Quedei-me no hall, aguardando que ela se decidisse a encaminhar-me para a sala ou para outra divisão da casa. Não omito que fiquei deveras desconfiado com tal atitude que se prestava principalmente a uma interpretação que todos sabem qual é. Por razões óbvias, estas palavras bastam.
Antes de ter acontecido aquele momento de suspense, não podia deixar de falar duma reunião geral de professores que se realizou nos primeiros dias de julho de 1994, e também da sardinhada que marcou a entrada na era enigmática da Fátima, a tal mulher que, até hoje, me fechou à chave na sua casa e que me deixou, de imediato, mergulhado em todas as dúvidas, possíveis e imaginárias.
Mas uma coisa de cada vez. Primeiro, a reunião.
Nessa manhã já cheguei tarde e contentei-me em ficar sentado na última fila do pequeno anfiteatro, a única que não possuía cadeiras fixas.
O Alfredo estava ao meu lado e ainda não tinha esgotado o seu repertório de anedotas picantes. Fiz-lhe uma careta de desagrado.
«Quem não quiser ouvir que tape os ouvidos...» Foi a resposta.
Não havia volta a dar. Ele era assim.
Não o admoestei mais porque acabava de ver a Fátima à entrada da sala. Não vinha só. Trazia, como de costume, o seu ar distante e glacial. Era colega de poucas falas. Uma mulher estranha. Dava qualquer coisa de importante para conhecer os seus segredos.
Por acaso já conversara com ela a propósito de um encontro ligado a projetos de formação de professores. Tínhamos desistido pelo mesmo motivo. Falta de informação. Como de costume.
Trocámos no pátio da escola algumas palavras a esse respeito e foi tudo. Ou melhor, no momento vi dois miúdos engalfinhados numa luta série e corri para eles. Num instante separei-os e levei-os ao gabinete do Conselho Diretivo. No momento não estava ninguém, mas já sabia o que a casa gastava.
«Ficam aqui à espera sentados no corredor e depois contam o que aconteceu quando a senhora Presidente chegar.»
Já sabia qual era o castigo. Uma oração de sapiência e "que isto não volte a acontecer".
Quando voltei ao pátio já a Fátima não estava presente.
Olhou em volta. Pois. Não havia um lugar sentado. Àquela hora não podia esperar-se outra coisa. Aliás, não concordava com a sistemática falta de cadeiras quando se sabia o número exato do corpo docente.
Porquê faltarem cadeiras?
Para ter que me levantar, estava mesmo a ver-se.
Já não dava atenção às anedotas do Alfredo. Todo eu era olhos para aquela latina com ar de nórdica. Cabelo curto, louro. Olhos frios. Penetrantes. Voz bonita.
Mas nessa altura eu estava noutros voos.
Ficou encostada à parede, ao meu lado. Lá teria que ser. Ofereci-lhe o lugar. Era de bom tom.
Agradeceu, mas não aceitou.
Estava um pouco incomodado por vê-la de pé, embora houvesse outras colegas nas mesmas condições.
Compreendia-se?
Claro que não. Ou claro que sim.
Como as cadeiras eram largas disse ao Alfredo para juntar a cadeira dele à minha. Expliquei-lhe para que era e ele deu uma resposta imediata.
«Só se ela se sentar no meio...»
Coisas do Alfredo.
«Cala-te, sacana.»
Lá juntámos as cadeiras e ela sentou-se ao meu lado. A reunião começou logo a seguir. Nada de especial aconteceu.
Mal sabia que este gesto ia abrir uma porta.
Dias depois foi a sardinhada, que começou pouco depois das seis da tarde. Os dias mais longos estavam no auge.
Em poucas palavras, tratou-se de um jantar de confraternização entre colegas, ao ar livre, por detrás da cantina da escola. O fim do ano letivo aproximava-se do fim.
A juventude estava em maioria, embora a velha guarda também estivesse bem representada.
O jantar foi agradável. Comi. Bebi. Conversei. Não muito porque, como de costume, conversei o que quis conversar. Tudo correu de forma normal até ao momento (e já depois do jantar) em que alguém se lembrou de dizer que eu lia mãos. Aí o caso mudou de figura, embora tentasse esquivar-me.
«Não há ambiente.» Desculpei-me.
Pois não. Qual ambiente, qual carapuça. Não havia ambiente, mas logo uma jovem ruiva de Educação Musical estendeu as mãos e sorriu.
«Que estás a fazer com esse ar de parva?» pensei.
Mesmo assim, olhei para ela e gostei logo do que vi, embora a achasse demasiado nova para mim.
Ainda fiz uma segunda tentativa para me esquivar. Ela não desistiu e continuou na minha frente, de pé, de mãos estendidas, à espera, simulando uma prece.
«Não sou Deus.»
«Porque dizes isso?»
«Parece que estás a rezar.»
«Vá lá, deixa de te armar em caro.»
Estava feito. Não gostava de "trabalhar" em público, mas como já tinha bebido uns tantos púcaros, ou melhor, o seu conteúdo, por sinal um tinto carrascão com grau perigoso, achei que devia anular toda e qualquer resistência. De facto, era inevitável. Não podia recusar. Ela continuava com a palma da mão direita estendida.
«És canhota?»
«Não.»
Olhei com atenção para a saturniana da ruiva.
Que destino materialista era aquele?
Alguém disse em voz baixa:
«Está a concentrar-se...»
