mais para cima o travão de mão e ficou com ele na mão. Um carro militar era sempre imprevisível quanto à resistência do seu material.
Pânico generalizado!
«Trave, trave!, nosso cadete!»
O cadete Pincariço esforçou-se um pouco mais e encontrou finalmente a desejada embraiagem no momento em que o carro travou no muro, dez metros mais abaixo.
«Merda de vida a minha!» desabafou o sargento.
«Porreiríssimo!» deve ter filosofado o Valeriano com um sorriso entre dentes o Valeriano porque naquele dia não havia mais instrução para o grupo.
O carro foi direto para o estaleiro com a frente toda metida para dentro.
Pouco depois estávamos no nosso quarto de seis camas, por sinal uma das quatro enfermarias adaptadas para quartos. O Valeriano fumava cachimbo e deslocava-se, algo inquieto, da janela para a porta e vice-versa, procurando entender o que se tinha passado.
Mas afinal para que servia a embraiagem?
Encolheu os ombros e deixou de pensar numa coisa que era para os técnicos. Ora ele cursava Filosofia e podia ser amigo da sabedoria por outras vias.
«Porreiro! Os outros continuam na instrução e nós no bem bom...»
O Pincariço não se sentia no bem bom. Despira a camisa cinzenta e deitara-se na cama, de papo para o ar, exibindo a floresta de pêlos que lhe escondia o peito e parte dos ombros. Parecia adormecido, mas estava às voltas com a história da embraiagem. A culpa ia toda para o sargento que nunca lhe disse que havia três pedais escondidos à frente dos pés de quem guiava. E, que ele soubesse, só alguns sensitivos é que viam com os pés.
«Não gastes mais as solas das botas, Valeriano que ainda pagas umas novas à tropa» disse eu, algo irritado. «Vê se te acalmas, homem!»
«Já viste o que podia ter acontecido?»
«Não te chega o carro enfeixar-se na parede? Querias também que batêssemos com os cornos na dita cuja?»
«Mas podia ter sido pior!»
Entretanto apareceu o Fonseca e viu o Pincariço de papo para o ar e com as mãos na nuca. Aproveitava ao máximo o prazer que lhe davam os raios solares que entravam por uma das várias janelas.
Fez-me um sinal de silêncio e fiquei na expectativa. Então, pé ante pé, aproximou-se da cama do Pincariço e sorriu para mim. Acto imediato, agarrou num tufo de pêlos do seu peito.
«Par ou ímpar?» perguntou, piscando o olho para nós.
Ao mesmo tempo segurava com dois dedos um tufo do peludo Pincariço que, entretanto, ainda não dava um mínimo sinal de reação. No momento pensava nas delícias escaldantes da planície alentejana e na possibilidade de dar uma queca, ao luar, na moça dos recados da tia Gracinda. Nem que fosse debaixo de um chaparro. A gordinha não queria outra coisa! Andava sempre a roçar-se por ele na cozinha, que nem uma cadela com o cio. E quando mais cedo, melhor. Pimba, pimba! Tinha-lhe dito que era romântica e queria passear com ele ao luar. Ele lhe dava o luar em noite de lua nova no fim-de-semana que se aproximava.
«Fecha os olhos, Clotilde e imagina que está uma noite de luar.»
«Ah, Pincariço! E está mesmo uma bela noite de luar.»
«Até vais ver estrelas e todo o cortejo astral. Cometas e assim.»
Curiosamente, aquele alentejano dum cabrão já era lesto para esses trabalhos. Vá lá entender. Mistérios da vida...
Só de pensar na moça e em todo o resto, fechou os olhos e começou a sonhar. Que boa montada em toda a sela. Aguenta, Clotilde que lá vai obra!
Mas o que era aquilo?
«Está... quie...to, Fon...se...ca...»
O outro, ao mesmo tempo que exibia o troféu entre os dedos, voltou a perguntar:
«Par ou ímpar?»
Estranhamente o Pincariço continuou a sonhar, impávido e sereno, com a tal moça rechonchuda que ia comer com todos os requintes no fim-de-semana.
Voltando…A princípio, tudo bem. Primeiro contacto com o carro. Um apalpar das mudanças. Travão de mão. Pedais (eram três!). Motor de arranque. Estava tudo identificado.
E aí fomos nós. Um esticão. Primeira para segunda. Afinal, era fácil. Mas o carro estava aos solavancos, porquê?
«Dá-lhe gás» aconselhou o Valdo, entusiasmado. «Carrega mais no acelerador, pá!»
Onde era o acelerador?
Pincariço! Pincariço!
«Não traves nas curvas! Acelera agora, porra...»
Maldita confusão. Parecia mesmo uma barata tonta. Conduzir era muito mais complicado do que parecia. Principalmente quando a experiência era pouca ou quase nenhuma.
«Ainda vais mais devagar que a tartaruga do Valdo, porra!»
Provocação do Valeriano que desvalorizei parcialmente. Não devia ter reagido, mas enervei-me ainda mais ao sentir-me picado.
«Vá lá, Mário, o carro está a pedir a redução de segunda para terceira. O motor queixou-se de novo, não ouviste? E não te esqueças de acelerar em ponto morto.»
«Devias ter embalado mais o carro!» sentenciou o filósofo.
Irritei-me com a história. O facto é que ainda não tinha os ouvidos afinados para estas contingências automobilísticas.
«Queres vir para aqui?»
Arroz queimado. Estava a perder o controlo por causa daquele caniço pensante. Afinal travava ou reduzia?
Decidi mudar de terceira para quarta numa curva apertada, o que significava meter uma mudança no momento menos aconselhável. Pânico imediato, mas o carro aguentou-se bem.
«Quase fomos para as couves!» exclamou o Valeriano.
«Quais couves, qual carapuça. Agora é que estou a dominar a fera. Aceleremos.»
Curva e contracurva. Tudo muito bem. Outra curva e esta ainda mais apertada que a outra. Fui apanhado à traição. Não contava. Juro que não contava!
«Reduz, reduz!» «Com um caneco!
Tentei a redução já demasiado tarde. Por sorte não travei. O carro ficou em ponto morto e começou a fugir para a esquerda. Deixei-o ir. Foi o melhor que a minha intuição aconselhou. E em boa hora. Felizmente que não vinha nenhum outro carro em sentido contrário.
O grande sacana daquele sargento-instrutor que só pensava no negócio dos coelhos e isso fazia tudo menos ensinar-nos a conduzir. O exemplo estava patente no caso da rampa. Em teoria era tudo fácil. O resto vinha a seguir. Ó se vinha!
Levei o carro até à mão e encostei de imediato à berma. Não ganhara para o susto.
«Para mim já chegou a experiência. Volta para o volante antes que haja uma desgraça. Ainda não me sinto devidamente preparado.»
Nunca devia ter aceitado o convite do Valdo. Nitidamente ainda não tinha unhas para conduzir um carro, qualquer que ele fosse.
