Descobri-os por acaso e nunca os conheci. Parece não ter lógica. Vou complicar um pouco a situação se afirmar que este caso está relacionado com selos de correio que levaram cartas de um amor envergonhado de Portugal para Espanha. E se quiser complicar ainda mais, volto a dizer que nunca os conheci, mas descobri-os. Torna-se arreliadora a situação se continuar nesta teimosia de ser e não ser, o que vai contrariar o princípio lógico da não contradição.
Vamos aos dados. Estou a tecer algumas considerações sobre o caso de um homem e uma mulher que tiveram uma ligação há mais de dez anos, a qual foi quebrada, talvez recentemente, por razões desconhecidas que provocaram ódio ou indiferença de uma das partes ou então de ambas, facto que ocorreu, provavelmente, muito perto do momento em que os conheci, sem os chegar a conhecer, insisto. Aliás, conheci-a melhor do que ele. Para ser franco, tudo o que sei dele em nada abona o seu carácter, mas pode ter havido outros motivos que, naturalmente, desconheço e que pesaram a seu favor. Nunca se saberá a verdade. Por exemplo, terá reagido negativamente porque ela lhe foi infiel. Por exemplo também, já não pertence a este mundo e isso pesará a seu favor só pelo motivo de não o culpar pela atitude de que era suposto ter tomado.
Agora não estou a falar de um caso de infidelidade. Supondo que, em tempos recuados, ofereci um colar de fantasia à minha namorada, de preferência de peças azuis e se ela, depois do namoro acabado, mo tivesse devolvido, teria destruído o colar e espalhado a esmo, na rua, uma a uma, as peças. Já o fiz e o instinto diz-me que voltaria a fazê-lo de novo, muitos anos mais tarde, se suspeitasse que ela queria minar-me a razão. Mas isso é outra história bem mais complicada que não cabe neste contexto. Só uma adenda: ela ela nunca me minou a razão.
Voltando ao caso do homem e da mulher de quem tenho tentado falar, não sei se existiu apenas romance. Ou amor. Talvez paixão. É o mais certo. O que quer que tenha acontecido morreu na praia, sem glória, votado ao desprezo, num passeio da Alameda das Linhas de Torres.
Agora que está aberto o primeiro rasgo para traçar o caminho, basta de mistérios mas ainda vou dizer, talvez pela última vez, que os descobri por acidente e de facto nunca os conheci.
Vamos aos dados. Estou a tecer algumas considerações sobre o caso de um homem e uma mulher que tiveram uma ligação há mais de dez anos, a qual foi quebrada, talvez recentemente, por razões desconhecidas que provocaram ódio ou indiferença de uma das partes ou então de ambas, facto que ocorreu, provavelmente, muito perto do momento em que os conheci, sem os chegar a conhecer, insisto. Aliás, conheci-a melhor do que ele. Para ser franco, tudo o que sei dele em nada abona o seu carácter, mas pode ter havido outros motivos que, naturalmente, desconheço e que pesaram a seu favor. Nunca se saberá a verdade. Por exemplo, terá reagido negativamente porque ela lhe foi infiel. Por exemplo também, já não pertence a este mundo e isso pesará a seu favor só pelo motivo de não o culpar pela atitude de que era suposto ter tomado.
Agora não estou a falar de um caso de infidelidade. Supondo que, em tempos recuados, ofereci um colar de fantasia à minha namorada, de preferência de peças azuis e se ela, depois do namoro acabado, mo tivesse devolvido, teria destruído o colar e espalhado a esmo, na rua, uma a uma, as peças. Já o fiz e o instinto diz-me que voltaria a fazê-lo de novo, muitos anos mais tarde, se suspeitasse que ela queria minar-me a razão. Mas isso é outra história bem mais complicada que não cabe neste contexto. Só uma adenda: ela ela nunca me minou a razão.
Voltando ao caso do homem e da mulher de quem tenho tentado falar, não sei se existiu apenas romance. Ou amor. Talvez paixão. É o mais certo. O que quer que tenha acontecido morreu na praia, sem glória, votado ao desprezo, num passeio da Alameda das Linhas de Torres.
Agora que está aberto o primeiro rasgo para traçar o caminho, basta de mistérios mas ainda vou dizer, talvez pela última vez, que os descobri por acidente e de facto nunca os conheci.
Há meses, numa manhã igual a muitas outras, saí de casa com o intuito de fazer um pouco de exercício pedestre no renovado parque das Conchas. Ao mesmo tempo, que desenferrujava as pernas, punha ordem nos meus pensamentos dispersos, digamos mesmo, caóticos. Uma relação amorosa encaminhava-se para um beco sem saída e tinha que mudar de rumo. Isto é: pôr termo à mesma.
Quando saí de casa nessa manhã ainda estava a digerir essa situação e queria pensar melhor se devia manter-me em silêncio ou se, pelo contrário, era mais favorável ter uma conversa a sério com ela para tudo voltar outra vez à estaca zero. Não adiantava falar. Era mais do mesmo. Mas ainda assim, ia pensar melhor na quinta das Conchas, enquanto martirizava o esqueleto com voltas a seguir a voltas ao circuito habitual.
Atravessei a avenida para o outro lado e hesitei entre seguir pelo caminho que ia desembocar na entrada sul do metro ou pelo outro, ao longo do passeio. A segunda opção era a mais lógica. Mesmo assim, parei, ainda indeciso.
Indeciso? Sim, mas por outra razão. O instinto de filatelista ferrenho deixou-me pregado ao chão. Não queria acreditar!
Observei com mais atenção. Selos colados num sobrescrito! Apenas isso. Um pormenor insignificante para muita gente e muito sério para mim. Mesmo muito sério.
Baixei-me para fazer uma melhor avaliação do objeto achado. O sobrescrito parecia um pouco maltratado, pois apresentava sinais de ter sido pisado mais do que uma vez. Os selos estavam em bom estado, pelo que peguei no sobrescrito. Um deles era de uma taxa alta.
«Que sorte!» deixei escapar.
Movido por uma curiosidade natural, verifiquei que o destino da carta era Espanha e o destinatário um tal Guilherme. Quanto ao remetente tive maior dificuldade. Parecia-me ser Maria Liliana. Datava de mil novecentos e noventa e dois e acabava de morrer algo ingloriamente nas imediações duma sarjeta. Uma caligrafia bonita, artística, bem feminina, com poucos erros ortográficos. Mas havia mais. O sobrescrito tinha a missiva no interior.
Fiz uma pausa de espera enquanto desdobrava as folhas. Talvez lesse até ao fim e talvez não lesse. Dependia do conteúdo. Do sumo.
Decidi continuar a caminhada até ao parque. Em vez de dar a minha volta habitual, a curiosidade obrigou-me logo a procurar um banco desocupado, onde me sentei. Saquei de imediato as duas folhas pautadas e comecei a ler...
11 de Maio de 1992
Olá...
Esta deve ser a última carta que lhe escrevo, já que você está de volta. Vou ver se a ponho rapidamente no correio para aí chegar ainda durante esta semana.
Sabe, hoje fui às aulas. Não me apetecia nada ir mas depois gostei. Foi uma aula de Direito Penal II. O que foi óptimo pois consegui logo responder a uma pergunta que ninguém sabia.
[...]
Também combinei já com a Zé que esta semana a seguir às aulas, na quarta e quinta-feira que são os dias em que saímos mais cedo, irmos um bocadinho à praia. Nem imagine, fiquei logo branca depois de vir daí. O queimado durou para aí cinco dias no máximo.
[...]
Lembra-se que lhe falei daquela exposição de jóias da coroa? Afinal acabei por não ter tempo para ir ver e como esta semana também não vou poder, gostava, se calhar, de ir consigo. O que acha? Se não quiser ir eu posso combinar com outras pessoas, que a Leninha também achava piada ver. Eu não sei, mas acho que devia gostar.
Quando comecei a escrever pensei que não ia ter muito para escrever, mas afinal já escrevi uma folha.
Ainda tenho mais uma notícia: a minha irmã deixou de fumar. Ela usou uns adesivos que se põem, acho que de nicotina e deu resultado. Agora a Madalena e a Teresa também vão tentar e vou-me mentalizar para fazer o mesmo. Como a Teresa tenta, eu cá em casa com ela a fazer um esforço talvez consiga. Eu também sou capaz de conseguir. Que acha?
Agora é que não tenho mesmo mais novidades. Com certeza que vais ler esta minha carta à noite, quando chegares. Por isso dorme bem.
Muitos, muitos beijinhos.
Marie
Não tenho escrúpulos em divulgar o conteúdo desta carta porque ela foi abandonada na via pública muito provavelmente pelo Guilherme, ofendido por qualquer motivo. Ou então foi a Marie quem deitou fora a carta que ele lhe devolveu, despeitado.
A primeira dedução que fiz é que a Marie era uma estudante de Direito, tímida, com boa formação moral, que tinha apenas um círculo de amigas e que pertencia sem dúvida a um estrato cultural de nível médio-alto, com um estilo afetado por tratar muitas vezes por “você” o namorado. Porque era bem proceder assim e estava tudo dito.
Como se apagou aquele fogo, se é que chegou a haver fogo?
Mistério dos mistérios. É muito provável que nunca venha a saber. A não ser que um dos dois leia estas linhas e queira intervir.
Mais tarde encontrei outras duas cartas na mesma zona. O conteúdo era parecido com o da primeira carta. Interrogava-me sobre os motivos que tinham levado o namorado a deixar ao desprezo as três cartas de amor Também podia ter sido ela. Ou uma terceira pessoa. Mas estava mais virado para a hipótese de ter sido ele o autor da ação. Da má ação.
E ela, com o seu amor em Espanha, não o terá traído num momento de fraqueza?
Pouco mais posso especular sobre este caso.