Fez-se um silêncio expectante. Dei conta dele. Dei conta também que não estava inibido. A voz saiu fluente. Falei, falei. Nada importante.
Vi muitas mãos. Fiz previsões estranhas que preocuparam as donas das mãos, principalmente as jovens.
Num dos casos, este mais estranho, até meti a “boca no trombone” com a naturalidade maior deste mundo porque estava a leste da realidade que alguns colegas conheciam. Mal reparei nas outras linhas. Olhei frontalmente para ela e disse, sem hesitar, que ela estava a ter uma relação complicada com um colega da escola.
Bomba atómica!
«É só uma coisa passageira. Que idade tem?»
«Vinte e quatro.»
«A verdadeira relação só vai acontecer daqui a cinco anos.»
Tanta certeza! Seria...?
Notei uma certa contrariedade na expressão do seu olhar. Desistiu de saber mais alguma coisa e seguiu-se outra. Só as mulheres se candidatavam a estender as mãos. Como de costume, eu entre as mulheres.
A Fátima, dona duns olhos bonitos e frios, como já referi, estava sentada quase na minha frente. Observei que seguia com grande interesse os estudos rápidos e talvez certeiros que ia fazendo.
Ela própria não resistiu à curiosidade e acabou por prestar vassalagem, estendendo as mãos.
Não me lembro do que disse. Nem a ela, nem à maior parte das mulheres.
Uma coisa é certa: acertei em quase tudo o que disse nessa tarde de sardinhas, fêveras de porco, leite creme e muito vinho tinto.
Seguiu-se outra mulher.
«Esta mão é muito complicada, Anabela...»
A dona da mão estava ao meu lado e eu, candidato a sábio na leitura de mãos, mal sabia que estava em rota de colisão com o meu futuro, mais mês menos mês.
Dando um salto no futuro, foram nove anos deitados fora. Doeu, mas já passou. E é outra história que não cabe aqui.
Notei uma certa deceção na minha colega e tive ainda uma última palavra de esperança.
«Não é aqui o sítio mais adequado.»
Sentença de "morte" para mim. Pior que a bomba atómica.
Foram levantados os pratos, os talheres e depois limparam as mesas. Faziam-se horas para o café. O vício começava a ganhar força e o café só podia tomar-se fora da escola.
«Para mim um descafeinado.» Pensei.
Nesses tempos ainda não era adepto dos prazeres da cafeína.
Mas as mulheres continuavam à minha volta. Então tiraram as mesas e as cadeiras.
Também não resultou. Fiquei sentado na única cadeira que restava, lendo a última mão. Parece que estava a ter êxito. Confesso que fiz muitas previsões que não estavam escritas nas linhas. E acertei.
Havia um médium próximo?
Já na rua, enquanto conversava com o Jesuíno, que me dava dados tardios sobre uma das mulheres, ouvimos alguém dizer:
«Este tipo sabe tudo de nós!»
Talvez. Mas esquecia depressa.
A colega de Geografia, a quem perguntei a idade, não quis tomar café e foi direta para casa, segundo me disseram. Ficou zangada com as minhas previsões. E tinha razão para isso quando afirmei que estava numa relação sentimental sem a menor importância.
Tinha ainda vinte e...?
Podia esperar. A maré-cheia viria mais tarde. E que maré!
Por acaso (ou não) estava certo. Disseram-me depois que tinha uma ligação com um colega nosso que casara ainda não há um ano.
Alguns dias mais, conforme eu previra, a dita ligação falhou.
Hoje almocei em casa com o Alfredo e o Raul. Para minha surpresa, o Raul perguntou-me de chofre se a Fátima tinha telefonado. Estávamos numa conversa de leitura de mãos e ele lembrou-se. Perguntei a que propósito ela ia telefonar a uma pessoa que mal conhecia. Então esclareceu que a Fátima ficou muito sensibilizada no dia da reunião geral, quando lhe ofereci o meu lugar.
Voltei a fazer-lhe outra pergunta.
Como tinha sabido?
Fora passar o fim-de-semana a casa duma amiga de longa data. Por coincidência estava também presente a Fátima e esta contou-lhe que ia telefonar-me por causa das mãos que li no dia da sardinhada.
Que teria eu dito de importante para aquela mulher de olhar frio aguçar o interesse e descer ao meu povoado?
«Estás interessado nela?»
Perguntei por perguntar, mas a pergunta foi cautelosa. Não sabia ao certo em que águas nadava, se eram turvas ou não, e se me interessava mesmo nadar nelas. Era certo que havia algumas coincidências, mas sentia só curiosidade. Mais nada. Até porque ela era uma mulher fria, de olhar quase agressivo. Nada o meu género.
A resposta do Raul foi clara.
«Não. Até porque acho que tem um ar de saloia...»
Outro ponto de vista. De facto, as suas faces rosadas sobressaíam sob o fundo branco do rosto. Talvez ele tivesse razão. Pensando bem, tinha razão.
«A Fátima ficou muito interessada com uma revelação que lhe disseste. Vai contactar contigo.»
«Quando?»
«Mais cedo do que julgas.»
«Diz-lhe para tirar fotocópias às duas mãos. Às palmas das mãos, claro.»
Foi, de facto, mais cedo do que pensava.
Dois ou três dias depois fui de autocarro para a escola porque o carro tinha um pneu em baixo. No átrio encontrei duas mulheres que solicitaram a minha a atenção. Uma a quem entreguei um relatório das mãos e uma outra que me entregou as fotocópias.