«Porreiro!» exclamou o Valeriano. «Agora é que já posso dormir descansado.»
Fiz-lhe um manguito e explodi:
«Vai mas é ver se estou lá fora!»
A partir daquele momento não ultrapassámos os cinquenta. Não houve mais sobressaltos. Chegámos tarde a Lisboa, mas sãos e salvos.
Se fosse contar tudo o que me aconteceu na tropa ainda hoje estava de volta com esta história.
Aquela do louvor foi surrealista. A parada era um campo aberto onde todo o mundo militar podia fazer juízos de valor do que se passava e não passava aí.
Nessa manhã chovia torrencialmente e o cagão do alferes Braga, instrutor do nosso pelotão, não desarmava e apertava connosco. Molhados até aos ossos, maldizíamos a triste sorte de estarmos reduzidos à ínfima espécie de cadetes. Ordem unida, quer chovesse ou fizesse sol. E bico calado, senão aquele militarão de carreira, mais vermelho que um pimento maduro, ainda nos dizia das boas. «Esquerdo, direito. Direita, ro...dar! Esquerdo, direito... um dois... Pelotão... alto!»
Inevitável. O Pincariço chocou com o camarada da frente.
Este virou-se para trás e vociferou:
«Alentejano dum cabrão!»
«Que se passa aí...?» perguntou o alferes.
Ninguém se acusou.
E não caía um raio em cima do alferes?
Fiquei mais que estragado ao adivinhar que o pior vinha a seguir. Resguardado da chuva, o comandante seguia, à distância, a marcha do pelotão. O alferes também o viu e esmerou-se ainda mais, subindo o tom da voz:
«Esquerdo, direito... um dois. Vamos a mostrar cagança, suas "amélias"! E não quero ninguém com o passo trocado. Já sabem como se destroça. Vejam bem...»
E exemplificou:
«Assim... um, dois.»
Foi o caos. Parte do pessoal quis experimentar e o alferes levou as mãos à cabeça.
«Mas que merda é esta? Vamos lá... Esquerdo, direito... esquerdo, direito... um, dois!»
Triste ideia a sua! E o comandante a assistir…
A marcha estava para dar e durar. O comandante não arredava pé e o alferes mostrava-se mais cheio de cagança do que nunca.
«Senhor Pincariço! Mais parece um vinte e nove, trinta improvisado! Que é que lhe deu hoje? Isto é para homens de barba rija. Ora marche lá como deve ser se não quer ter um trabalho especial daqui a pouco.»
Caramba! Além de ser peludo, tinha uma barba rija. Cerradíssima. E não dava uma para a caixa.
Mas em que consistia esse trabalho especial?
O Pincariço já conhecia a receita de cor. Era muito simples. O alferes metia-lhe uma vassoura nas unhas e dava uma ordem:
«Ombro… arma!»
E a seguir:
«Em frente… marche! Nosso furriel, acompanhe essa avantesma ao longo da parada até ele estar afinado na marcha que nem um relógio de pêndulo. Se for preciso fique esse nabo o resto da manhã, entende?»
O Pincariço suspirou profundo. Já conhecia sobejamente a receita.
«Par ou ímpar?» sussurrou o Fonseca.
«Vaaaiii-teee f...»
Estivemos uma hora inteira a marchar debaixo de chuva. Finalmente veio a ordem desejada:
«Pelotão, des... troçar!»
Era o que queríamos ouvir. Cada um a ver se corria mais do que o outro. Só se ouvia praguejar de cabrão do alferes para cima.
Já recolhido nos claustros com os outros cadetes, reparei no Valinho ainda à chuva, aparentemente com vontade de se molhar mais um pouco. A sua indiferença à chuva tinha uma explicação lógica, mas o comandante não sabia de nada. Como resultado, o Valinho recebeu um louvor por espírito de sacrifício e abnegação. E outras tantas palavras bonitas que fizeram o Valinho inchar como um peru.
O prémio dado pelo comandante foi recebido pela malta com muito gozo. É que o Valinho simplesmente tinha dificuldade em correr porque em Vendas Novas passou-lhe por cima dum pé a roda de um canhão de obus catorze. Teve sorte no meio da desgraça. Baixou à enfermaria e deram-no logo como incapaz, passando aos serviços auxiliares.
Quanto ao alferes Braga que leu o louvor em voz alta com o pelotão formado, não conseguiu conter um sorriso irónico. Claro que ele também sabia que o desgraçado do Valinho pertencia à família dos vinte e nove, trinta.
«Mais grave ainda. O meu filho chegou a levar chapadas!»
«Bateste-lhe?»
«Claro que não, Mário. Ele foi esbofeteado mais que uma vez e nunca viu quem o esbofeteou.»
«Uhm... Foi de noite?»
«Acontecia a qualquer hora do dia...»
«E só agora me dizes!»
«Foi para te apanhar de surpresa.»
«Ah sim. Parece que o fantasma simpatizou comigo e não me chateou. De facto não senti nada.»
Humilhante! Digamos, outro gozo. Agora vindo de um hóspede da casa que todos sentiam e nunca ninguém viu. E que eu nem senti!
«Nem na sala?»
«Nem na sala.»
«Precisamente o local mais habitado...»
E eu que não dei conta de nada!
Onde estavam as minhas percepções extra-sensoriais?
A não ser que o Almeida me tivesse contado uma história, daquelas de embalar.
Esta ida ao Porto, tirando a visita de saudade que fiz ao quartel, foi principalmente, um gozo aos meus dons. Ou um aviso para que me fechasse e não transmitisse para o exterior tudo o que se passava de estranho à minha volta.
Bem me tinha avisado a Lara (1).
«Mário, cuidado. O que estás a contar-me, não contes a ninguém. Podem pensar que não estás bom da cabeça!»
Todos os dias nascem interrogações sobre a realidade enganadora do outro lado da porta. Aparentemente estou na zona de transição. Digo aparentemente, pois preocupa-me a possibilidade de tudo não passar de uma alucinação provocada pelo fortalecimento do subconsciente. Cavalo à solta, de instinto aguçado, vai controlando as minhas defesas que se arrastam ao sabor do aleatório, até as coisas, boas ou más, acontecerem.
Tudo tem o seu timing. Por exemplo, ontem estava no quintal e fazia exercícios físicos, sob a tutela do meu primo Justino que ia registando numa folha os números que quantificavam a desejada evolução que tardava em aparecer. Eram as flexões, os exercícios para os abdominais, os lançamentos do peso, a corrida, o salto em altura. Nada de cambalhotas por causa do empedrado do quintal e não só. Nunca gostei de dar cambalhotas. E pasmem. No quinto ano do liceu fiz parte de uma classe especial de ginástica.
Parecia que estava a levar a sério a tentativa de melhorar os índices físicos. Preparava-me meticulosamente para um objetivo não definido. Tal como Fernando Pessoa, também não sabia o que me esperava o amanhã. De certeza que ia ser muito diferente de hoje.De repente, os objetivos estavam definidos. Azar o meu! Em agosto ia para a tropa e deixava o curso a meio.