Por vezes sinto vontade de contactar a Marie, uma vez que tenho a sua antiga morada e não custa nada verificar se continua a morar no mesmo sítio, ou se moram lá familiares. Mas não quero forçar a nota. Prefiro que tudo corra ao sabor do acaso, deixando a história em suspenso e ficando só a saber que o seu amor morava, nesse tempo, em Espanha e que, mais tarde, um motivo grave levou este a abandonar em plena via pública, pelo menos três cartas de amor. Para mim, um crime grave.
Porque não destruir as cartas?
Preferiu abandoná-las junto a uma sarjeta. Tudo bem. Talvez tivesse estado no seu direito. Mas para mim, tudo mal.
Nunca os conheci pessoalmente. Dois namorados que romperam uma ligação, desiludidos sei lá porquê, zangados um com o outro, com a vida, talvez (quem sabe?) também zangados com eles próprios.
Por um grande amor é-se capaz de fazer tudo, até de chegar à baixeza de esse amor gerar o ódio. Cada um destes sentimentos poderosos está no seu extremo, mas eles tocam-se muitas mais vezes do que se pensa.
Basta de especulações. É tempo de dizer que as palavras estão gastas. Mas antes disso, faço ainda um último apelo aos amigos ou amigas deste casal de desconhecidos. Que a história se solte e a verdade venha à tona da água esclarecendo quem abandonou aquelas cartas na praça pública.
Dirijo-me aos dois, Marie e Guilherme...
Talvez nunca venha a saber que rumos tomaram. Contudo, o mundo dá muitas voltas e nunca se conhece a volta de amanhã. Até porque decidi que a história não acaba aqui...
O tempo correu. Incontrolável. Imparável. E imprevisível, como de costume...
Foi estranho o que me aconteceu naquela manhã de inverno em que encontrei uma carta selada na caixa do correio.
Mas... estranho...?
Há anos que mais de noventa por cento das cartas deixaram de ser franqueadas com selos postais. Por estas e por outras é que a filatelia e os filatelistas estavam de rastos, já para não falar de um escândalo ligado a certas firmas que negociavam em selos e que vendiam a mesma série a mais que uma pessoa.
A carta vinha endereçada a mim. Tudo bem. Morada certa. Só que no interior do sobrescrito havia apenas uma folha branca de pequeno formato que tinha manuscrita uma morada que li mais que uma vez sem que me desse uma luz, um sinal.
«Intrigante!» pensei no momento. «Que se passa com esta morada?»
Deixei ficar a carta na caixa do correio com a sensação que havia um problema que não conseguia resolver. Aquela morada não me dizia nada. Absolutamente nada, pensei enquanto saía para a rua. Ia dar as minhas voltas habituais de manutenção lá em baixo, no parque. Talvez não fosse a manhã ideal, porque soprava um vento agreste, nada convidativo, e ameaçava chover. Talvez. Mas segui em frente e sabia bem porquê.
«Pois, Mário, fazes bem.» Pensei. «Tens que tratar do esqueleto. Olha-me para essa barriga de major lateiro!»
Quando me preparava para atravessar a Alameda, esperando pelo sinal para peões, olhei fixamente para o passeio do outro lado e deixei-me ficar parado, absorto em pensamentos difusos que nada me traziam de novo.
Foi então que me lembrei das três cartas amorosas de Marie para Guilherme que tinha, em tempos, encontrado abandonadas precisamente no sítio para onde estava a olhar. Primeiro apareceu uma e depois mais duas. Cartas que tinham feito a sua viagem até Espanha e cerca de dez anos mais tarde estavam de regresso à terra mãe, da forma mais inglória, provavelmente para Marie, com a agravante de jazerem próximo de uma sarjeta. Nunca consegui saber o que aconteceu. Quem deitou fora as cartas e por que motivo.
De repente, acendeu-se uma luz na mente reativa e fiquei alerta.
Não! Não queria acreditar!
Era mesmo um caso para ter em conta. Para o diabo a monotonia das caminhadas de manutenção.
Dei meia volta. Precisava de ir a casa só para confirmar uma coisa que não carecia de confirmação.
A morada indicada na folha branca era a do remetente das três cartas de Marie. E também estava escrito que nessa manhã nada convidativa para dar umas voltas de manutenção no parque, embora a vontade para o fazer fosse grande, não ia seguir aquele desejo premente. Tinha outra coisa mais importante para fazer.
A partir daqui soltou-se ainda mais a imaginação do contador de histórias...
Antes de premir o botão da campainha verifiquei com cuidado se não me tinha enganado no número da porta. Afirmativo. Estava no sítio certo.
A porta abriu-se quase de imediato, como se esperassem por mim. Empurrei-a para dentro com dificuldade, dado o seu peso. Vi um patamar de chão em mosaico branco sujo alternando com vermelho tijolo. Depois meia dúzia de degraus em madeira, encerados, e a seguir outro patamar. A escada tinha continuação, como era lógico. Quanto ao elevador nem vê-lo. Tinha que subir umas boas dezenas de degraus para atingir o quarto andar e ser atendido provavelmente pela empregada.
Comecei a subida até ao calvário. Conforme tinha pensado, assim aconteceu. Uma mulher de uniforme já me esperava no último patamar. Vi-a mesmo espreitar para baixo.
«Bom dia. Venho por causa...»
Valia a pena dar uma justificação?
«Faz favor de entrar. O senhor espera-o.»
O senhor?
Mas... Então, enganei-me. Afinal não era a Marie que queria falar comigo, mas um homem. A coisa complicava-se mais do que imaginava.
Atravessámos um corredor com portas de ambos os lados e tentei adivinhar qual a porta em que ia entrar, seguindo um habitual exercício de adivinhação.
A do fundo, à esquerda?
Claro que não. Voltei a errar. Era a última, mas à direita.
A empregada bateu levemente com a mão direita fechada e fez-me um sinal para entrar. Agradeci e espreitei pela porta entreaberta. Pude ver que estava num escritório e, aparentemente, não havia ninguém no seu interior. As paredes eram brancas, quase cobertas por quadros de dimensões médias.
«Parece uma galeria de arte.» Pensei.
À esquerda, uma estante encaixava por completo na parede, deixando apenas visível um cortinado opaco, esverdeado, que devia esconder uma janela. Uma secretária e o respetivo cadeirão completavam a cena possível de ver.
«E do lado direito?» sussurrei.
Dei um passo em frente e vi um jogo de sofás pretos, em pele, fazendo conjunto com uma pequena mesa de apoio que encostava à parede. Rodei a cabeça.
«Senhor Mário Fonseca...»
Sobressaltei-me. Senti-me um cusca apanhado em flagrante..
«Desculpe tê-lo assustado.»
«Não o vi aí atrás. Julguei que não havia ninguém na sala. Mas esperava ser recebido por outra pessoa.»
«Tem razão. Lá chegaremos. Chamo-me Carlos Oliveira. Faça o favor de se sentar.»
Tentava conciliar as ideias. Mais parecia o disco de um computador que precisava de ser formatado por vias dum intruso, concretamente um vírus informático.
«Obrigado. Esperava ser recebido pela Marie.» Arrisquei.
«Tem toda a razão, mas a minha filha ausentou-se.»
«Foi a Marie quem enviou a carta?»
«Exatamente.»
«Tudo isto é um mistério.»
«Eu pensaria o mesmo. Não é o senhor que gosta de mistérios? Li, do princípio ao fim, “Portas Outras Portas”. Gostei. Faz o meu género. Ainda não deu por encerrado o blogue, pois não?»
Mas... estranho...?
Há anos que mais de noventa por cento das cartas deixaram de ser franqueadas com selos postais. Por estas e por outras é que a filatelia e os filatelistas estavam de rastos, já para não falar de um escândalo ligado a certas firmas que negociavam em selos e que vendiam a mesma série a mais que uma pessoa.
A carta vinha endereçada a mim. Tudo bem. Morada certa. Só que no interior do sobrescrito havia apenas uma folha branca de pequeno formato que tinha manuscrita uma morada que li mais que uma vez sem que me desse uma luz, um sinal.
«Intrigante!» pensei no momento. «Que se passa com esta morada?»
Deixei ficar a carta na caixa do correio com a sensação que havia um problema que não conseguia resolver. Aquela morada não me dizia nada. Absolutamente nada, pensei enquanto saía para a rua. Ia dar as minhas voltas habituais de manutenção lá em baixo, no parque. Talvez não fosse a manhã ideal, porque soprava um vento agreste, nada convidativo, e ameaçava chover. Talvez. Mas segui em frente e sabia bem porquê.
«Pois, Mário, fazes bem.» Pensei. «Tens que tratar do esqueleto. Olha-me para essa barriga de major lateiro!»
Quando me preparava para atravessar a Alameda, esperando pelo sinal para peões, olhei fixamente para o passeio do outro lado e deixei-me ficar parado, absorto em pensamentos difusos que nada me traziam de novo.
Foi então que me lembrei das três cartas amorosas de Marie para Guilherme que tinha, em tempos, encontrado abandonadas precisamente no sítio para onde estava a olhar. Primeiro apareceu uma e depois mais duas. Cartas que tinham feito a sua viagem até Espanha e cerca de dez anos mais tarde estavam de regresso à terra mãe, da forma mais inglória, provavelmente para Marie, com a agravante de jazerem próximo de uma sarjeta. Nunca consegui saber o que aconteceu. Quem deitou fora as cartas e por que motivo.
De repente, acendeu-se uma luz na mente reativa e fiquei alerta.
Não! Não queria acreditar!
Era mesmo um caso para ter em conta. Para o diabo a monotonia das caminhadas de manutenção.
Dei meia volta. Precisava de ir a casa só para confirmar uma coisa que não carecia de confirmação.
A morada indicada na folha branca era a do remetente das três cartas de Marie. E também estava escrito que nessa manhã nada convidativa para dar umas voltas de manutenção no parque, embora a vontade para o fazer fosse grande, não ia seguir aquele desejo premente. Tinha outra coisa mais importante para fazer.