Enquanto falava com a primeira, notei uma certa ansiedade na outra que esperava pela sua vez. Dei conta também da intensidade do seu olhar. Curioso! Tinha olhos castanhos. Julguei que eram azuis.
Deu-me o número do telefone e à noite já estava a telefonar-lhe. A única dúvida era o local de encontro.
Alvitrei um café. Disse que não. Podia ser em minha casa. Replicou que não tinha carro. E o meu tinha um pneu em baixo. Tive a primeira surpresa. Afinal era uma mulher com menos preconceitos do que julgava. Preferia que o encontro fosse na sua casa. Concordei. Estava falando com uma mulher livre.
E afinal até era simpática. Sobretudo na voz. No resto, continuava com a minha ideia formada. E não costumava enganar-me.
«A minha casa mais parece um acampamento, mas podemos encontrar-nos cá.»
Para quem mantinha as distâncias e parecia ser muito reservada, certamente era um risco que corria. Mas eu só ia ler umas mãos. Certamente, ela apostava nisso. Jantei cedo e apanhei o 7 para Alvalade. Quando o autocarro curvou para a avenida de Roma, levantei-me e fui andando para a saída. Devia descer na primeira paragem.
Era a primeira noite. Tudo podia acontecer. Não a conhecia. Por detrás daquele olhar frígido podia estar camuflada uma ninfomaníaca. Talvez por isso me tenha resguardado um pouco. Pelo sim, pelo não, mais valia prevenir. Tanto mais que me recebeu envolta numa espécie de quimono.
Pus-me logo a dar voltas à imaginação.
Que teria vestido dentro?
Pouco mais que nada. Pelo menos não usava soutien.
Fiquei logo a saber o motivo do seu interesse. No fundamental, era o desejo de conhecer o futuro. Adivinhar o futuro. Do passado, nada queria saber. O passado era para enterrar, pensei.
Mas quem podia adivinhar?
Apenas sabia ler nas linhas da mão. Na saturniana materialista. Na vital, que percorria uma trajetória longa, sem pressas, pelo vale, com mais desencontros do que encontros, em que estávamos todos de passagem. Na mensal, agora dominada pela linha da cabeça, completamente dominada, onde se escondia a ave de asas feridas, entre as ervas, dos predadores que esperavam um sinal de fraqueza.
Aquela de afirmar, no célebre dia da sardinhada, que via grandes problemas de dinheiro, onde fui descobrir?
Notei uma certa deceção na minha colega e tive ainda uma última palavra de esperança.
«Não é aqui o sítio mais adequado.»
Sentença de "morte" para mim. Pior que a bomba atómica.
Foram levantados os pratos, os talheres e depois limparam as mesas. Faziam-se horas para o café. O vício começava a ganhar força e o café só podia tomar-se fora da escola.
«Para mim um descafeinado.» Pensei.
Nesses tempos ainda não era adepto dos prazeres da cafeína.
Mas as mulheres continuavam à minha volta. Então tiraram as mesas e as cadeiras.
Também não resultou. Fiquei sentado na única cadeira que restava, lendo a última mão. Parece que estava a ter êxito. Confesso que fiz muitas previsões que não estavam escritas nas linhas. E acertei.
Havia um médium próximo?
Já na rua, enquanto conversava com o Jesuíno, que me dava dados tardios sobre uma das mulheres, ouvimos alguém dizer:
«Este tipo sabe tudo de nós!»
Talvez. Mas esquecia depressa.
A colega de Geografia, a quem perguntei a idade, não quis tomar café e foi direta para casa, segundo me disseram. Ficou zangada com as minhas previsões. E tinha razão para isso quando afirmei que estava numa relação sentimental sem a menor importância.
Tinha ainda vinte e...?
Podia esperar. A maré-cheia viria mais tarde. E que maré!
Por acaso (ou não) estava certo. Disseram-me depois que tinha uma ligação com um colega nosso que casara ainda não há um ano.
Alguns dias mais, conforme eu previra, a dita ligação falhou.
Hoje almocei em casa com o Alfredo e o Raul. Para minha surpresa, o Raul perguntou-me de chofre se a Fátima tinha telefonado. Estávamos numa conversa de leitura de mãos e ele lembrou-se. Perguntei a que propósito ela ia telefonar a uma pessoa que mal conhecia. Então esclareceu que a Fátima ficou muito sensibilizada no dia da reunião geral, quando lhe ofereci o meu lugar.
Voltei a fazer-lhe outra pergunta.
Como tinha sabido?
Fora passar o fim-de-semana a casa duma amiga de longa data. Por coincidência estava também presente a Fátima e esta contou-lhe que ia telefonar-me por causa das mãos que li no dia da sardinhada.
Que teria eu dito de importante para aquela mulher de olhar frio aguçar o interesse e descer ao meu povoado?
«Estás interessado nela?»
Perguntei por perguntar, mas a pergunta foi cautelosa. Não sabia ao certo em que águas nadava, se eram turvas ou não, e se me interessava mesmo nadar nelas. Era certo que havia algumas coincidências, mas sentia só curiosidade. Mais nada. Até porque ela era uma mulher fria, de olhar quase agressivo. Nada o meu género.
A resposta do Raul foi clara.
«Não. Até porque acho que tem um ar de saloia...»
Outro ponto de vista. De facto, as suas faces rosadas sobressaíam sob o fundo branco do rosto. Talvez ele tivesse razão. Pensando bem, tinha razão.
«A Fátima ficou muito interessada com uma revelação que lhe disseste. Vai contactar contigo.»