Acabaria alguma vez o curso?
Um interrogação que se punha. Havia vozes, vindas dos ditos velhos do Restelo, que falavam duma congelação provocada pelo marasmo da vida militar.
Portanto, sem apelo nem agravo, o Porto ia ser o meu novo destino…
Para minha boa sorte ia fazer a recruta no Porto e não em Mafra. Uma recruta leve, perfeitamente ao meu alcance. Sem mácula, ou “cunhas”, penso. Nunca conhecerei a verdade.
Passados três meses de recruta adivinhei que teria um resto duma tropa tranquila, isto caso não fosse mobilizado para a guerra. Sem surpresas de maior, enquanto muitas vidas desgraçadamente se perdiam na guerra do Ultramar e outras acabavam estropiadas, física ou psiquicamente, os meus momentos militares estavam a ser quase sempre calmos, com poucos sobressaltos.
Fiz então parte de um “grandioso” pelotão de futuros oficiais milicianos ineptos e oportunistas, alguns porque não conseguiam ultrapassar um simples muro de terceira categoria, saltar o galho, ou subir ao pórtico, e outros porque fingiam ter dificuldades, pura e simplesmente. O seu problema não era só fingimento. Havia muito medo e cobardia à mistura. De certa forma ganhei vantagem porque não fui mobilizado para a guerra. Mas congelei. Congelei durante três anos e três meses ao ser surpreendido a meio do curso. Isto não contando com o tempo de adaptação ao novo ritmo de trabalho quando passei à disponibilidade. Mais de dois anos em que tive de sobreviver num emprego que mal dava para pagar o aluguer da casa e, ao mesmo tempo, reaprender a estudar. Mas isso é outra história.
Lembro-me do discurso de despedida atabalhoado que fiz no bar da sala de oficiais, na presença do implacável comandante que carregava muito nos “ss”. Lamentei mais a “traição” de dois camaradas oficiais que também iam passar à disponibilidade e que, no momento, me passaram a “batata quente” do famigerado discurso, do que descobrir mais tarde que o comandante se estava borrifando para meia dúzia de patacoadas que um simples miliciano lançou cá para fora em menos de meia dúzia de minutos. Provavelmente queria dizer outras coisas, mas... quem tem cu tem medo.
Respirei de alívio, mas não tive um bom recomeço de vida. Sem o curso acabado, sem dinheiro, senti-me escorraçado para o deserto onde sabia que moravam os meus longos dias cinzentos.
Mas isso é a tal outra história que não cabe aqui e que fala dos tempos de humilhação e dos desenganos que tive que ultrapassar.
O inferno bem pode esperar. Ninguém me disse tais palavras, mas não saí deste belo canteiro à beira-mar plantado para dar lugar a um outro futuro me foi destinado por Deus, se é que esse Deus existe e é infinitamente Bom e Omnipotente, ou que então não existe, ou que então foi “destacado” para me guiar um tal deus menor e assim posso dizer que fui posto a novas provas, caminhos de alta pressão psicológica, tortuosos até dizer basta, alguns com meandros como os de um rio que não tem pressa em chegar à foz, cheios de afluentes que eu subia até julgar que chegava à nascente. Alongo a vista pelos horizontes do passado e sinto sempre um sabor amargo a missão não cumprida. Não fui feliz, nem fiz ninguém feliz. Não tive êxito profissional, nem fracassei. Considero-me um vulgar homem de fato cinzento que, mesmo depois de o despir, continuou sempre com ele vestido.
Não fui escolhido para “matar”, mas para viver num patamar tranquilo, destinado aos favorecidos pela sorte, com a contrapartida pesada de permanecerem desencantados com a vida, de nunca estarem satisfeitos com o que têm e de lamentarem sempre que perderam o comboio que nunca mais voltou atrás. Desse patamar estático vejo o fracasso dos meus sonhos sem poder intervir. Nunca terei o futuro que desejei. Não existe porque passou ao lado e não o vi passar.
Então, vamos lá para a minha breve carreira militar...
Não pode haver condutor mais aselha que eu. Tenho desculpa porque estou a aprender a conduzir. O ingénuo do Valdo, filho do major que gere as mobilizações fatais e comanda o destino rumo ao paraíso, confiou-me o carro e lá vamos na estrada que liga o Porto a Lisboa. O medroso (ou merdoso?) diz que não se sente seguro. Apesar de ter carta de condução, é melhor eu conduzir. Santa ignorância, a minha! Tenho meia dúzia de lições de condução que o sargento se dignou dar, mal e porcamente. Contudo, não me atrapalho. Como estou na tropa, é lógico que seja mais arrojado, mais inconsciente. A viagem continua, aparentemente sem perspectivas de sobressaltos. Atrás, o Valeriano deve pensar que já não é tão porreiro ir para Lisboa comigo ao volante. Ai não é, não. Que triste ideia tiveste, Valdo!
Três alunos num Mercedes, não contando com o sargento. Todos muito atrofiados, como é natural. O soldado-cadete agarrado ao volante, receoso dos ralhetes da besta do sargento, e os outros dois muito encolhidos, atrás, à espera do momento da tortura. Eu era um deles.
Ah!, aquela da rampa até teve graça.
O sargento da instrução mandou o Pincariço levar a alavanca das mudanças a ponto morto e puxou o travão de mão para cima. Ato contínuo, saltou do carro e pôs-se a falar com outro camarada de igual patente. A conversa ia animada. Falavam de um negócio de galinhas ou de coelhos. Apurei o ouvido. Azar do diabo. Moléstia fatal. Muitos animais mortos. Negócio completamente falhado. Conversa e mais conversa. Tretas.
Mas o que estava a acontecer no interior do carro?
Pouca coisa. O Mercedes começou a deslizar, lentamente, na rampa. Perigo iminente, pensámos os três. O "Valeriano-porreiríssimo-tudo-bem" fez cara de caso e eu encolhi-me no meu lugar, instintivamente. Parecia adivinhar o que estava para acontecer. Quanto ao Pincariço, esse agarrou-se ainda mais ao volante, sem saber o que fazer. Mas como era alentejano de gema, não perdeu a calma ou continuou a pensar com demasiada calma, mantendo em vigília o número mínimo indispensável de neurónios. Tanto fazia uma coisa como outra porque não adiantava. A sua calma era atávica. E o carro a deslizar, já dois metros à frente do sargento-instrutor, fora de controlo, a aumentar a velocidade
O Pincariço começou a desesperar, despertando enfim da letargia. Já não era sem tempo.
«Meu sargento, por favor... onde é a embraiagem?»
Ideia brilhante! Queria travar e ficou indeciso. Três pedais. O homem nunca lhe disse que havia três pedais! Lembrou-se da embraiagem. Afinal qual era o pedal da embraiagem?