A partir daqui soltou-se ainda mais a imaginação do contador de histórias...
Antes de premir o botão da campainha verifiquei com cuidado se não me tinha enganado no número da porta. Afirmativo. Estava no sítio certo.
A porta abriu-se quase de imediato, como se esperassem por mim. Empurrei-a para dentro com dificuldade, dado o seu peso. Vi um patamar de chão em mosaico branco sujo alternando com vermelho tijolo. Depois meia dúzia de degraus em madeira, encerados, e a seguir outro patamar. A escada tinha continuação, como era lógico. Quanto ao elevador nem vê-lo. Tinha que subir umas boas dezenas de degraus para atingir o quarto andar e ser atendido provavelmente pela empregada.
Comecei a subida até ao calvário. Conforme tinha pensado, assim aconteceu. Uma mulher de uniforme já me esperava no último patamar. Vi-a mesmo espreitar para baixo.
«Bom dia. Venho por causa...»
Valia a pena dar uma justificação?
«Faz favor de entrar. O senhor espera-o.»
O senhor?
Mas... Então, enganei-me. Afinal não era a Marie que queria falar comigo, mas um homem. A coisa complicava-se mais do que imaginava.
Atravessámos um corredor com portas de ambos os lados e tentei adivinhar qual a porta em que ia entrar, seguindo um habitual exercício de adivinhação.
A do fundo, à esquerda?
Claro que não. Voltei a errar. Era a última, mas à direita.
A empregada bateu levemente com a mão direita fechada e fez-me um sinal para entrar. Agradeci e espreitei pela porta entreaberta. Pude ver que estava num escritório e, aparentemente, não havia ninguém no seu interior. As paredes eram brancas, quase cobertas por quadros de dimensões médias.
«Parece uma galeria de arte.» Pensei.
À esquerda, uma estante encaixava por completo na parede, deixando apenas visível um cortinado opaco, esverdeado, que devia esconder uma janela. Uma secretária e o respetivo cadeirão completavam a cena possível de ver.
«E do lado direito?» sussurrei.
Dei um passo em frente e vi um jogo de sofás pretos, em pele, fazendo conjunto com uma pequena mesa de apoio que encostava à parede. Rodei a cabeça.
«Senhor Mário Fonseca...»
Sobressaltei-me. Senti-me um cusca apanhado em flagrante..
«Desculpe tê-lo assustado.»
«Não o vi aí atrás. Julguei que não havia ninguém na sala. Mas esperava ser recebido por outra pessoa.»
«Tem razão. Lá chegaremos. Chamo-me Carlos Oliveira. Faça o favor de se sentar.»
Tentava conciliar as ideias. Mais parecia o disco de um computador que precisava de ser formatado por vias dum intruso, concretamente um vírus informático.
«Obrigado. Esperava ser recebido pela Marie.» Arrisquei.
«Tem toda a razão, mas a minha filha ausentou-se.»
«Foi a Marie quem enviou a carta?»
«Exatamente.»
«Tudo isto é um mistério.»
«Eu pensaria o mesmo. Não é o senhor que gosta de mistérios? Li, do princípio ao fim, “Portas Outras Portas”. Gostei. Faz o meu género. Ainda não deu por encerrado o blogue, pois não?»
Não lhe disse que o blogue era do António.
«Obrigado. Gosto de mistérios, não nego. Relativamente ao fecho desse blogue, não está ainda nos meus horizontes.»
Procurei uma posição mais cómoda no sofá, cruzando a perna direita sobre a esquerda.
«Bebe alguma coisa?»
«Obrigado. Talvez um whisky. Simples. Mas porque não está presente a interessada?»
Não respondeu de imediato. Preparava-me a bebida.
«Obrigado.»
«Não tem de quê. A Marie não pôde vir.»
«E o Guilherme?»
Atirei o barro à parede.
«Há muito que deixou de fazer parte da sua vida.»
«Trocou-a por outra?»
«Não. Precisamente o contrário.»
«Fica assim desvendado o mistério das cartas abandonadas na Alameda. Despeito. Caso encerrado.»
«Engana-se. O Guilherme morreu vítima de um estúpido acidente de viação, dois anos depois de terem acabado a relação. Piso húmido e velocidade excessiva.»
«Então persiste o mistério das cartas abandonadas.»
«Obrigado. Gosto de mistérios, não nego. Relativamente ao fecho desse blogue, não está ainda nos meus horizontes.»
Procurei uma posição mais cómoda no sofá, cruzando a perna direita sobre a esquerda.
«Bebe alguma coisa?»
«Obrigado. Talvez um whisky. Simples. Mas porque não está presente a interessada?»
Não respondeu de imediato. Preparava-me a bebida.
«Obrigado.»
«Não tem de quê. A Marie não pôde vir.»
«E o Guilherme?»
Atirei o barro à parede.
«Há muito que deixou de fazer parte da sua vida.»
«Trocou-a por outra?»
«Não. Precisamente o contrário.»
«Fica assim desvendado o mistério das cartas abandonadas na Alameda. Despeito. Caso encerrado.»
«Engana-se. O Guilherme morreu vítima de um estúpido acidente de viação, dois anos depois de terem acabado a relação. Piso húmido e velocidade excessiva.»
«Então persiste o mistério das cartas abandonadas.»
Admiti que a Marie e o pai tinham conhecimento das cartas que encontrei perto de uma valeta.
«Sim. Mas as cartas eram muitas mais. Na verdade gostavam um do outro. Pelos vistos só três foram deitadas fora. E as outras?»
«Sempre pensei que havia mais cartas.»
«Há pouco franziu as sobrancelhas. Posso saber qual é a sua dúvida?»
De facto eram duas dúvidas. Se gostavam um do outro, o que levou a Marie a abandonar aquela relação?
A segunda dúvida era bem mais importante. Como um ladrão que já não estava enamorado pelas joias que tinha à sua disposição, lancei-me para um outro tesouro. Certamente o ladrão tinha em mente um golpe mais ambicioso.
«Então o isco que me lançaram nada tem a ver com a história do enamoramento Marie-Guilherme...»
«Que lhe lancei a pedido da minha filha.»
«A Marie?»
Fiquei suspenso da sua resposta.
«Compreendo a sua dúvida. Ela devia estar aqui hoje, mas não pode estar presente.»
«Tenho pena de não a conhecer pessoalmente. Na história foi sempre uma desconhecida para mim, mas pensava com frequência nela. Se tinha casado com o seu amor que vivia em Espanha, se acabara o curso de Direito, se deixara de fumar.»
Olhou muito sério para mim.
«Senhor Mário...»
«Por favor trate-me só por Mário.»
«Seja. E você por Carlos. Nunca gostei do meu apelido.»
«Porquê?»
«Fui sempre um homem de esquerda. Oliveira causa-me arrepios, percebe?»
«Visto por esse lado, tudo bem. Contudo, a oliveira é um símbolo de paz.»
«Ora bem. Está a dizer-me que a Marie tomou conhecimento de uma postagem que publiquei.»
«Sim, mas por intermédio de outra pessoa. A minha filha mais nova. A Lúcia, que é viciada em navegação na net...»
«Que coincidência!»
«Há cerca de quatro meses descobriu, por acaso, um dos seus blogues e gostou do estilo. É uma romântica, sabe? Você conta histórias para as mulheres românticas. A esse respeito deixe-me fazer um reparo: deve ter umas tantas admiradoras que certamente já lhe causaram embaraços dos grandes.»
«Nem por isso. O mundo da net é quase infinito e está sempre em expansão. Sem publicidade, o mais certo é um escritor passar despercebido, quer seja bom ou mau. Foi o meu caso. Só meia dúzia de Lúcias chegaram às minhas histórias.»
Na realidade o dono dos blogues era o António. Adiante, que ele não se importava com uma pequena mentira que era importante para enriquecer o meu ego.
«Pelo menos três, não contando com a própria Lúcia. A irmã e as duas amigas. Lembra-se por certo da Teresa e da Madalena...?»
«Na carta vinham mencionados os seus nomes.»
«São amigas da Marie. Mas os blogues caíram na Lúcia com um impacto maior que nas outras, principalmente depois que descobriu um poema.»
«Que poema?»
«Deixe ver se me lembro. Mais fácil será descobri-lo.»
«Descobri-lo?»
Onde queria chegar? Descruzei as pernas e voltei a cruzá-las, invertendo a posição. Era uma forma de obter maior comodidade.
O meu interlocutor abriu a gaveta central da secretária e retirou do interior um dossier.
«Cá está.»
Começou a folheá-lo, até que parou, esboçando um sorriso.
«Promontório.»
«Está incluído não propriamente numa história de amor.»
«Pois não. O tema aponta para o paranormal.»
«Então...?»
«Não consegui entender o que a minha Lúcia viu no poema. Só sei que o mostrou à irmã.»
«E...?»
«Parece que a Marie leu posteriormente todos os seus poemas, mas esse considerou-o especial. É por cauda dele que está aqui. Ou melhor: pelo que se relaciona com a sua essência.»
«Também considero o “Promontório” uma peça especial. Mas daí a ser dada tanta importância pelas suas filhas...»Adeus, ego vaidoso.
«Devo dizer que o blogue é de um amigo meu.»
«Sim. Mas as cartas eram muitas mais. Na verdade gostavam um do outro. Pelos vistos só três foram deitadas fora. E as outras?»
«Sempre pensei que havia mais cartas.»
«Há pouco franziu as sobrancelhas. Posso saber qual é a sua dúvida?»
De facto eram duas dúvidas. Se gostavam um do outro, o que levou a Marie a abandonar aquela relação?
A segunda dúvida era bem mais importante. Como um ladrão que já não estava enamorado pelas joias que tinha à sua disposição, lancei-me para um outro tesouro. Certamente o ladrão tinha em mente um golpe mais ambicioso.