«Quando?»
«Mais cedo do que julgas.»
«Diz-lhe para tirar fotocópias às duas mãos. Às palmas das mãos, claro.»
Foi, de facto, mais cedo do que pensava.
Dois ou três dias depois fui de autocarro para a escola porque o carro tinha um pneu em baixo. No átrio encontrei duas mulheres que solicitaram a minha a atenção. Uma a quem entreguei um relatório das mãos e uma outra que me entregou as fotocópias.
Enquanto falava com a primeira, notei uma certa ansiedade na outra que esperava pela sua vez. Dei conta também da intensidade do seu olhar. Curioso! Tinha olhos castanhos. Julguei que eram azuis.
Deu-me o número do telefone e à noite já estava a telefonar-lhe. A única dúvida era o local de encontro.
Alvitrei um café. Disse que não. Podia ser em minha casa. Replicou que não tinha carro. E o meu tinha um pneu em baixo. Tive a primeira surpresa. Afinal era uma mulher com menos preconceitos do que julgava. Preferia que o encontro fosse na sua casa. Concordei. Estava falando com uma mulher livre.
E afinal até era simpática. Sobretudo na voz. No resto, continuava com a minha ideia formada. E não costumava enganar-me.
«A minha casa mais parece um acampamento, mas podemos encontrar-nos cá.»
Para quem mantinha as distâncias e parecia ser muito reservada, certamente era um risco que corria. Mas eu só ia ler umas mãos. Certamente, ela apostava nisso. Jantei cedo e apanhei o 7 para Alvalade. Quando o autocarro curvou para a avenida de Roma, levantei-me e fui andando para a saída. Devia descer na primeira paragem.
Era a primeira noite. Tudo podia acontecer. Não a conhecia. Por detrás daquele olhar frígido podia estar camuflada uma ninfomaníaca. Talvez por isso me tenha resguardado um pouco. Pelo sim, pelo não, mais valia prevenir. Tanto mais que me recebeu envolta numa espécie de quimono.
Pus-me logo a dar voltas à imaginação.
Que teria vestido dentro?
Pouco mais que nada. Pelo menos não usava soutien.
Fiquei logo a saber o motivo do seu interesse. No fundamental, era o desejo de conhecer o futuro. Adivinhar o futuro. Do passado, nada queria saber. O passado era para enterrar, pensei.
Mas quem podia adivinhar?
Apenas sabia ler nas linhas da mão. Na saturniana materialista. Na vital, que percorria uma trajetória longa, sem pressas, pelo vale, com mais desencontros do que encontros, em que estávamos todos de passagem. Na mensal, agora dominada pela linha da cabeça, completamente dominada, onde se escondia a ave de asas feridas, entre as ervas, dos predadores que esperavam um sinal de fraqueza.
Aquela de afirmar, no célebre dia da sardinhada, que via grandes problemas de dinheiro, onde fui descobrir?
Contou-me tudo. A separação. A casa, os livros de arte, a aparelhagem, os móveis. Perdeu tudo. O sujeito foi velhaco. Viu-se desamparada. Mas foi forte. Resistiu. Pediu dinheiro emprestado e comprou um andar em frente ao outro onde morou com o ex-marido.
Comentei o facto. Não foi de propósito (duvidei) e não se importava. Estava na presença duma mulher com grande força anímica. Quanta complicação não havia em volta de uma mulher desconfiada, metódica e toda ela cheia de rotinas! Uma mulher que vivia só desde que o marido a enganara, ao tentar fazer vida dupla.
Mas aquela de morar no prédio em frente não lembrava a ninguém!
«Agora estamos aqui os dois e ele pode ver-nos. Já pensaste? Se ele tiver uma arma...» Dramatizei.
«Os vidros são duplos» replicou. «Não se vê nada do lado de lá. Já experimentei da casa de uma amiga.»
Não fiquei convencido.
«Agora ainda é dia. E se acenderes a luz?»
«Corro os estores.»
Tinha justificação para tudo. Confirmava-se o excesso de organização naquela cabeça certinha e direitinha.
«Mas todos os dias ficas nesta sala, a trabalhar, e olhas para lá. Está na tua frente. Não te impressionas? Repara que estás sempre a recordar-te dele.»
«Não me importo. Só foi bom a princípio.»
Ela devia odiar muito o ex-marido. A proximidade da casa tinha talvez a ver com o desejo de vingar-se. Fora ferida muito fundo e não perdoava. Ele bem tentou a reconciliação. Nunca mais. Agora fazia-lhe pirraça, pensei. Estava no seu direito.
Recordei os primeiros minutos em que me contou, com um sorriso bem marcado, uma história trágica. Esperava ver lágrimas no seu rosto. Era estranho. Muito estranho. Talvez por isso, olhei para ela com um olhar diferente. Talvez também por isso, fechou mais o robe. Preferia chamar-lhe um robe de mangas curtas que ela devia usar quando trabalhava na sua arte, fora dos momentos dedicados à componente letiva.
E mais uma coisa: juro que só por mera distração estava a olhar para os seus seios.
«Quem mais jura, mais mente, Mário.»
Ignorei o comentário do meu amigo imaginário.
Onde ia meter os olhos naquele momento crucial que parecia estar a durar uma eternidade?
Fiquei ainda a saber que era uma mulher só e que não queria voltar a envolver-se.
Tomei aquela confidência como um sério aviso à navegação. E eu era a navegação. De certa maneira. Mas navegava noutras águas.