Finalmente o sargento deu conta da situação. Largou de imediato o negócio fracassado dos frangos ou dos coelhos e correu para o carro. Ainda de fora, puxou mais para cima o travão de mão e ficou com ele na mão. Um carro militar era sempre imprevisível quanto à resistência do seu material.
Pânico generalizado!
«Trave, trave!, nosso cadete!»
O cadete Pincariço esforçou-se um pouco mais e encontrou finalmente a desejada embraiagem no momento em que o carro travou no muro, dez metros mais abaixo.
«Merda de vida a minha!» desabafou o sargento.
«Porreiríssimo!» deve ter filosofado o Valeriano com um sorriso entre dentes o Valeriano porque naquele dia não havia mais instrução para o grupo.
O carro foi direto para o estaleiro com a frente toda metida para dentro.
Pouco depois estávamos no nosso quarto de seis camas, por sinal uma das quatro enfermarias adaptadas para quartos. O Valeriano fumava cachimbo e deslocava-se, algo inquieto, da janela para a porta e vice-versa, procurando entender o que se tinha passado.
Mas afinal para que servia a embraiagem?
Encolheu os ombros e deixou de pensar numa coisa que era para os técnicos. Ora ele cursava Filosofia e podia ser amigo da sabedoria por outras vias.
«Porreiro! Os outros continuam na instrução e nós no bem bom...»
O Pincariço não se sentia no bem bom. Despira a camisa cinzenta e deitara-se na cama, de papo para o ar, exibindo a floresta de pêlos que lhe escondia o peito e parte dos ombros. Parecia adormecido, mas estava às voltas com a história da embraiagem. A culpa ia toda para o sargento que nunca lhe disse que havia três pedais escondidos à frente dos pés de quem guiava. E, que ele soubesse, só alguns sensitivos é que viam com os pés.
«Não gastes mais as solas das botas, Valeriano que ainda pagas umas novas à tropa» disse eu, algo irritado. «Vê se te acalmas, homem!»
«Já viste o que podia ter acontecido?»
«Não te chega o carro enfeixar-se na parede? Querias também que batêssemos com os cornos na dita cuja?»
«Mas podia ter sido pior!»
Entretanto apareceu o Fonseca e viu o Pincariço de papo para o ar e com as mãos na nuca. Aproveitava ao máximo o prazer que lhe davam os raios solares que entravam por uma das várias janelas.
Fez-me um sinal de silêncio e fiquei na expectativa. Então, pé ante pé, aproximou-se da cama do Pincariço e sorriu para mim. Acto imediato, agarrou num tufo de pêlos do seu peito.
«Par ou ímpar?» perguntou, piscando o olho para nós.
Ao mesmo tempo segurava com dois dedos um tufo do peludo Pincariço que, entretanto, ainda não dava um mínimo sinal de reação. No momento pensava nas delícias escaldantes da planície alentejana e na possibilidade de dar uma queca, ao luar, na moça dos recados da tia Gracinda. Nem que fosse debaixo de um chaparro. A gordinha não queria outra coisa! Andava sempre a roçar-se por ele na cozinha, que nem uma cadela com o cio. E quando mais cedo, melhor. Pimba, pimba! Tinha-lhe dito que era romântica e queria passear com ele ao luar. Ele lhe dava o luar em noite de lua nova no fim-de-semana que se aproximava.
«Fecha os olhos, Clotilde e imagina que está uma noite de luar.»
«Ah, Pincariço! E está mesmo uma bela noite de luar.»
«Até vais ver estrelas e todo o cortejo astral. Cometas e assim.»
Curiosamente, aquele alentejano dum cabrão já era lesto para esses trabalhos. Vá lá entender. Mistérios da vida...
Só de pensar na moça e em todo o resto, fechou os olhos e começou a sonhar. Que boa montada em toda a sela. Aguenta, Clotilde que lá vai obra!
Mas o que era aquilo?
«Está... quie...to, Fon...se...ca...»
O outro, ao mesmo tempo que exibia o troféu entre os dedos, voltou a perguntar:
«Par ou ímpar?»
Estranhamente o Pincariço continuou a sonhar, impávido e sereno, com a tal moça rechonchuda que ia comer com todos os requintes no fim-de-semana.
Voltando…A princípio, tudo bem. Primeiro contacto com o carro. Um apalpar das mudanças. Travão de mão. Pedais (eram três!). Motor de arranque. Estava tudo identificado.
E aí fomos nós. Um esticão. Primeira para segunda. Afinal, era fácil. Mas o carro estava aos solavancos, porquê?
«Dá-lhe gás» aconselhou o Valdo, entusiasmado. «Carrega mais no acelerador, pá!»
Onde era o acelerador?
Pincariço! Pincariço!
«Não traves nas curvas! Acelera agora, porra...»
Maldita confusão. Parecia mesmo uma barata tonta. Conduzir era muito mais complicado do que parecia. Principalmente quando a experiência era pouca ou quase nenhuma.
«Ainda vais mais devagar que a tartaruga do Valdo, porra!»
Provocação do Valeriano que desvalorizei parcialmente. Não devia ter reagido, mas enervei-me ainda mais ao sentir-me picado.
«Vá lá, Mário, o carro está a pedir a redução de segunda para terceira. O motor queixou-se de novo, não ouviste? E não te esqueças de acelerar em ponto morto.»
«Devias ter embalado mais o carro!» sentenciou o filósofo.
Irritei-me com a história. O facto é que ainda não tinha os ouvidos afinados para estas contingências automobilísticas.
«Queres vir para aqui?»
Arroz queimado. Estava a perder o controlo por causa daquele caniço pensante. Afinal travava ou reduzia?
Decidi mudar de terceira para quarta numa curva apertada, o que significava meter uma mudança no momento menos aconselhável. Pânico imediato, mas o carro aguentou-se bem.
«Quase fomos para as couves!» exclamou o Valeriano.
«Quais couves, qual carapuça. Agora é que estou a dominar a fera. Aceleremos.»
Curva e contracurva. Tudo muito bem. Outra curva e esta ainda mais apertada que a outra. Fui apanhado à traição. Não contava. Juro que não contava!
«Reduz, reduz!» «Com um caneco!
Tentei a redução já demasiado tarde. Por sorte não travei. O carro ficou em ponto morto e começou a fugir para a esquerda. Deixei-o ir. Foi o melhor que a minha intuição aconselhou. E em boa hora. Felizmente que não vinha nenhum outro carro em sentido contrário.
O grande sacana daquele sargento-instrutor que só pensava no negócio dos coelhos e isso fazia tudo menos ensinar-nos a conduzir. O exemplo estava patente no caso da rampa. Em teoria era tudo fácil. O resto vinha a seguir. Ó se vinha!
Levei o carro até à mão e encostei de imediato à berma. Não ganhara para o susto.
«Para mim já chegou a experiência. Volta para o volante antes que haja uma desgraça. Ainda não me sinto devidamente preparado.»
Nunca devia ter aceitado o convite do Valdo. Nitidamente ainda não tinha unhas para conduzir um carro, qualquer que ele fosse.