«Então o isco que me lançaram nada tem a ver com a história do enamoramento Marie-Guilherme...»
«Que lhe lancei a pedido da minha filha.»
«A Marie?»
Fiquei suspenso da sua resposta.
«Compreendo a sua dúvida. Ela devia estar aqui hoje, mas não pode estar presente.»
«Tenho pena de não a conhecer pessoalmente. Na história foi sempre uma desconhecida para mim, mas pensava com frequência nela. Se tinha casado com o seu amor que vivia em Espanha, se acabara o curso de Direito, se deixara de fumar.»
Olhou muito sério para mim.
«Senhor Mário...»
«Por favor trate-me só por Mário.»
«Seja. E você por Carlos. Nunca gostei do meu apelido.»
«Porquê?»
«Fui sempre um homem de esquerda. Oliveira causa-me arrepios, percebe?»
«Visto por esse lado, tudo bem. Contudo, a oliveira é um símbolo de paz.»
«Tem alguma razão. Nunca vi a situação por esse prisma. Mas voltemos atrás. O Mário estava mesmo preocupado com o facto dela fumar?»
«Sim. Ela tentava deixar de fumar e pareceu-me muito viciada...»
«Acertou. Não conseguiu. E ainda passou a fumar mais depois que deixou o Guilherme.»
«Ninguém fica cá para semente. Mas sabendo o que pode trazer com o tempo a viciação no tabaco, e tendo ela a cultura que tem... porque se quer matar?»
«Parece que o meu amigo é bruxo. Já tentou três vezes.»
«Por causa do Guilherme?»
«Da primeira vez, sim. Das outras, não sei qual foi o motivo.»
«Não percebo. Foi ela quem decidiu mudar de rumo.»
«Nunca me revelou o motivo da separação. O homem que conheceu não lhe veio acrescentar nada de bom à vida.»
«Tenho pena. Muita pena. Por força das circunstâncias que deve conhecer, li uma das cartas que trocaram e fiquei com a ideia que a relação entre eles não era muito forte. Mas deixemo-los em paz.»
Concordou comigo.
«Acho bem. Deve estar intrigado por ter sido chamado aqui.»
«Intrigadíssimo. Como conseguiu obter a minha morada? Alguém me viu apanhar as cartas do chão? Só pode ser isso.»
«A Mary não me contou.»
Deitou fora as cartas e ficou nas proximidades a ver quem as apanhava. Depois, investigou-me. Foi o que admiti.
«Sim. Ela tentava deixar de fumar e pareceu-me muito viciada...»
«Acertou. Não conseguiu. E ainda passou a fumar mais depois que deixou o Guilherme.»
«Ninguém fica cá para semente. Mas sabendo o que pode trazer com o tempo a viciação no tabaco, e tendo ela a cultura que tem... porque se quer matar?»
«Parece que o meu amigo é bruxo. Já tentou três vezes.»
«Por causa do Guilherme?»
«Da primeira vez, sim. Das outras, não sei qual foi o motivo.»
«Não percebo. Foi ela quem decidiu mudar de rumo.»
«Nunca me revelou o motivo da separação. O homem que conheceu não lhe veio acrescentar nada de bom à vida.»
«Tenho pena. Muita pena. Por força das circunstâncias que deve conhecer, li uma das cartas que trocaram e fiquei com a ideia que a relação entre eles não era muito forte. Mas deixemo-los em paz.»
Concordou comigo.
«Acho bem. Deve estar intrigado por ter sido chamado aqui.»
«Intrigadíssimo. Como conseguiu obter a minha morada? Alguém me viu apanhar as cartas do chão? Só pode ser isso.»
«A Mary não me contou.»
Deitou fora as cartas e ficou nas proximidades a ver quem as apanhava. Depois, investigou-me. Foi o que admiti.
«Ora bem. Está a dizer-me que a Marie tomou conhecimento de uma postagem que publiquei.»
«Sim, mas por intermédio de outra pessoa. A minha filha mais nova. A Lúcia, que é viciada em navegação na net...»
«Que coincidência!»
«Há cerca de quatro meses descobriu, por acaso, um dos seus blogues e gostou do estilo. É uma romântica, sabe? Você conta histórias para as mulheres românticas. A esse respeito deixe-me fazer um reparo: deve ter umas tantas admiradoras que certamente já lhe causaram embaraços dos grandes.»
«Nem por isso. O mundo da net é quase infinito e está sempre em expansão. Sem publicidade, o mais certo é um escritor passar despercebido, quer seja bom ou mau. Foi o meu caso. Só meia dúzia de Lúcias chegaram às minhas histórias.»
Na realidade o dono dos blogues era o António. Adiante, que ele não se importava com uma pequena mentira que era importante para enriquecer o meu ego.
«Pelo menos três, não contando com a própria Lúcia. A irmã e as duas amigas. Lembra-se por certo da Teresa e da Madalena...?»
«Na carta vinham mencionados os seus nomes.»
«São amigas da Marie. Mas os blogues caíram na Lúcia com um impacto maior que nas outras, principalmente depois que descobriu um poema.»
«Que poema?»
«Deixe ver se me lembro. Mais fácil será descobri-lo.»
«Descobri-lo?»
Onde queria chegar? Descruzei as pernas e voltei a cruzá-las, invertendo a posição. Era uma forma de obter maior comodidade.
O meu interlocutor abriu a gaveta central da secretária e retirou do interior um dossier.
«Cá está.»
Começou a folheá-lo, até que parou, esboçando um sorriso.
«Promontório.»
«Está incluído não propriamente numa história de amor.»
«Pois não. O tema aponta para o paranormal.»
«Então...?»
«Não consegui entender o que a minha Lúcia viu no poema. Só sei que o mostrou à irmã.»
«E...?»
«Parece que a Marie leu posteriormente todos os seus poemas, mas esse considerou-o especial. É por cauda dele que está aqui. Ou melhor: pelo que se relaciona com a sua essência.»
«Também considero o “Promontório” uma peça especial. Mas daí a ser dada tanta importância pelas suas filhas...»
«Devo dizer que o blogue é de um amigo meu.»
Tinha que contar a verdade.
«Ah...»
«Mas considero-o, bem como os outros, como uma parte minha. Sou eu quem conta as histórias que depois ele escreve. Digamos, cinquenta por cento para cada um.»
«E os poemas?» franziu o sobrolho.
Como dizer...?
«Bom...»
«Ele é que devia estar aqui.»
«Impossível» menti. «Ele não reside cá e está permanentemente em viagem. Mas pode contar comigo. É como se fosse eu. Também considero o “Promontório” um poema especial. Mas daí a ser dada tanta importância pelas suas filhas...»
Barreira transposta.
«Lá chegaremos. Entretanto a Marie insistiu para eu contactar consigo.»
«E não está presente para falar comigo!»
«Não me pergunte mais, que não sei. Ausentou-se uma hora antes do senhor chegar.»
«Algo imprevisto?»
«Não sei. Mas agora oiça. Ela dedicava todo o tempo que lhe sobrava da sua atividade de advogada à investigação de documentos não publicados por poetas dos fins do século dezanove e do século passado. Desconfio mesmo que prejudicou o seu profissionalismo em detrimento dessa paixão que quase a devorou. Uma obsessão mórbida em que até se esquecia de alimentar-se.»
Tentei perceber onde ele queria chegar. Poetas.
Quais seriam os seus prediletos?
Deixei-o continuar. Precisava de mais dados.
«As coisas aqueceram quando umas folhas manuscritas lhe vieram parar às mãos. Leu e releu.»
«Sabe do que se tratava?»
«Disse-me apenas que estava na presença de uma peça importante.»
«Que quer dizer com isso?»
«Depois de consultar muitas obras, nas quais tentou encaixar no puzzle o fragmento que julgava ser inédito, de repente teve um flash. Andava à procura de autores irreais quando a verdade morava num dos prolongamentos dum desses autores.»
«Prolongamentos... Afinal que descobriu?»
«Tenho pena dela estar hoje ausente. Como gostaria de falar frente a frente consigo! Ficará para a próxima.»
«Assim espero. Terei muito gosto em falar com ela. Embora desconhecida, afinal conheço-a um pouco. Deve ser alta, morena, magra, olhos grandes, azuis.»
«Não diga mais.»
«Acertei?»
«Errou.»
«Ah... preciso de treinar mais os meus palpites.»
Sorriu.
«Errou apenas na cor dos olhos. São castanhos.»
«Então não estou tão mal como pensava.»
Foi a vez de um flash surgir no meu campo de visão. Ela ou a irmã, uma das duas estava apaixonada pelo poeta. Já não era a primeira vez que acontecia.
«Mas voltando às folhas, um dia perguntei-lhe que tema versavam.»
«Alguém que não assumiu, pai...» Respondeu.
De repente vi-a. Perfeita. Transfiguração perfeita. Estava na minha presença a misteriosa Marie que, em tempos, teve um amor, o seu amor, em Espanha. Uma desconhecida que, um dia, se cruzou com os meus poemas deixando-me um mistério relacionado com cartas de amor abandonadas. “Alguém que não assumiu, pai...”, dissera.
Mas quem?
O pai de Marie voltou a debruçar-se sobre a gaveta da secretária.
«Deixou-me o texto para si. Ah! Cá está. Dentro deste sobrescrito. E com uma condição. Só o deve abrir quando chegar a sua casa. Não mostre a ninguém. Foi um pedido veemente que me fez.»
«Prometo desde já.»
«Sabe...?»
«Sou todo ouvidos.»
«Antes de sair, a minha filha deixou escrito uma espécie testamento, mais propriamente uma lista de coisas para entregar a pessoas da família, aos amigos e também ao Mário.»
«Um testamento? Porquê um testamento?»
«Devia voltar há uma semana. Eu e Lúcia fomos esperá-la à Portela. Em vão. Até hoje não soubemos nada dela.»