Que fui lá fazer?
Não era artista plástico, mas desenhei com arte todas as linhas importantes e não importantes das suas mãos brancas. Ao mesmo tempo, conversámos bastante, o que deu para iniciar uma amizade diferente, que estava longe de tender para aqueles estranhos casos de amor à primeira vista.
«Estás interessado nela?»
Aquela pergunta que fiz ao Raul foi enigmática, pois mal a conhecia.
Quando fiz a pergunta, estaria interessado nessa mulher?
Talvez. Mas, lado a lado com ela, e ao pegar-lhe na mão, não tive um mínimo impulso ou descontrolo. Mesmo quando o robe se abriu e deixei de ver, por momentos, parte das sardas que se espalhavam abaixo do pescoço, porque descobri umas colinas redondas, não muito erguidas, talvez fruto do uso alheio.
Estou a pintar a história com matizes fortes, agressivos, quase chocantes, nada lógicos para a minha sensibilidade.
Para falar verdade, aprecio mais os tons esbatidos, a beleza sensual da Maria, uma mulher que começa a fugir do meu horizonte porque não consegui montar o cavalo da coragem!
Onde está agora a Maria?
Parece que a previsão bateu certo. Passou a levar uma vida subterrânea.
Saí de casa da Fátima já depois da meia-noite.
Foi incrível! Estive umas horas sozinho com uma mulher interessante e nada aconteceu. O mais normal era ter-me enrolado com ela. Apenas tivemos uma conversa viva que passou, inevitavelmente, pelos domínios do paranormal, ao mesmo tempo que desenhava as linhas principais da palma da mão. Não vi vestígios de lágrimas, nem senti um simples aroma de feromonas no ar. Sinais evidentes de ódio e também um enorme desejo de vencer profissionalmente. Mas não podia esquecer-se que a fama cobrava honorários muito altos.
Voltei a casa dela uns dias mais tarde para falarmos do relatório que fiz. Só era para falarmos do relatório, mas levei um livro de poemas.
Nessa noite pedi-lhe para fazer uma ilustração para o livro. O meu amigo António ia agradecer.
Ou foi depois, na sala dos computadores, quando lhe entreguei uma pasta com um conto insólito?
Dias mais tarde...
Estava sentado num sofá, virado para a porta da sala de professores quando a vi entrar. Hesitei ao dar conta que me evitava. Mas tive um impulso e fui ao seu encontro.
«Nunca mais nos encontrámos.» Disse, de chofre.
Olhou para mim de modo indefinido. Achei-a uma mulher interessante, embora com ar provinciano. Estava bem vestida e pintada. Nada mais. Pensei que não ia responder.
Tinha a tarde livre. Foi só o que disse, muito séria.
Eram três horas quando toquei à campainha. A porta da rua abriu-se de imediato. Entrei no elevador. Estava tenso. Apreensivo.
Ia receber-me bem?
Recebeu-me com um sorriso. Trocámos um beijo. Afinal não me estendeu a mão. Isso era só na escola. Aconteceu um pormenor de que não dera conta das outras vezes. Fechou a porta por dentro, dando duas ou três voltas à chave.
Fiquei na expectativa, especado no hall, tentando confirmar nos próximos segundos se ela era mesmo ninfomaníaca ou se aquele ato de dar as tais voltas à chave tinha resultado de um simples gesto automático.
Estivemos primeiro na marquise ligada à cozinha, onde mostrou-me as plantas e me pediu alguns conselhos. Confessei que percebia mais de catos e suculentas, mas dei-lhe algumas ideias básicas. As plantas não eram nenhuma maravilha e o estado delas estava longe de ser o ideal. Mas adiante. Esgotada a conversa das plantas, fomos para a sala. Ficámos frente a frente em dois sofás, separados por cerca de dois metros. Uma barreira, pensei.
Mas ela tinha fechado a porta à chave!
Foi um gesto mecânico ou uma manobra?
Podia estar a experimentar-me.
«Não te incomoda o sol?»
De facto, os raios solares passavam através das persianas da janela em frente e obrigavam-me a semicerrar os olhos.
«Não tem importância.»
«Passa para aqui.»
É o passas, Mário!
Deu-me duas hipóteses a escolher: ficava ao seu lado, ou noutro sofá mais à esquerda. Pensei rápido. Era melhor continuar no mesmo sítio. Nem pareceu minha a decisão.
Não sei se foi nesse dia que ela disse que não ia com qualquer homem para a cama. Talvez porque falámos de certos casos que estavam a ocorrer na escola e eram objeto de conhecimento de quase toda a gente. Portanto, ela lançava mais um aviso à navegação. Aviso curioso. Mas fechara a porta à chave por dentro. Além de mais, estava sozinha em casa com um homem que mal conhecia. Para culminar, tinha-me convidado a aproximar dela, a pretexto de uns simples raios solares que hipoteticamente me perturbavam.
Ouvi subitamente um estalido. Virei-me para trás. O ruído parecia ter vindo da cozinha. Ela sorriu, aparentando estar calma.
«Não te preocupes. Foi o esquentador. Já é hábito.»
«Ah... sim.»
Qualquer coisa estava para acontecer naquela tarde de setembro e claro que não sabia o quê. Naquele momento os seus olhos viravam-se para os meus.
Sentia-me tranquilo em excesso. No olho de um furacão.
«Ah!, Maria... Maria... se fosses tu em vez dela! Mas nunca me convidaste para entrar na tua casa.»