«Porreiro!» exclamou o Valeriano. «Agora é que já posso dormir descansado.»
Fiz-lhe um manguito e explodi:
«Vai mas é ver se estou lá fora!»
A partir daquele momento não ultrapassámos os cinquenta. Não houve mais sobressaltos. Chegámos tarde a Lisboa, mas sãos e salvos.
Se fosse contar tudo o que me aconteceu na tropa ainda hoje estava de volta com esta história.
Aquela do louvor foi surrealista. A parada era um campo aberto onde todo o mundo militar podia fazer juízos de valor do que se passava e não passava aí.
Nessa manhã chovia torrencialmente e o cagão do alferes Braga, instrutor do nosso pelotão, não desarmava e apertava connosco. Molhados até aos ossos, maldizíamos a triste sorte de estarmos reduzidos à ínfima espécie de cadetes. Ordem unida, quer chovesse ou fizesse sol. E bico calado, senão aquele militarão de carreira, mais vermelho que um pimento maduro, ainda nos dizia das boas. «Esquerdo, direito. Direita, ro...dar! Esquerdo, direito... um dois... Pelotão... alto!»
Inevitável. O Pincariço chocou com o camarada da frente.
Este virou-se para trás e vociferou:
«Alentejano dum cabrão!»
«Que se passa aí...?» perguntou o alferes.
Ninguém se acusou.
E não caía um raio em cima do alferes?
Fiquei mais que estragado ao adivinhar que o pior vinha a seguir. Resguardado da chuva, o comandante seguia, à distância, a marcha do pelotão. O alferes também o viu e esmerou-se ainda mais, subindo o tom da voz:
«Esquerdo, direito... um dois. Vamos a mostrar cagança, suas "amélias"! E não quero ninguém com o passo trocado. Já sabem como se destroça. Vejam bem...»
E exemplificou:
«Assim... um, dois.»
Foi o caos. Parte do pessoal quis experimentar e o alferes levou as mãos à cabeça.
«Mas que merda é esta? Vamos lá... Esquerdo, direito... esquerdo, direito... um, dois!»
Triste ideia a sua! E o comandante a assistir…
A marcha estava para dar e durar. O comandante não arredava pé e o alferes mostrava-se mais cheio de cagança do que nunca.
«Senhor Pincariço! Mais parece um vinte e nove, trinta improvisado! Que é que lhe deu hoje? Isto é para homens de barba rija. Ora marche lá como deve ser se não quer ter um trabalho especial daqui a pouco.»
Caramba! Além de ser peludo, tinha uma barba rija. Cerradíssima. E não dava uma para a caixa.
Mas em que consistia esse trabalho especial?
O Pincariço já conhecia a receita de cor. Era muito simples. O alferes metia-lhe uma vassoura nas unhas e dava uma ordem:
«Ombro… arma!»
E a seguir:
«Em frente… marche! Nosso furriel, acompanhe essa avantesma ao longo da parada até ele estar afinado na marcha que nem um relógio de pêndulo. Se for preciso fique esse nabo o resto da manhã, entende?»
O Pincariço suspirou profundo. Já conhecia sobejamente a receita.
«Par ou ímpar?» sussurrou o Fonseca.
«Vaaaiii-teee f...»
Estivemos uma hora inteira a marchar debaixo de chuva. Finalmente veio a ordem desejada:
«Pelotão, des... troçar!»
Era o que queríamos ouvir. Cada um a ver se corria mais do que o outro. Só se ouvia praguejar de cabrão do alferes para cima.
Já recolhido nos claustros com os outros cadetes, reparei no Valinho ainda à chuva, aparentemente com vontade de se molhar mais um pouco. A sua indiferença à chuva tinha uma explicação lógica, mas o comandante não sabia de nada. Como resultado, o Valinho recebeu um louvor por espírito de sacrifício e abnegação. E outras tantas palavras bonitas que fizeram o Valinho inchar como um peru.
O prémio dado pelo comandante foi recebido pela malta com muito gozo. É que o Valinho simplesmente tinha dificuldade em correr porque em Vendas Novas passou-lhe por cima dum pé a roda de um canhão de obus catorze. Teve sorte no meio da desgraça. Baixou à enfermaria e deram-no logo como incapaz, passando aos serviços auxiliares.
Quanto ao alferes Braga que leu o louvor em voz alta com o pelotão formado, não conseguiu conter um sorriso irónico. Claro que ele também sabia que o desgraçado do Valinho pertencia à família dos vinte e nove, trinta.
Sabia que o meu calcanhar de Aquiles, não tomando em conta a aprendizagem, cheia de obstáculos, da arte de bem conduzir, esteve sempre presente na cambalhota para a frente dada na companhia importuna da velhinha espingarda Mauser. Cambalhotas, só se fossem dadas à retaguarda, no tempo das peladinhas em que a inércia pregava partidas e o corpo respondia por instinto. Nesse tempo era o ás da bola e das deslocações sem a mesma, que conduziam quase sempre a uma travessia do deserto que prefiro esquecer. Não gostava muito do salto para o galho, mas nunca me neguei nem sequer falhei. O Valdo, o Pincariço e o Luís (entre outros) subiam as escadas toscas com as pernas tremelicando e, lá em cima, quase se borravam ao contemplar o galho em frente, ameaçador. Depois olhavam a medo para baixo e ficava o caldo definitivamente entornado. Pronto. Missão por cumprir, por mais que o alferes lhes chamasse amélias e outros nomes menos edificantes. Avisei-os mais que uma vez que problema no galho era olhar para baixo antes de saltar. Por mais que fossem avisados, não resistiam à tentação de olhar para o abismo. Diziam que não com a cabeça e nada a fazer senão descerem as escadas sob o gozo dos valentes que enfrentavam o galho, o pórtico e outras coisas quejandas, como muros.Na carreira de tiro, com Mauser e pistola Walther, era um autêntico desastre. Raramente metia uma bala no alvo, o que me danava. Não tinha lógica. Até porque era perito em acertar no alvo quando atirava pedras.
Só descobri uns anos mais tarde a razão quando comecei a ver os rostos dos alunos, sentados nas suas carteiras, cada vez mais desfocados.
Diagnóstico fácil do oftalmologista: miopia.
Falando da pista de obstáculos, nunca tive problemas com muros de primeira categoria ou paliçadas e outros obstáculos. O único problema residia em transportar na parte final um saco de areia com mais de vinte quilos. Faltavam-me as forças, não por ser a parte final mas pela dificuldade em transportar o saco.