«Ah...»
«Mas considero-o, bem como os outros, como uma parte minha. Sou eu quem conta as histórias que depois ele escreve. Digamos, cinquenta por cento para cada um.»
«E os poemas?» franziu o sobrolho.
Como dizer...?
«Bom...»
«Ele é que devia estar aqui.»
«Impossível» menti. «Ele não reside cá e está permanentemente em viagem. Mas pode contar comigo. É como se fosse eu. Também considero o “Promontório” um poema especial. Mas daí a ser dada tanta importância pelas suas filhas...»
Barreira transposta.
«Lá chegaremos. Entretanto a Marie insistiu para eu contactar consigo.»
«E não está presente para falar comigo!»
«Não me pergunte mais, que não sei. Ausentou-se uma hora antes do senhor chegar.»
«Algo imprevisto?»
«Não sei. Mas agora oiça. Ela dedicava todo o tempo que lhe sobrava da sua atividade de advogada à investigação de documentos não publicados por poetas dos fins do século dezanove e do século passado. Desconfio mesmo que prejudicou o seu profissionalismo em detrimento dessa paixão que quase a devorou. Uma obsessão mórbida em que até se esquecia de alimentar-se.»
Tentei perceber onde ele queria chegar. Poetas.
Quais seriam os seus prediletos?
Deixei-o continuar. Precisava de mais dados.
«As coisas aqueceram quando umas folhas manuscritas lhe vieram parar às mãos. Leu e releu.»
«Sabe do que se tratava?»
«Disse-me apenas que estava na presença de uma peça importante.»
«Que quer dizer com isso?»
«Depois de consultar muitas obras, nas quais tentou encaixar no puzzle o fragmento que julgava ser inédito, de repente teve um flash. Andava à procura de autores irreais quando a verdade morava num dos prolongamentos dum desses autores.»
«Prolongamentos... Afinal que descobriu?»
«Tenho pena dela estar hoje ausente. Como gostaria de falar frente a frente consigo! Ficará para a próxima.»
«Assim espero. Terei muito gosto em falar com ela. Embora desconhecida, afinal conheço-a um pouco. Deve ser alta, morena, magra, olhos grandes, azuis.»
«Não diga mais.»
«Acertei?»
«Errou.»
«Ah... preciso de treinar mais os meus palpites.»
Sorriu.
«Errou apenas na cor dos olhos. São castanhos.»
«Então não estou tão mal como pensava.»
Foi a vez de um flash surgir no meu campo de visão. Ela ou a irmã, uma das duas estava apaixonada pelo poeta. Já não era a primeira vez que acontecia.
«Mas voltando às folhas, um dia perguntei-lhe que tema versavam.»
«Alguém que não assumiu, pai...» Respondeu.
De repente vi-a. Perfeita. Transfiguração perfeita. Estava na minha presença a misteriosa Marie que, em tempos, teve um amor, o seu amor, em Espanha. Uma desconhecida que, um dia, se cruzou com os meus poemas deixando-me um mistério relacionado com cartas de amor abandonadas. “Alguém que não assumiu, pai...”, dissera.
Mas quem?
O pai de Marie voltou a debruçar-se sobre a gaveta da secretária.
«Deixou-me o texto para si. Ah! Cá está. Dentro deste sobrescrito. E com uma condição. Só o deve abrir quando chegar a sua casa. Não mostre a ninguém. Foi um pedido veemente que me fez.»
«Prometo desde já.»
«Sabe...?»
«Sou todo ouvidos.»
«Antes de sair, a minha filha deixou escrito uma espécie testamento, mais propriamente uma lista de coisas para entregar a pessoas da família, aos amigos e também ao Mário.»
«Um testamento? Porquê um testamento?»
«Devia voltar há uma semana. Eu e Lúcia fomos esperá-la à Portela. Em vão. Até hoje não soubemos nada dela.»
Tinha entrado em contradição.
«Não me diga que suspeita...?»
«É preciso ter fé. Não é a primeira vez que se ausenta para lá do tempo que estipulou. Vamos aguardar com serenidade.»
«Deus queira que tudo acabe em bem.»
Olhou para o teto, talvez procurando o céu.
«Há de acabar.» Encorajei-o.
Sinto frio numa manhã em que o Verão já traz consigo o seu sopro quente. Não é lógico o sangue fugir do meu corpo. Aliás, nada é lógico por mais lógico que possa parecer. Estar apertado neste quarto, sentir as paredes caírem sobre mim, o teto ondular com aproximações que me esmagam, amar esta vontade miserável de nada fazer porque me sabe bem o tédio, ser e imitar o sopro da vida, usar a usura de me esconder de todos para ter só para mim a iniciação no profundo mais profundo do mundo fantasmagórico que imagino existir do outro lado da porta... nada disto está dentro dos padrões normais.
Estou cercado nesta ilha que me acolhe, ao mesmo que sinto que até as entranhas saíram do meu corpo.
Pobre de mim, que fui o escolhido sem ter sido convidado. Por mais que não queira, tenho que mergulhar no mundo que o outro viu e logo quis encobrir, de abrir cortinas após cortinas até que tenha a certeza, sem saber o que me espera, que estou a abrir a última cortina. Nesta ilha que me acolhe e onde nada me falta, sinto que fugi dos amigos mais chegados porque eles me ignoraram ou vice-versa.
Que bom que é!
Mentira. Até minto para me desculpar que não fugi de ninguém porque não sou o rio que passou por vales e montanhas, vinhedos em solos soalheiros, casas pequenas em ruínas, que atingiu a planície e adiou com meandros a seguir a meandros a sua identificação com o mar. Mas sou e serei esse rio temeroso, até que amanhã diga que fui e depois de amanhã me esqueça de mim já que não posso inverter o sentido das águas para trás. Quero ser ao mesmo tempo o mar e o rio. E sou. Mas nunca mais me vou lembrar que fui...
Fujo de mim e descubro-me.
Dou uma chapelada para os fingidos que me cumprimentam.
«Lá vai ele. O que nunca tem sede...»
Era isto que querias que escrevesse, espelho obsessivo?
Paciência. Não sou um dos teus. Tu já descobriste e eu sei que é verdade, mas parece que quero assumir o que nunca assumiste.
Esta vida não vai durar para sempre. O rato rói-me as entranhas. As entranhas desconjuntam-se. A identidade está por um fio. Não posso perder mais tempo. O outro lado espera-me. Se é isso que queres...
Ele tomou a iniciativa. Na sombra, sempre na sombra, porque nunca irá assumir. Não importa. Neste momento parece que somos só um com uma angústia igual e a solidão é toda nossa.
Mantém-se em silêncio. Escorregou por dentro de mim mesmo, um promontório, um seu prolongamento. Com uma diferença. Não quero que se travem batalhas cá dentro, nem tão pouco cheirar o álcool.
Pouco lhe incomodam os meus “nãos”. Espera uma oportunidade. Sinto-me fechado na ilha e permanece no ouvido o silêncio das suas palavras. Estou preso entre quatro paredes. O teto vai desabar e não tenho forças para fugir. Doem-me as pernas. É verdade. As pernas. Pesam-me. Não posso fugir. É urgente voar. Voar para longe da porta que me atrai como nunca me atraiu.
Tudo é imaginário?
Mas para que queres os meus olhos?, para veres o outro lado que nunca foste capaz de assumir?
Tu. A tua grandiosidade. Sê humilde. Fala comigo. Não te escondas. Tu e os outros que arrastas atrás de ti. Estou confuso. Continuo sem saber quem és, por que escorreste por mim mesmo e quiseste ver com os meus olhos...
Acredita que não te posso ajudar, meu amigo. A nossa linguagem é diferente. Não te atinjo porque sou uma franja do teu gigantismo.
Ah! Então sempre é verdade. Somos um só e agora estou situado numa das múltiplas franjas que dominaste. Fui projetado para o presente. No futuro estarei morto e tu serás eterno. Mas terei cumprido em tudo aquilo que não quiseste assumir.
Não quero ser destruído. Rendo-me. Aos poucos tendo para ele, mas nunca para infinito. Ainda tenho missões a cumprir, embora esteja em agonia lenta, inexorável.
O meu destino era bem simples e foi ditado pelo sorteio das conexões dos neurónios. O resultado viu-se: não dava para ir muito longe.
É escusado insistires. Sou muito simples, prático e complicado. Cheio de absurdos. Talvez seja aí que somos parecidos. Só parecidos, entenda-se. Vai! Vai procurar outro para aglutinares à tua imagem. Vai e desculpa-me. Não te zangues. Deixa-me na minha estrada deserta.
A chama interior apagou-se e pude serenar. Todos os sinais que se espalharam por mim estão agora apagados. É o adeus definitivo e o regresso a uma vida simples. Enfim, sou eu. Já era tempo. Mas...
«... quem eras que escorregaste por mim mesmo e pediste-me para veres com os meus olhos o que se passava do outro lado da porta? Tédio, amigo. Só tédio e negritude. Se fosse bom, ninguém desejava vir para o lado de cá!»
Tudo pareceu-me igual. O botão da campainha. A empregada. As escadas. O corredor. O escritório.
«Deixe-me adivinhar. Você é a...»
«Lúcia. Essa mesma. Sou, sim. Finalmente tenho o prazer de o conhecer pessoalmente.»
Houve uma pausa que aproveitei para fazer um exame rápido à mulher que tinha na minha frente. Devia andar pelos quarenta anos. Era baixa, sensual e apetitosa como as sardinhas que se adivinhavam e queriam gordas, mas não muito. Tinha uns olhos castanhos, penetrantes. Cabelos demasiado curtos para o meu gosto. Corpo bem feito. Seios levantados na medida ideal para se chamarem pequenas colinas.
«Sempre é verdade...»
«Verdade?»
O que queria dizer?