Abordámos o caso da amizade entre um homem e uma mulher. Com o intuito de a baralhar disse-lhe que estava de pé atrás relativamente às minhas intenções. Mas ela foi firme. Só havia amizade.
Concordei.
E o que se passava com a porta fechada à chave e o convite para mudar estrategicamente de lugar, a pretexto de um raio de sol perturbador?
Naturalmente estava na sua frente, à espera. Mas não me sentia um polvo.
Era véspera de 28 de setembro. Véspera de um dia importante.
Ainda em relação ao nosso encontro, sozinhos em casa, havia um pormenor que estava a fugir-me. Modificou a sua opinião do primeiro encontro ao pedir para ter uma certa cautela na escola. Não queria que soubessem que ia a casa dela. Justificou-se. Começava a conhecer melhor a hipocrisia do mundo. Principalmente das mulheres.
De facto na escola vivia mergulhado num mundo muito complicado de mulheres.
Malhas, não que “o Império tece”... mas que elas, mulheres, teciam.
Agora o sol já não entrava pelas persianas e podia olhar para ela sem franzir os olhos. Se alguma coisa ia acontecer, mais difícil se tornava. Tinha que sair daquele sofá e aproximar-me dela. Fundir o gelo e tentar descobrir a mulher que se escondia atrás da máscara.
Ia tomar uma decisão?
Pois, uma decisão. Lá teria que ser.
Foi então que aconteceu. Um estoiro seco, vindo detrás de mim. Olhei logo para a cozinha. Há muito que estava a desconfiar dos ruídos estranhos que vinham do lado da cozinha. Fiquei calmo. Estranhamente calmo. Podia observar a Fátima até ao mínimo pormenor. Estava muito assustada. Em pânico. O que quer que fosse que tinha acontecido, perturbou-a. Levantei-me e corri para a cozinha.
Ou foi ela a primeira a levantar-se?
Se não ficou colada ao sofá, certamente foi a primeira a chegar lá.
Estilhaçara-se um copo que estava misturado com outra loiça já lavada. Havia fragmentos de vidros espalhados pelo lava-loiças e pelo chão. O chão era em mosaicos e os fragmentos de vidro viam-se mal.
Nos prédios da avenida de Roma também aconteciam coisas estranhas.
«Alguém chegou aqui.» Comentei, calmamente.
Ela ficou ainda mais assustada.
«Boa, Mário!» pensei. «Estragaste tudo.»
Observei, com cuidado, os vidros da marquise e concluí que não tinham qualquer furo.
Estaria mais alguém naquela casa?
Era uma hipótese.
Baixámo-nos a recolher os vidros. A Fátima estava visivelmente nervosa.
Fui de opinião que os vidros deviam ser levados para fora de casa. Impunha-se uma limpeza imediata.
«Há um vidrão perto.» Disse ela.
Não ficou um único vidro para amostra. Era essencial que todos os estilhaços de vidro saíssem.
Mas porquê?
Talvez porque resolvi mandar aquela boca!
«Se descobrires alguma coisa, conta-me.» Disse ela.
«Fica combinado.»
Logo a seguir saí. De facto havia um vidrão perto, em frente ao prédio. Deitei os vidros no vidrão e o saco num recipiente para o lixo. Depois fui apanhar o autocarro. Olhei para cima. Ela estava por detrás da janela. Esboçou uma fuga, mas eu já tinha levantado o indicador direito, como que a dizer:
«Missão cumprida.»
Não teve outro remédio senão dizer-me adeus. Retribuí com outro gesto, mas o meu pensamento-resposta foi outro quando a vi espreitar por detrás dos vidros.
«Desconfiada!»
Foi então que senti uma arritmia quando já estava na paragem do autocarro.
Porquê a arritmia?
Nem sequer ficara assustado!
Esperava-me também uma surpresa em casa quando vi um copo quebrado.
No dia seguinte encontrei-me com ela na escola. Contei-lhe que também se quebrara um copo na minha casa. Parece que o segundo caso do copo ainda a assustou mais e fez transbordar a história para um beco sem saída e desculpou-se de imediato.
Ainda mais um pormenor daquele dia do copo estilhaçado. A Fátima estava vestida com um fato de treino azul e tinhas riscas azuis na pintura dos olhos. Azul. Fato de treino. Corrida. Fuga. Era previsível. Aliás, depois desse dia, começou a fugir, a fingir que não me via.
Mulher fria! E eu a pensar que ela era ninfomaníaca…
Já me esquecia duma coisa que referi atrás, ainda antes das férias. Tinha-lhe pedido para ilustrar o livro do meu amigo António. Na altura disse que sim. E coisa estranha! Mais tarde, disse mesmo que não fazia a ilustração para o conto insólito.
«Conto? Mas era para o livro de poemas...»
«Já não sei para o que era!»
Fez-se desentendida ao contar-me que não dormira na noite em que leu Uma Morte Anunciada. Uma amiga dela também ficou muito impressionada. Não fazia a ilustração. Queria dormir descansada.
E o livro de poemas?
Claro. Ficou com ele.
Dias mais tarde telefonei-lhe.
«Tive uma certa relutância em telefonar-te...»
Mas ela foi convincente. A nossa amizade não tinha acabado.
Tivemos uma conversa interessante em que ela tentou dizer que estava enganado quando dizia que ela me evitava.
«Sabes, Fátima, só quero descobrir o que aconteceu naquele dia.»