Quanto ao primeiro trabalho de estrada que fiz, com extensão de três quilómetros, foi obra para esquecer. Rebentei em grande e o mesmo aconteceu a quase todos os outros. Concluí então que a preparação física, supervisionada pelo Justino, foi assaz imperfeita na parte que dizia respeito à corrida. Mas evoluí e fui resistindo bem ao aumento da quilometragem. Acabei em glória na chamada prova dos nove. Uma marcha final que tinha de tudo menos marcha. Digamos que foi a apoteose. E a dificuldade não estava só na extensão do percurso que perfazia dezassete quilómetros. Essa marcha, que não era marcha, teria que ser feita sempre a correr e com traje de gala: fato de macaco, espingarda Mauser e botifarras, um acréscimo insignificante de peso, diga-se ironicamente. Corriam também com a nossa nata os soldados milicianos do C.S.M. Um despique que prometia algumas surpresas.
A princípio estava apreensivo pois diziam cobras e lagartos desse trabalho de estrada. Optei por seguir no meio do pelotão.
Logo para começar, um aperitivo. O alferes Braga resolveu puxar a frio e esfrangalhou o grupo. Bufei, algo desagradado. Com grande esforço consegui acompanhar o grupo principal. Sabia que na cauda, uma Morris levava uma vassoura bem à vista. Uma tentação sintomática. Teria muitos clientes, principalmente os do meu curso. Os fracos e os que fingiam de fracos.
Deixei de olhar para trás e dei mais atenção à corrida pois era perigoso perder o contacto com os da frente. O alferes controlava entretanto as operações, deixando-se ficar para trás com o fim de incentivar aqueles mais desanimados, os coxos 29-30, como o tenaz Valinho que enganou involuntariamente o comandante e recebeu um louvor, os menos coxos que pensavam no descanso que lhes proporcionava a Morris-vassoura, os ronhas e também os acidentados que tinham tropeçado nos altos ou nos baixos do acidentado do terreno. Entretanto, à frente, aproveitava-se para refrear a corrida e conversar um pouco. Era sol de pouca dura. Logo o alferes chegava e acelerava o ritmo da corrida.
Os quilómetros pesavam-me já nas pernas mas acreditava que ainda conseguia aguentar.
Dei conta que só éramos seis. Cinco do C.S.M. e eu, a minha augusta pessoa.
«Último quilómetro. Vamos ver quem tem canetas. Aguentem o esticão.»
Amaldiçoei o alferes e todas as suas caganças. Talvez por isso fui buscar as últimas energias à raiva que sentia. Corria já sem sentir as pernas.
O homem queria chegar sozinho ou quê?
Suspirei de alívio. Já se via ao longe o pessoal da receção. Era o fim de uma corrida de loucos. Finalmente podia descansar.
«Bravo, Mário! O senhor esteve à altura. Por onde é que tem andado, que não o vi?»
Para o diabo as saudações do alferes que tinha sido atacado de cegueira.
Entretanto o almoço foi bacalhau com batatas e couves. O bacalhau estava muito salgado. Acho que foi de propósito porque obrigou-nos a ingerir muita água. Nesse dia, nada de vinho branco maduro ou verde tinto, este para os nortenhos.
No dia seguinte foi o almoço-convívio de despedida que teve o inevitável discurso do alferes.
«Se eu adivinhasse… o cadete Mário teria outra classificação. Lamento. O que já está, já está.»
«Ou se pudesses...» Pensei.
Com tantos filhos de "tubarões" e das cunhas feitas pelos ditos cujos, em que alguns dos protegidos nem sequer saltavam um muro de terceira categoria, como podia ele ser justo?
A pressão devia ser enorme.
Então terminei o curso com um rasgado elogio do alferes à minha pessoa. Fiquei em décimo terceiro, precisamente a meio. Alguns dos que ficaram à minha frente na classificação eram autênticas nulidades na componente física. Para mal dos meus pecados, outra componente contava muito para a classificação. A que estava ligada à condução. Sabia que não podia ter feito mais, dadas as condicionantes, para melhorar a minha classificação. Uma delas, as fortes cunhas, credenciais que ele não podia ignorar; a outra, porque a maior parte dos meus companheiros, gloriosos cadetes, abnegados até dizer chega, conduziam já os seus brutos carros na vida civil. Nem sequer conseguiram saltar um muro de terceira classe ou abraçar o galho e ficaram à minha frente.
Paciência. Estávamos a queimar os últimos dias e os dados já tinham sido lançados.
Uma realidade no horizonte: com o Valdo em último lugar parece que ninguém seria mobilizado. Tive muita sorte nesta santa tropa.
Só mais uma coisa e esta inesquecível. Despedi-me em beleza do Porto com uma monumental bebedeira.
Tudo começou com o dia passado em casa de um casal amigo, onde almocei e jantei. Eram nove da noite quando cheguei ao quartel. Naquela noite ia fazer tudo à minha maneira. Para começar, fora nomeado para cadete de dia e tinha faltado ao jantar dos soldados. Pouco me interessava. Estava como os outros que tinham optado pela Morris-vassoura.
Havia animação quando entrei no quarto. Uma viola, meia dúzia de indivíduos estranhos ao quarto e três garrafas de bebidas brancas, a saber, L34, Gin e uma aguardente velha sem marca. Toca de cantar e de beber que o resto veio por acréscimo.
Deitei-me perto da meia-noite ao ouvir no corredor a voz do oficial de dia:
«Onde está o sacana do cadete de dia?»
Logo de seguida entrou no quarto a dizer palavrões. Fez-se um silêncio impressionante. Escondi a cabeça debaixo do lençol.
«Alguém viu o cadete de dia?»
A medo o Luís perguntou:
«Quem é o gajo?»
«Se eu soubesse quem ele era bem o f...»
Pi…
«Ah!, o meu alferes não sabe. Se aqui ninguém se acusa é porque o cadete de dia pertence a outro quarto.»
«Uma merda! Vocês estão todos feitos com ele. Já venho dos outros quartos. Este é o último.»
Assunto arrumado. Não para mim. Por volta das quatro da manhã acordei muito mal disposto. Levantei-me em sobressalto e tive um vómito. Fiquei parado a meio do quarto, muito tonto. Premonição. Ia vomitar. Só tive tempo de correr para a casa de banho e sentar-me numa das sanitas. Que náuseas!
Quem me mandou meter em altas cavalarias?
Vomitei por cima e por baixo. Foi um desastre. A cabeça estava em vias de estalar e a culpa foi do L34, admiti.
Ali estive, no vale solitário onde a vaidade se apagava a deitar fora tudo o que tinha e o que não tinha. Na metafísica das causas e dos efeitos, a deitar culpas a tudo e todos menos a mim, até que dei por encerradas as limpezas da tripa e do estômago. Fiquei mais uns minutos à espera de melhoras ou de nova recaída. Sinal positivo. A intempérie tinha passado. Mais aliviado, voltei então para a cama e adormeci quase de imediato.
Acordei ao som de uma voz forte:
«Viram o cabrão do cadete de dia?»
Outra vez a vaca fria?
Sentia-me aéreo, nas nuvens. Levantei-me muito a custo e lavei-me de uma forma muito económica para o Estado.
Olhei-me ao espelho e comentei para mim:
Que grande ressaca!