«O Mário despe as mulheres com os olhos.»
«Como assim?»
«Desculpe. Estava distraído. Não fiz por mal.»
«Até me agradou. Mas vamos ao que o trouxe aqui. Estou em crer que já leu o conteúdo da herança que a minha irmã lhe deixou.»
«Pois li. Porquê chamar-lhe herança? Que eu saiba, a Marie ainda não morreu.»
«Claro que não. E então... o que pensa...?»
Dizia?
«Posso tratá-la por Lúcia?»
«Ou Lucy. Como queira.»
«Essa interrogação pressupõe que quer saber o que penso sobre a minha suposta herança. Antes de mais deixe-me lamentar a ausência da Marie. Afinal o grosso do caudal de interesses vai desaguar nela. A minha opinião sobre o texto, claro que não a posso dar. Percebe, não percebe?»
«Compreendo.»
«É que o texto não é meu e, ao mesmo tempo, parece ser meu. Só não consegui descobrir onde é que a sua irmã o foi desencantar.»
Ela sorriu. Eu sorri. Demos as mãos e partimos na habitual viagem comandada pelo sonho. Olhámo-nos olhos nos olhos e acreditámos que já nos conhecíamos há muito tempo. Bom, ponto final sem direito a parágrafo. De facto é um exagero. Não que eu não gostasse.
Ela sorriu. Só isso.
«Mas o certo é que há uma grande semelhança nalguns pontos. Concorda comigo?»
«Sim, mas o meu poema não é uma cópia desse documento. Fui consultar os rascunhos de julho de oitenta e oito e descobri o texto donde saiu o poema. Nada tem a ver com o documento que a sua irmã foi desencantar sabe-se lá onde... Mesmo assim é muito estranho!»
«Trouxe a sua prosa consigo?»
«Por acaso trouxe. Quer ler?»
«Se não se importa.»
Não demorou mais de cinco minutos a ler o texto original donde extraí o Promontório.
«Não se lembra de ter o emprestado a alguém? À Lara, a sua amiga a quem leu na altura o Promontório?»
A Lara. Desistiu de viver. Pobre Lara que o fogo transformou em cinzas...
«Tenho a certeza absoluta que o texto nunca saiu do dossier. E se quer saber, a Lara desconhecia a sua existência.»
«Quero acreditar em si. Mas o documento não foi adquirido por encanto pela minha irmã. Quanto ao seu poema parece que veio de outro mundo. O senhor foi mesmo a esse mundo para falar com o poeta?»
«Se fui, ele não falou comigo. Mas queria dizer-lhe uma coisa...»
«Então, diga.»
«O Promontório não foi tirado do documento que a Marie descobriu.»
Não lhe ia confessar que não me identificava com o que tinha escrito. Era melhor andar à volta da questão, fingindo estar perdido num círculo vicioso.
Continuei...
«Quem não anda, por vezes, no outro mundo? A intenção não foi nenhuma. Se bem o pensei, melhor o fiz.»
«Lembrou-se do tema e criou o poema. Só isso? Talvez. Mas não me convence. Entretanto desconfio duma coisa. Prometa que não se vai zangar comigo.»
«Como assim?»
«A minha ideia é que o texto e o poema não são seus.»
«Não são meus? Essa agora!»
Agastei-me.
«Espere aí e deite por terra toda essa revolta. Não completei ainda o meu raciocínio. Acho que alguém lhos soprou e esse alguém só pode ter sido o poeta a quem os dedicou. Aliás, aquela parte quem eras que escorregaste por mim mesmo... e todo o resto têm muito a ver...»
«Pois têm. Mas lamento dizer-lhe que tudo não passou dum momento de inspiração. Só isso. Se o pensei, melhor ou pior o fiz. Mais tarde saiu o poema. É só isto. Nada mais linear. Desiludi-a?»
Demorou a responder. Notei um certo desencanto na expressão do seu rosto.
«A Marie ficaria muito dececionada com a sua revelação. Acredite que ela andava entusiasmada com a hipótese de ter descoberto mais um heterónimo do poeta. Com uma diferença substancial, pois este vinha de fora, duma franja...»
«Seria complicado. Muito complicado. Escrevi as duas peças, prosa e poema. Nada me foi soprado.»
«Tem mesmo a certeza?»
«Nada é absoluto.»
«Ah...»
Virei-me para a porta no momento exato em que esta se abriu.
«Desculpe a demora, Mário. Creio que posso tratá-lo assim. Vim agora da rua.»
«Mas...»
Estava na minha frente uma mulher magra, alta, de olhos claros.
«Sou a Lúcia e fui eu quem descobriu o documento e também a si. Li na net as suas histórias.»
Tentei encaixar aquele momento absurdo.
«Muito prazer, Lúcia. Vejo que não preciso de me apresentar.»
«Sente-se bem?»
Pergunta pertinente.
«Acho... Bem... acho que estou com alucinações.»
«Porquê? Pareço-lhe irreal? Toque... Toque em mim. Sou de carne e osso. Mais osso que carne.»
Riu-se.
«Isso estou a ver. Mas afinal qual das duas é a Lúcia? Você, ou...?»
Virei-me de novo para o lado da secretária e um arrepio forte percorreu o meu corpo de alto a baixo. De facto só havia uma mulher presente. A mesma que tinha acabado de entrar na sala.
«Desembuche, homem! Parece que viu um fantasma...»
Aproximou-se um pouco mais de mim.
«O que quer dizer com isso?»
«Agora percebo. Tanto desejei falar com ela por causa do mistério das cartas de amor que acabei por chamá-la. E o mais curioso é que ela apareceu.»
Não me interrompeu.
«A Marie está morta, não está? Claro que sim. Parvoíce a minha. Já devia ter adivinhado há mais tempo.»
«A minha irmã está vivinha da costa, acredite. Que fantasma lhe apareceu há pouco?»
Optei por responder.
«O fantasma da Marie?»
Algures perdida entre dois mundos, a misteriosa mulher que tinha o seu amor em Espanha desprendeu-se do limbo por uma boa meia hora, pensei.
«A ninha irmã não morreu. E onde estava ela antes de eu entrar?»
«Sentada em frente a mim. À secretária.»
«Já sei que gosta de mistérios. Este é mais um ou até não é. Senão vejamos.»
Aproximou-se da secretária e esticou-se em direção à cadeira.
«Quem temos aqui no vão da secretária? Consegue adivinhar?»
«Mais um mistério?»
«O senhor gosta muito de inventar mistérios. Os que não se explicam, vêm da mente. Lamento muito, mas aquilo que parece desta vez não é. Não passa de uma brincadeira da minha irmã.»
«Como assim?»
Aconselhou-me a ter calma. Achei que era uma brincadeira de mau gosto. Marie apareceu, sorridente, e não veio do além. Surgiu do vão que existia debaixo da secretária.
Pela primeira vez olhei para ela com olhos de gente. Por momentos desviou o olhar, mas logo se recompôs.
«Mário... sabe que cometeu uma fraude?»
Boa forma de desviar a minha atenção.
«Que fraude?»
Fez um gesto dissimulado para a irmã.
«Bom» disse esta. «Deixo-os só. Devem ter muito para dizer.»
«Grato, Lucy.» Disse.
«Já adivinhou o que quero dizer.»
Tinha-a na minha frente. Precisava de executar uma manobra de diversão. Por que não provar da substância impura?
Imobilizei-lhe os braços e beijei-a. Não ofereceu resistência. Se gostou ou não gostou ficou no segredo dos deuses. Quanto ao que senti, confesso que fiquei na dúvida.
«E então?» perguntou, com toda a calma do mundo.
Não lhe ia dizer a que sabiam os seus lábios.
«Então?, pergunto eu.»
«Não é isso. A fraude...?»
«Tudo bem.»
«Quem cala, consente.»
Para quê insistir?
«Olhe, fique para jantar. Só nós dois.»
«Aceito.»
Doido por Marie.
«Não me diga que suspeita...?»
«É preciso ter fé. Não é a primeira vez que se ausenta para lá do tempo que estipulou. Vamos aguardar com serenidade.»
«Deus queira que tudo acabe em bem.»
Olhou para o teto, talvez procurando o céu.
«Há de acabar.» Encorajei-o.
Sinto frio numa manhã em que o Verão já traz consigo o seu sopro quente. Não é lógico o sangue fugir do meu corpo. Aliás, nada é lógico por mais lógico que possa parecer. Estar apertado neste quarto, sentir as paredes caírem sobre mim, o teto ondular com aproximações que me esmagam, amar esta vontade miserável de nada fazer porque me sabe bem o tédio, ser e imitar o sopro da vida, usar a usura de me esconder de todos para ter só para mim a iniciação no profundo mais profundo do mundo fantasmagórico que imagino existir do outro lado da porta... nada disto está dentro dos padrões normais.
Estou cercado nesta ilha que me acolhe, ao mesmo que sinto que até as entranhas saíram do meu corpo.
Pobre de mim, que fui o escolhido sem ter sido convidado. Por mais que não queira, tenho que mergulhar no mundo que o outro viu e logo quis encobrir, de abrir cortinas após cortinas até que tenha a certeza, sem saber o que me espera, que estou a abrir a última cortina. Nesta ilha que me acolhe e onde nada me falta, sinto que fugi dos amigos mais chegados porque eles me ignoraram ou vice-versa.
Que bom que é!
Mentira. Até minto para me desculpar que não fugi de ninguém porque não sou o rio que passou por vales e montanhas, vinhedos em solos soalheiros, casas pequenas em ruínas, que atingiu a planície e adiou com meandros a seguir a meandros a sua identificação com o mar. Mas sou e serei esse rio temeroso, até que amanhã diga que fui e depois de amanhã me esqueça de mim já que não posso inverter o sentido das águas para trás. Quero ser ao mesmo tempo o mar e o rio. E sou. Mas nunca mais me vou lembrar que fui...