Ponto final num caso que nem sequer chegou a começar, talvez por causa daquele copo que se estilhaçou na cozinha.
Nesta história algo estranha só tenho pena de duas coisas. A primeira coisa, é de nunca vir a entender o porquê do estilhaçar do copo e também da alteração do meu ritmo cardíaco quando já estava na paragem do autocarro. Quanto à segunda, naquela tarde em que a vi fechar a porta à chave por dentro, devia ter saído imediatamente da trajetória dos marotos raios solares que passavam através das persianas…
Comentei o facto. Não foi de propósito (duvidei) e não se importava. Estava na presença duma mulher com grande força anímica. Quanta complicação não havia em volta de uma mulher desconfiada, metódica e toda ela cheia de rotinas! Uma mulher que vivia só desde que o marido a enganara, ao tentar fazer vida dupla.
Mas aquela de morar no prédio em frente não lembrava a ninguém!
«Agora estamos aqui os dois e ele pode ver-nos. Já pensaste? Se ele tiver uma arma...» Dramatizei.
«Os vidros são duplos» replicou. «Não se vê nada do lado de lá. Já experimentei da casa de uma amiga.»
Não fiquei convencido.
«Agora ainda é dia. E se acenderes a luz?»
«Corro os estores.»
Tinha justificação para tudo. Confirmava-se o excesso de organização naquela cabeça certinha e direitinha.
«Mas todos os dias ficas nesta sala, a trabalhar, e olhas para lá. Está na tua frente. Não te impressionas? Repara que estás sempre a recordar-te dele.»
«Não me importo. Só foi bom a princípio.»
Ela devia odiar muito o ex-marido. A proximidade da casa tinha talvez a ver com o desejo de vingar-se. Fora ferida muito fundo e não perdoava. Ele bem tentou a reconciliação. Nunca mais. Agora fazia-lhe pirraça, pensei. Estava no seu direito.
Recordei os primeiros minutos em que me contou, com um sorriso bem marcado, uma história trágica. Esperava ver lágrimas no seu rosto. Era estranho. Muito estranho. Talvez por isso, olhei para ela com um olhar diferente. Talvez também por isso, fechou mais o robe. Preferia chamar-lhe um robe de mangas curtas que ela devia usar quando trabalhava na sua arte, fora dos momentos dedicados à componente letiva.
E mais uma coisa: juro que só por mera distração estava a olhar para os seus seios.
«Quem mais jura, mais mente, Mário.»
Ignorei o comentário do meu amigo imaginário.
Onde ia meter os olhos naquele momento crucial que parecia estar a durar uma eternidade?
Fiquei ainda a saber que era uma mulher só e que não queria voltar a envolver-se.
Tomei aquela confidência como um sério aviso à navegação. E eu era a navegação. De certa maneira. Mas navegava noutras águas.
Que fui lá fazer?
Não era artista plástico, mas desenhei com arte todas as linhas importantes e não importantes das suas mãos brancas. Ao mesmo tempo, conversámos bastante, o que deu para iniciar uma amizade diferente, que estava longe de tender para aqueles estranhos casos de amor à primeira vista.
«Estás interessado nela?»
Aquela pergunta que fiz ao Raul foi enigmática, pois mal a conhecia.
Quando fiz a pergunta, estaria interessado nessa mulher?
Talvez. Mas, lado a lado com ela, e ao pegar-lhe na mão, não tive um mínimo impulso ou descontrolo. Mesmo quando o robe se abriu e deixei de ver, por momentos, parte das sardas que se espalhavam abaixo do pescoço, porque descobri umas colinas redondas, não muito erguidas, talvez fruto do uso alheio.
Estou a pintar a história com matizes fortes, agressivos, quase chocantes, nada lógicos para a minha sensibilidade.
Para falar verdade, aprecio mais os tons esbatidos, a beleza sensual da Maria, uma mulher que começa a fugir do meu horizonte porque não consegui montar o cavalo da coragem!
Onde está agora a Maria?
Parece que a previsão bateu certo. Passou a levar uma vida subterrânea.
Saí de casa da Fátima já depois da meia-noite.
Foi incrível! Estive umas horas sozinho com uma mulher interessante e nada aconteceu. O mais normal era ter-me enrolado com ela. Apenas tivemos uma conversa viva que passou, inevitavelmente, pelos domínios do paranormal, ao mesmo tempo que desenhava as linhas principais da palma da mão. Não vi vestígios de lágrimas, nem senti um simples aroma de feromonas no ar. Sinais evidentes de ódio e também um enorme desejo de vencer profissionalmente. Mas não podia esquecer-se que a fama cobrava honorários muito altos.
Voltei a casa dela uns dias mais tarde para falarmos do relatório que fiz. Só era para falarmos do relatório, mas levei um livro de poemas.
Nessa noite pedi-lhe para fazer uma ilustração para o livro. O meu amigo António ia agradecer.
Ou foi depois, na sala dos computadores, quando lhe entreguei uma pasta com um conto insólito?
Dias mais tarde...
Estava sentado num sofá, virado para a porta da sala de professores quando a vi entrar. Hesitei ao dar conta que me evitava. Mas tive um impulso e fui ao seu encontro.
«Nunca mais nos encontrámos.» Disse, de chofre.
Olhou para mim de modo indefinido. Achei-a uma mulher interessante, embora com ar provinciano. Estava bem vestida e pintada. Nada mais. Pensei que não ia responder.
Tinha a tarde livre. Foi só o que disse, muito séria.