Alguém disse que estava a chover e resolvi ir para a parada para ver se acabava a ressaca. De facto caía uma chuva de molha tolos. Por esse motivo, não vi qualquer BMW em movimento. A rapaziada devia estar na messe a tomar o pequeno almoço.
Só de pensar nisso senti uma revolução no estômago. Maldita bebedeira!
Foi então que tive uma ideia brilhante cujo resultado ficou para a minha história. Não esqueceria.
«Talvez que uma voltinha de moto me areje a mioleira. E é para já!»
Peguei numa BMW à sorte e montei-me nela. Pareceu-me mais pesada que nunca.
(Não me lembro como aquela geringonça funcionava, mas penso que havia um binário guiador esquerdo/pedal. Bom, isso não interessa...)
Dei algumas voltas pela parada, sempre em primeira, segunda. Nunca mais do que isso. Mas o mal foi ganhar confiança. Resolvi fazer uma experiência. Começar o trajecto do início da parada até à porta de armas. E assim foi. Meti todas as mudanças a que tinha direito e alcancei uma velocidade razoável. A meio da parada comecei a reduzir. Era lógico: meio por meio. Momento ideal para desacelerar.
Tudo corria bem e ia reduzindo a velocidade à medida que a porta de armas ficava mais próxima. Reduzi para segunda. Não entrou a mudança. Nova tentativa. Dei conta que já não havia pedal e que a porta de armas estava cada vez mais perto.
Pânico total. Numa fração de segundo vi-me a passar pela porta de armas sem ter tempo para fazer a continência ao sargento da guarda.
Foi um milagre ter conseguido curvar para a esquerda no último instante e entrar, incólume, no claustro. Consegui, finalmente, parar a moto e apeei-me com a sensação que tinha acabado de enfrentar os inimigos do infeliz D. Quixote. O susto foi tal, que decidi, convicto:
«Nunca mais!»
Verdade. Nunca mais andei de moto. A única coisa positiva desta experiência desmiolada foi que me passou de imediato o maldito peso na cabeça.
Aproximava-se o Natal. Fim da recruta e da estadia no Porto. Em breve iria ser promovido a aspirante e com a promoção viriam outras responsabilidades. Em janeiro esperava-me Coimbra, a cidade dos estudantes. Mas o destacamento não passou de um equívoco, conforme veio a acontecer.
Antes de seguir em frente, só um interlúdio. Vou falar ao de leve da Simone, uma portalegrense que me seduziu e com quem me deixei envolver. Uma mulher bonita que nunca amei, mas que me desviou o destino.
Foi em agosto. Um ano antes da ida para o Porto. Era bonita, sedutora, talvez com a maior parte dos predicados para fazer feliz um homem. Mas eu era o homem errado porque nunca a amei. Apenas me deixei seduzir e pronto. Foi curta a nossa relação. Acabei com o namoro quando caí em mim.
Um ano depois, já em tempo de recruta, tive uma pequena recaída num fim-de-semana de agosto.
A Simone estava a passar as férias em casa dos meus pais e isso representou uma pequena contrariedade para mim. Mais uma vez não ia conseguir resistir à tentação da carne. No sábado ainda tudo esteve bem. Defendi-me o melhor que pude. Mas no domingo as coisas complicaram-se porque o tio Mourinho organizou um piquenique no campo, provavelmente uma sardinhada porque não me recordo muito bem.
Tudo correu bem até antes do almoço. Igualmente durante o almoço. Só que nesse dia não se fez o habitual jogo do chinquilho em que, normalmente, só jogavam os homens.A tarde estava encoberta e convidava à sesta. Aí começou o grande problema. Não sei como foi. Só sei que foi. Deitados sob o mesmo cobertor, enrolámo-nos, beijei-a várias vezes na boca, apalpei-a e retomámos, aparentemente, uma relação interrompida. O que me valeu foi regressar ao Porto ao fim da tarde.
Acompanhou-me à estação. Demos as mãos, o que parecia ser um novo compromisso.
Antes do comboio entrar na estação, ofereceu-me uma pequena medalha de ouro que tinha gravada uma mensagem que dizia: "Deus te guarde".
Deus guardou-me, mas não quis que fosse para o aconchego da Simone. Hoje seria um homem rico. Paciência, gosto mais (e tenho orgulho) de ser um rico homem.
Quando entrei para aquele comboio ronceiro esperava-me uma noite longa para meditar em consciência e não voltar a cometer o mesmo erro.
Agora já era aspirante.
Estive menos de um mês colocado em Coimbra. Foi um equívoco nas colocações ou então um engano propositado. Tive que sair de Coimbra. Gostava da cidade e especialmente do meu pelotão 54, formado por um conjunto de homens rudes, diamantes ainda em bruto, que, aos poucos, iam sendo lapidados. Eles também gostavam do seu oficial de instrução e, de facto, eu não tinha nada a ver em atributos humanos com o alferes Braga.
Deixei-os cedo, mas tenho a certeza que, se fôssemos para a guerra, eles seguir-me-iam até ao inferno.
Foi a única experiência que tive de instrução militar, mas os homens do pelotão 54 deixaram-me muitas saudades e ainda hoje me lembro deles.
Então terminei o curso com um rasgado elogio do alferes à minha pessoa. Fiquei em décimo terceiro, precisamente a meio. Alguns dos que ficaram à minha frente na classificação eram autênticas nulidades na componente física. Para mal dos meus pecados, outra componente contava muito para a classificação. A que estava ligada à condução. Sabia que não podia ter feito mais, dadas as condicionantes, para melhorar a minha classificação. Uma delas, as fortes cunhas, credenciais que ele não podia ignorar; a outra, porque a maior parte dos meus companheiros, gloriosos cadetes, abnegados até dizer chega, conduziam já os seus brutos carros na vida civil. Nem sequer conseguiram saltar um muro de terceira classe ou abraçar o galho e ficaram à minha frente.
Paciência. Estávamos a queimar os últimos dias e os dados já tinham sido lançados.
Uma realidade no horizonte: com o Valdo em último lugar parece que ninguém seria mobilizado. Tive muita sorte nesta santa tropa.
Só mais uma coisa e esta inesquecível. Despedi-me em beleza do Porto com uma monumental bebedeira.
Tudo começou com o dia passado em casa de um casal amigo, onde almocei e jantei. Eram nove da noite quando cheguei ao quartel. Naquela noite ia fazer tudo à minha maneira. Para começar, fora nomeado para cadete de dia e tinha faltado ao jantar dos soldados. Pouco me interessava. Estava como os outros que tinham optado pela Morris-vassoura.
Havia animação quando entrei no quarto. Uma viola, meia dúzia de indivíduos estranhos ao quarto e três garrafas de bebidas brancas, a saber, L34, Gin e uma aguardente velha sem marca. Toca de cantar e de beber que o resto veio por acréscimo.
Deitei-me perto da meia-noite ao ouvir no corredor a voz do oficial de dia:
«Onde está o sacana do cadete de dia?»