Fujo de mim e descubro-me.
Dou uma chapelada para os fingidos que me cumprimentam.
«Lá vai ele. O que nunca tem sede...»
Era isto que querias que escrevesse, espelho obsessivo?
Paciência. Não sou um dos teus. Tu já descobriste e eu sei que é verdade, mas parece que quero assumir o que nunca assumiste.
Esta vida não vai durar para sempre. O rato rói-me as entranhas. As entranhas desconjuntam-se. A identidade está por um fio. Não posso perder mais tempo. O outro lado espera-me. Se é isso que queres...
Ele tomou a iniciativa. Na sombra, sempre na sombra, porque nunca irá assumir. Não importa. Neste momento parece que somos só um com uma angústia igual e a solidão é toda nossa.
Mantém-se em silêncio. Escorregou por dentro de mim mesmo, um promontório, um seu prolongamento. Com uma diferença. Não quero que se travem batalhas cá dentro, nem tão pouco cheirar o álcool.
Pouco lhe incomodam os meus “nãos”. Espera uma oportunidade. Sinto-me fechado na ilha e permanece no ouvido o silêncio das suas palavras. Estou preso entre quatro paredes. O teto vai desabar e não tenho forças para fugir. Doem-me as pernas. É verdade. As pernas. Pesam-me. Não posso fugir. É urgente voar. Voar para longe da porta que me atrai como nunca me atraiu.
Tudo é imaginário?
Mas para que queres os meus olhos?, para veres o outro lado que nunca foste capaz de assumir?
Tu. A tua grandiosidade. Sê humilde. Fala comigo. Não te escondas. Tu e os outros que arrastas atrás de ti. Estou confuso. Continuo sem saber quem és, por que escorreste por mim mesmo e quiseste ver com os meus olhos...
Acredita que não te posso ajudar, meu amigo. A nossa linguagem é diferente. Não te atinjo porque sou uma franja do teu gigantismo.
Ah! Então sempre é verdade. Somos um só e agora estou situado numa das múltiplas franjas que dominaste. Fui projetado para o presente. No futuro estarei morto e tu serás eterno. Mas terei cumprido em tudo aquilo que não quiseste assumir.
Não quero ser destruído. Rendo-me. Aos poucos tendo para ele, mas nunca para infinito. Ainda tenho missões a cumprir, embora esteja em agonia lenta, inexorável.
O meu destino era bem simples e foi ditado pelo sorteio das conexões dos neurónios. O resultado viu-se: não dava para ir muito longe.
É escusado insistires. Sou muito simples, prático e complicado. Cheio de absurdos. Talvez seja aí que somos parecidos. Só parecidos, entenda-se. Vai! Vai procurar outro para aglutinares à tua imagem. Vai e desculpa-me. Não te zangues. Deixa-me na minha estrada deserta.
A chama interior apagou-se e pude serenar. Todos os sinais que se espalharam por mim estão agora apagados. É o adeus definitivo e o regresso a uma vida simples. Enfim, sou eu. Já era tempo. Mas...
«... quem eras que escorregaste por mim mesmo e pediste-me para veres com os meus olhos o que se passava do outro lado da porta? Tédio, amigo. Só tédio e negritude. Se fosse bom, ninguém desejava vir para o lado de cá!»
Tudo pareceu-me igual. O botão da campainha. A empregada. As escadas. O corredor. O escritório.
Só com uma diferença...
«É o Mário, não é?»
Acenei com a cabeça, agradavelmente surpreendido.«Deixe-me adivinhar. Você é a...»
«Lúcia. Essa mesma. Sou, sim. Finalmente tenho o prazer de o conhecer pessoalmente.»
Houve uma pausa que aproveitei para fazer um exame rápido à mulher que tinha na minha frente. Devia andar pelos quarenta anos. Era baixa, sensual e apetitosa como as sardinhas que se adivinhavam e queriam gordas, mas não muito. Tinha uns olhos castanhos, penetrantes. Cabelos demasiado curtos para o meu gosto. Corpo bem feito. Seios levantados na medida ideal para se chamarem pequenas colinas.
«Sempre é verdade...»
«Verdade?»
O que queria dizer?
«O Mário despe as mulheres com os olhos.»
«Como assim?»
Por favor... descubram um buraco para desaparecer nele. O mais depressa possível! Ela conhece as minhas histórias...
«E agora ficou atrapalhado!»«Desculpe. Estava distraído. Não fiz por mal.»
«Até me agradou. Mas vamos ao que o trouxe aqui. Estou em crer que já leu o conteúdo da herança que a minha irmã lhe deixou.»
«Pois li. Porquê chamar-lhe herança? Que eu saiba, a Marie ainda não morreu.»
«Claro que não. E então... o que pensa...?»
Dizia?
«Posso tratá-la por Lúcia?»
«Ou Lucy. Como queira.»
«Essa interrogação pressupõe que quer saber o que penso sobre a minha suposta herança. Antes de mais deixe-me lamentar a ausência da Marie. Afinal o grosso do caudal de interesses vai desaguar nela. A minha opinião sobre o texto, claro que não a posso dar. Percebe, não percebe?»
«Compreendo.»
«É que o texto não é meu e, ao mesmo tempo, parece ser meu. Só não consegui descobrir onde é que a sua irmã o foi desencantar.»
Ela sorriu. Eu sorri. Demos as mãos e partimos na habitual viagem comandada pelo sonho. Olhámo-nos olhos nos olhos e acreditámos que já nos conhecíamos há muito tempo. Bom, ponto final sem direito a parágrafo. De facto é um exagero. Não que eu não gostasse.
Ela sorriu. Só isso.
«Mas o certo é que há uma grande semelhança nalguns pontos. Concorda comigo?»
«Sim, mas o meu poema não é uma cópia desse documento. Fui consultar os rascunhos de julho de oitenta e oito e descobri o texto donde saiu o poema. Nada tem a ver com o documento que a sua irmã foi desencantar sabe-se lá onde... Mesmo assim é muito estranho!»
«Trouxe a sua prosa consigo?»
«Por acaso trouxe. Quer ler?»
«Se não se importa.»
Não demorou mais de cinco minutos a ler o texto original donde extraí o Promontório.
«Não se lembra de ter o emprestado a alguém? À Lara, a sua amiga a quem leu na altura o Promontório?»
A Lara. Desistiu de viver. Pobre Lara que o fogo transformou em cinzas...
«Tenho a certeza absoluta que o texto nunca saiu do dossier. E se quer saber, a Lara desconhecia a sua existência.»
«Quero acreditar em si. Mas o documento não foi adquirido por encanto pela minha irmã. Quanto ao seu poema parece que veio de outro mundo. O senhor foi mesmo a esse mundo para falar com o poeta?»
«Se fui, ele não falou comigo. Mas queria dizer-lhe uma coisa...»
«Então, diga.»
«O Promontório não foi tirado do documento que a Marie descobriu.»
Não lhe ia confessar que não me identificava com o que tinha escrito. Era melhor andar à volta da questão, fingindo estar perdido num círculo vicioso.
Continuei...
«Quem não anda, por vezes, no outro mundo? A intenção não foi nenhuma. Se bem o pensei, melhor o fiz.»
«Lembrou-se do tema e criou o poema. Só isso? Talvez. Mas não me convence. Entretanto desconfio duma coisa. Prometa que não se vai zangar comigo.»
«Como assim?»
«A minha ideia é que o texto e o poema não são seus.»
«Não são meus? Essa agora!»
Agastei-me.
«Espere aí e deite por terra toda essa revolta. Não completei ainda o meu raciocínio. Acho que alguém lhos soprou e esse alguém só pode ter sido o poeta a quem os dedicou. Aliás, aquela parte quem eras que escorregaste por mim mesmo... e todo o resto têm muito a ver...»
«Pois têm. Mas lamento dizer-lhe que tudo não passou dum momento de inspiração. Só isso. Se o pensei, melhor ou pior o fiz. Mais tarde saiu o poema. É só isto. Nada mais linear. Desiludi-a?»
Demorou a responder. Notei um certo desencanto na expressão do seu rosto.
«A Marie ficaria muito dececionada com a sua revelação. Acredite que ela andava entusiasmada com a hipótese de ter descoberto mais um heterónimo do poeta. Com uma diferença substancial, pois este vinha de fora, duma franja...»
«Seria complicado. Muito complicado. Escrevi as duas peças, prosa e poema. Nada me foi soprado.»
«Tem mesmo a certeza?»
«Nada é absoluto.»
«Ah...»
Virei-me para a porta no momento exato em que esta se abriu.
«Desculpe a demora, Mário. Creio que posso tratá-lo assim. Vim agora da rua.»
«Mas...»
Estava na minha frente uma mulher magra, alta, de olhos claros.
«Sou a Lúcia e fui eu quem descobriu o documento e também a si. Li na net as suas histórias.»
Tentei encaixar aquele momento absurdo.
«Muito prazer, Lúcia. Vejo que não preciso de me apresentar.»
«Sente-se bem?»
Pergunta pertinente.
«Acho... Bem... acho que estou com alucinações.»
«Porquê? Pareço-lhe irreal? Toque... Toque em mim. Sou de carne e osso. Mais osso que carne.»
Riu-se.
«Isso estou a ver. Mas afinal qual das duas é a Lúcia? Você, ou...?»
Virei-me de novo para o lado da secretária e um arrepio forte percorreu o meu corpo de alto a baixo. De facto só havia uma mulher presente. A mesma que tinha acabado de entrar na sala.
«Desembuche, homem! Parece que viu um fantasma...»
Aproximou-se um pouco mais de mim.
«O que quer dizer com isso?»
«Agora percebo. Tanto desejei falar com ela por causa do mistério das cartas de amor que acabei por chamá-la. E o mais curioso é que ela apareceu.»
Não me interrompeu.