Logo de seguida entrou no quarto a dizer palavrões. Fez-se um silêncio impressionante. Escondi a cabeça debaixo do lençol.
«Alguém viu o cadete de dia?»
A medo o Luís perguntou:
«Quem é o gajo?»
«Se eu soubesse quem ele era bem o f...»
Pi…
«Ah!, o meu alferes não sabe. Se aqui ninguém se acusa é porque o cadete de dia pertence a outro quarto.»
«Uma merda! Vocês estão todos feitos com ele. Já venho dos outros quartos. Este é o último.»
Assunto arrumado. Não para mim. Por volta das quatro da manhã acordei muito mal disposto. Levantei-me em sobressalto e tive um vómito. Fiquei parado a meio do quarto, muito tonto. Premonição. Ia vomitar. Só tive tempo de correr para a casa de banho e sentar-me numa das sanitas. Que náuseas!
Quem me mandou meter em altas cavalarias?
Vomitei por cima e por baixo. Foi um desastre. A cabeça estava em vias de estalar e a culpa foi do L34, admiti.
Ali estive, no vale solitário onde a vaidade se apagava a deitar fora tudo o que tinha e o que não tinha. Na metafísica das causas e dos efeitos, a deitar culpas a tudo e todos menos a mim, até que dei por encerradas as limpezas da tripa e do estômago. Fiquei mais uns minutos à espera de melhoras ou de nova recaída. Sinal positivo. A intempérie tinha passado. Mais aliviado, voltei então para a cama e adormeci quase de imediato.
Acordei ao som de uma voz forte:
«Viram o cabrão do cadete de dia?»
Outra vez a vaca fria?
Sentia-me aéreo, nas nuvens. Levantei-me muito a custo e lavei-me de uma forma muito económica para o Estado.
Olhei-me ao espelho e comentei para mim:
Que grande ressaca!
Alguém disse que estava a chover e resolvi ir para a parada para ver se acabava a ressaca. De facto caía uma chuva de molha tolos. Por esse motivo, não vi qualquer BMW em movimento. A rapaziada devia estar na messe a tomar o pequeno almoço.
Só de pensar nisso senti uma revolução no estômago. Maldita bebedeira!
Foi então que tive uma ideia brilhante cujo resultado ficou para a minha história. Não esqueceria.
«Talvez que uma voltinha de moto me areje a mioleira. E é para já!»
Peguei numa BMW à sorte e montei-me nela. Pareceu-me mais pesada que nunca.
(Não me lembro como aquela geringonça funcionava, mas penso que havia um binário guiador esquerdo/pedal. Bom, isso não interessa...)
Dei algumas voltas pela parada, sempre em primeira, segunda. Nunca mais do que isso. Mas o mal foi ganhar confiança. Resolvi fazer uma experiência. Começar o trajecto do início da parada até à porta de armas. E assim foi. Meti todas as mudanças a que tinha direito e alcancei uma velocidade razoável. A meio da parada comecei a reduzir. Era lógico: meio por meio. Momento ideal para desacelerar.
Tudo corria bem e ia reduzindo a velocidade à medida que a porta de armas ficava mais próxima. Reduzi para segunda. Não entrou a mudança. Nova tentativa. Dei conta que já não havia pedal e que a porta de armas estava cada vez mais perto.
Pânico total. Numa fração de segundo vi-me a passar pela porta de armas sem ter tempo para fazer a continência ao sargento da guarda.
Foi um milagre ter conseguido curvar para a esquerda no último instante e entrar, incólume, no claustro. Consegui, finalmente, parar a moto e apeei-me com a sensação que tinha acabado de enfrentar os inimigos do infeliz D. Quixote. O susto foi tal, que decidi, convicto:
«Nunca mais!»
Verdade. Nunca mais andei de moto. A única coisa positiva desta experiência desmiolada foi que me passou de imediato o maldito peso na cabeça.
Aproximava-se o Natal. Fim da recruta e da estadia no Porto. Em breve iria ser promovido a aspirante e com a promoção viriam outras responsabilidades. Em janeiro esperava-me Coimbra, a cidade dos estudantes. Mas o destacamento não passou de um equívoco, conforme veio a acontecer.
Antes de seguir em frente, só um interlúdio. Vou falar ao de leve da Simone, uma portalegrense que me seduziu e com quem me deixei envolver. Uma mulher bonita que nunca amei, mas que me desviou o destino.
Foi em agosto. Um ano antes da ida para o Porto. Era bonita, sedutora, talvez com a maior parte dos predicados para fazer feliz um homem. Mas eu era o homem errado porque nunca a amei. Apenas me deixei seduzir e pronto. Foi curta a nossa relação. Acabei com o namoro quando caí em mim.
Um ano depois, já em tempo de recruta, tive uma pequena recaída num fim-de-semana de agosto.
A Simone estava a passar as férias em casa dos meus pais e isso representou uma pequena contrariedade para mim. Mais uma vez não ia conseguir resistir à tentação da carne. No sábado ainda tudo esteve bem. Defendi-me o melhor que pude. Mas no domingo as coisas complicaram-se porque o tio Mourinho organizou um piquenique no campo, provavelmente uma sardinhada porque não me recordo muito bem.
Tudo correu bem até antes do almoço. Igualmente durante o almoço. Só que nesse dia não se fez o habitual jogo do chinquilho em que, normalmente, só jogavam os homens.A tarde estava encoberta e convidava à sesta. Aí começou o grande problema. Não sei como foi. Só sei que foi. Deitados sob o mesmo cobertor, enrolámo-nos, beijei-a várias vezes na boca, apalpei-a e retomámos, aparentemente, uma relação interrompida. O que me valeu foi regressar ao Porto ao fim da tarde.
Acompanhou-me à estação. Demos as mãos, o que parecia ser um novo compromisso.
Antes do comboio entrar na estação, ofereceu-me uma pequena medalha de ouro que tinha gravada uma mensagem que dizia: "Deus te guarde".
Deus guardou-me, mas não quis que fosse para o aconchego da Simone. Hoje seria um homem rico. Paciência, gosto mais (e tenho orgulho) de ser um rico homem.
Quando entrei para aquele comboio ronceiro esperava-me uma noite longa para meditar em consciência e não voltar a cometer o mesmo erro.
Agora já era aspirante.
Estive menos de um mês colocado em Coimbra. Foi um equívoco nas colocações ou então um engano propositado. Tive que sair de Coimbra. Gostava da cidade e especialmente do meu pelotão 54, formado por um conjunto de homens rudes, diamantes ainda em bruto, que, aos poucos, iam sendo lapidados. Eles também gostavam do seu oficial de instrução e, de facto, eu não tinha nada a ver em atributos humanos com o alferes Braga.
Deixei-os cedo, mas tenho a certeza que, se fôssemos para a guerra, eles seguir-me-iam até ao inferno.
Foi a única experiência que tive de instrução militar, mas os homens do pelotão 54 deixaram-me muitas saudades e ainda hoje me lembro deles.



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