«A Marie está morta, não está? Claro que sim. Parvoíce a minha. Já devia ter adivinhado há mais tempo.»
«A minha irmã está vivinha da costa, acredite. Que fantasma lhe apareceu há pouco?»
Optei por responder.
«O fantasma da Marie?»
Algures perdida entre dois mundos, a misteriosa mulher que tinha o seu amor em Espanha desprendeu-se do limbo por uma boa meia hora, pensei.
«A ninha irmã não morreu. E onde estava ela antes de eu entrar?»
«Sentada em frente a mim. À secretária.»
«Já sei que gosta de mistérios. Este é mais um ou até não é. Senão vejamos.»
Aproximou-se da secretária e esticou-se em direção à cadeira.
«Quem temos aqui no vão da secretária? Consegue adivinhar?»
«Mais um mistério?»
«O senhor gosta muito de inventar mistérios. Os que não se explicam, vêm da mente. Lamento muito, mas aquilo que parece desta vez não é. Não passa de uma brincadeira da minha irmã.»
«Como assim?»
Aconselhou-me a ter calma. Achei que era uma brincadeira de mau gosto. Marie apareceu, sorridente, e não veio do além. Surgiu do vão que existia debaixo da secretária.
Pela primeira vez olhei para ela com olhos de gente. Por momentos desviou o olhar, mas logo se recompôs.
«Mário... sabe que cometeu uma fraude?»
Boa forma de desviar a minha atenção.
«Que fraude?»
Fez um gesto dissimulado para a irmã.
«Bom» disse esta. «Deixo-os só. Devem ter muito para dizer.»
«Grato, Lucy.» Disse.
«Já adivinhou o que quero dizer.»
Tinha-a na minha frente. Precisava de executar uma manobra de diversão. Por que não provar da substância impura?
Imobilizei-lhe os braços e beijei-a. Não ofereceu resistência. Se gostou ou não gostou ficou no segredo dos deuses. Quanto ao que senti, confesso que fiquei na dúvida.
«E então?» perguntou, com toda a calma do mundo.
Não lhe ia dizer a que sabiam os seus lábios.
«Então?, pergunto eu.»
«Não é isso. A fraude...?»
«Tudo bem.»
«Quem cala, consente.»
Para quê insistir?
«Olhe, fique para jantar. Só nós dois.»
«Aceito.»
Doido por Marie.
«A seguir ao jantar, bebemos um café e fumamos um cigarro. Está a dizer que não. Não fuma? Não fuma. Melhor para si. Tentei deixar de fumar por várias vezes e nunca consegui.»
Bem sabia.
«Gosto de a ouvir falar. Tem uma voz bonita. Aliás, não há nada feio em si.»
«Não me olhe assim que me despe!»
«A Lúcia disse o mesmo.»
«Essa cabra! O Mário não me quer despir?»
«Não sei se deva...»
«Quero fazer uma coisa consigo depois do jantar. Se não se importa.»
Claro que não me importava. Estava doido por Marie. Mas a seguir ao jantar era coisa de alto risco.
«Com muito gosto, Marie.»
«Sabe o que vamos fazer?»
Se sabia!
«Não.»
«Podemos estudar o texto minuciosamente e tentar descobrir até que ponto nele você não se identifica como uma franja do poeta.»
Balde água gelada. Não era o que pensava.
«Onde quer chegar?»
«O texto não é seu, mas inspirou-se nele para escrever o Promontório.»
«Como assim?»
«Se não for verdade, estamos na presença de mais um heterónimo do poeta. Já viu o tesouro que temos na mão?»
«Compreendo onde quer chegar. E a sua irmã?»
Cheque!
«Como?»
«A Lúcia, claro!»
Ficou muito séria.
«A minha irmã já não está nesta sala...»
«Bem sei.»
«Aliás, nunca esteve. Materialmente. A minha irmã morreu num acidente de aviação. Já vai para três anos.»
Treta?
Fiquei a pensar que devia estar delirando há pouco, quando vi a Lúcia entrar na sala e durante o tempo em que falámos.
«E o pai?» arrisquei perguntar.
«Iam os dois no avião. Mas não quero falar disso. Tenho muitas saudades do meu pai.»
Dois fantasmas. Era muito.
«Não falamos mais nisso.»
«Diga-me uma coisa...»
«Tudo o que quiser.»
«Onde foi desencantar o texto do qual tirou o Promontório?»
Não respondi. Quem cala, consente. Mas não era o caso.
«Pronto, não diga. Vamos ler com atenção o documento e depois o seu texto.»
«Continua na dúvida. E o nosso jantar? É que tenho um rato a trabalhar no estômago...»
«Estamos à beira de fazer uma grande descoberta e mesmo assim fala-me em jantar! Mário, faça o favor de não pensar mais no seu estômago. É uma ordem.»
«Desculpe. Ao menos um café...»
«Nem pensar. O tempo é precioso.»
«Ah sim? Então, vamos nisso. Mas ao menos posso dar-lhe um beijo?»
Doido por Marie?
«Claro.»
Alguma coisa me disse que os seus lábios souberam a gelado de morangos silvestres.
Afinal, dois e mais um...
Bem sabia.
«Gosto de a ouvir falar. Tem uma voz bonita. Aliás, não há nada feio em si.»
«Não me olhe assim que me despe!»
«A Lúcia disse o mesmo.»
«Essa cabra! O Mário não me quer despir?»
«Não sei se deva...»
«Quero fazer uma coisa consigo depois do jantar. Se não se importa.»
Claro que não me importava. Estava doido por Marie. Mas a seguir ao jantar era coisa de alto risco.
«Com muito gosto, Marie.»
«Sabe o que vamos fazer?»
Se sabia!
«Não.»
«Podemos estudar o texto minuciosamente e tentar descobrir até que ponto nele você não se identifica como uma franja do poeta.»
Balde água gelada. Não era o que pensava.
«Onde quer chegar?»
«O texto não é seu, mas inspirou-se nele para escrever o Promontório.»
«Como assim?»
«Se não for verdade, estamos na presença de mais um heterónimo do poeta. Já viu o tesouro que temos na mão?»
«Compreendo onde quer chegar. E a sua irmã?»
Cheque!
«Como?»
«A Lúcia, claro!»
Ficou muito séria.
«A minha irmã já não está nesta sala...»
«Bem sei.»
«Aliás, nunca esteve. Materialmente. A minha irmã morreu num acidente de aviação. Já vai para três anos.»
Treta?
Fiquei a pensar que devia estar delirando há pouco, quando vi a Lúcia entrar na sala e durante o tempo em que falámos.
«E o pai?» arrisquei perguntar.
«Iam os dois no avião. Mas não quero falar disso. Tenho muitas saudades do meu pai.»
Dois fantasmas. Era muito.
«Não falamos mais nisso.»
«Diga-me uma coisa...»
«Tudo o que quiser.»
«Onde foi desencantar o texto do qual tirou o Promontório?»
Não respondi. Quem cala, consente. Mas não era o caso.
«Pronto, não diga. Vamos ler com atenção o documento e depois o seu texto.»
«Continua na dúvida. E o nosso jantar? É que tenho um rato a trabalhar no estômago...»
«Estamos à beira de fazer uma grande descoberta e mesmo assim fala-me em jantar! Mário, faça o favor de não pensar mais no seu estômago. É uma ordem.»
«Desculpe. Ao menos um café...»
«Nem pensar. O tempo é precioso.»
«Ah sim? Então, vamos nisso. Mas ao menos posso dar-lhe um beijo?»
Doido por Marie?
«Claro.»
Alguma coisa me disse que os seus lábios souberam a gelado de morangos silvestres.
Afinal, dois e mais um...
P.S.
Quem eras, que escorregaste por mim e gastaste os meus olhos nas paredes mudas que falam do tédio e do álcool que ingerias porque não tinhas sede?
Quem eras tu...?Alguém entrou primeiro. Perdidos, lutámos com pontas aguçadas que não causam dor mas permanecem.
É para ti que falo...
No céu azul as gaivotas voam no cinzento. Bem sabes, Sou o promontório dum continente imenso que foste. Não passo de uma franja do teu gigantismo.
No teu universo dominaste galáxias, esgrimiste a palavra, amaste o tédio. Mas nunca te conheci. A minha memória sangra de tanto recordar e não te conhecer.
Quem és tu deles?
A luta é feroz, sem tréguas. Vergo. Estremeço. Mas não caio. Só quando chegar a altura...
E o rosto...?
Nesse tempo não suspeitava de ti, nem a Esfinge prometia o enigma da fuga irracional. Foi o tempo dos mistérios. O rosto no lençol. Os olhos encovados. O nariz grosso. O primeiro sinal de um rosto gravado num lençol.
Nunca assumiste. A luta continuou e os teus guerreiros multiplicaram os sinais. A neblina ainda cobriu mais o meu sonho azul.
Pobre de mim que me tocaste. Não passo de um grão infinitamente pequeno do teu gigantismo. Não sei quem és e quem trouxeste. Nos palpites da roleta que nunca mostra o número... vejo-te nas mil facetas que foste e já não és. Trouxeste-os. Todos. Eles que te destruíram. E os meus neurónios sangram e apagam luzes, aos poucos. Já não sou. Já não estás cá dentro.
Mas quem eras...?
Conheço-te no voo da gaivota que perdeu o rumo. No sonho do prisma que o corpo de luz inundou. Conheço-te na mulher de vermelho que me dominou, ou na Esfinge que parece sorrir e devora cá dentro. Conheço-te na magia dos oitos. Também na utopia do Império. Na solidão. No tédio. No oculto...
Quem eras, que escorregaste por mim e gastaste os meus olhos a ver o mundo que não tiveste?
Vê a última verdade pelo promontório que sou. E, mesmo que seja utopia, lança enfim ao mar todas as personagens que te ocultaram e nunca deixaram vir à superfície todo o outro mundo ou grandiosidade que não assumiste!

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