Eram três horas quando toquei à campainha. A porta da rua abriu-se de imediato. Entrei no elevador. Estava tenso. Apreensivo.
Ia receber-me bem?
Recebeu-me com um sorriso. Trocámos um beijo. Afinal não me estendeu a mão. Isso era só na escola. Aconteceu um pormenor de que não dera conta das outras vezes. Fechou a porta por dentro, dando duas ou três voltas à chave.
Fiquei na expectativa, especado no hall, tentando confirmar nos próximos segundos se ela era mesmo ninfomaníaca ou se aquele ato de dar as tais voltas à chave tinha resultado de um simples gesto automático.
Estivemos primeiro na marquise ligada à cozinha, onde mostrou-me as plantas e me pediu alguns conselhos. Confessei que percebia mais de catos e suculentas, mas dei-lhe algumas ideias básicas. As plantas não eram nenhuma maravilha e o estado delas estava longe de ser o ideal. Mas adiante. Esgotada a conversa das plantas, fomos para a sala. Ficámos frente a frente em dois sofás, separados por cerca de dois metros. Uma barreira, pensei.
Mas ela tinha fechado a porta à chave!
Foi um gesto mecânico ou uma manobra?
Podia estar a experimentar-me.
«Não te incomoda o sol?»
De facto, os raios solares passavam através das persianas da janela em frente e obrigavam-me a semicerrar os olhos.
«Não tem importância.»
«Passa para aqui.»
É o passas, Mário!
Deu-me duas hipóteses a escolher: ficava ao seu lado, ou noutro sofá mais à esquerda. Pensei rápido. Era melhor continuar no mesmo sítio. Nem pareceu minha a decisão.
Não sei se foi nesse dia que ela disse que não ia com qualquer homem para a cama. Talvez porque falámos de certos casos que estavam a ocorrer na escola e eram objeto de conhecimento de quase toda a gente. Portanto, ela lançava mais um aviso à navegação. Aviso curioso. Mas fechara a porta à chave por dentro. Além de mais, estava sozinha em casa com um homem que mal conhecia. Para culminar, tinha-me convidado a aproximar dela, a pretexto de uns simples raios solares que hipoteticamente me perturbavam.
Ouvi subitamente um estalido. Virei-me para trás. O ruído parecia ter vindo da cozinha. Ela sorriu, aparentando estar calma.
«Não te preocupes. Foi o esquentador. Já é hábito.»
«Ah... sim.»
Qualquer coisa estava para acontecer naquela tarde de setembro e claro que não sabia o quê. Naquele momento os seus olhos viravam-se para os meus.
Sentia-me tranquilo em excesso. No olho de um furacão.
«Ah!, Maria... Maria... se fosses tu em vez dela! Mas nunca me convidaste para entrar na tua casa.»
Abordámos o caso da amizade entre um homem e uma mulher. Com o intuito de a baralhar disse-lhe que estava de pé atrás relativamente às minhas intenções. Mas ela foi firme. Só havia amizade.
Concordei.
E o que se passava com a porta fechada à chave e o convite para mudar estrategicamente de lugar, a pretexto de um raio de sol perturbador?
Naturalmente estava na sua frente, à espera. Mas não me sentia um polvo.
Era véspera de 28 de setembro. Véspera de um dia importante.
Ainda em relação ao nosso encontro, sozinhos em casa, havia um pormenor que estava a fugir-me. Modificou a sua opinião do primeiro encontro ao pedir para ter uma certa cautela na escola. Não queria que soubessem que ia a casa dela. Justificou-se. Começava a conhecer melhor a hipocrisia do mundo. Principalmente das mulheres.
De facto na escola vivia mergulhado num mundo muito complicado de mulheres.
Malhas, não que “o Império tece”... mas que elas, mulheres, teciam.
Agora o sol já não entrava pelas persianas e podia olhar para ela sem franzir os olhos. Se alguma coisa ia acontecer, mais difícil se tornava. Tinha que sair daquele sofá e aproximar-me dela. Fundir o gelo e tentar descobrir a mulher que se escondia atrás da máscara.
Ia tomar uma decisão?
Pois, uma decisão. Lá teria que ser.
Foi então que aconteceu. Um estoiro seco, vindo detrás de mim. Olhei logo para a cozinha. Há muito que estava a desconfiar dos ruídos estranhos que vinham do lado da cozinha. Fiquei calmo. Estranhamente calmo. Podia observar a Fátima até ao mínimo pormenor. Estava muito assustada. Em pânico. O que quer que fosse que tinha acontecido, perturbou-a. Levantei-me e corri para a cozinha.
Ou foi ela a primeira a levantar-se?
Se não ficou colada ao sofá, certamente foi a primeira a chegar lá.
Estilhaçara-se um copo que estava misturado com outra loiça já lavada. Havia fragmentos de vidros espalhados pelo lava-loiças e pelo chão. O chão era em mosaicos e os fragmentos de vidro viam-se mal.
Nos prédios da avenida de Roma também aconteciam coisas estranhas.
«Alguém chegou aqui.» Comentei, calmamente.
Ela ficou ainda mais assustada.
«Boa, Mário!» pensei. «Estragaste tudo.»
Observei, com cuidado, os vidros da marquise e concluí que não tinham qualquer furo.
Estaria mais alguém naquela casa?
Era uma hipótese.
Baixámo-nos a recolher os vidros. A Fátima estava visivelmente nervosa.
Fui de opinião que os vidros deviam ser levados para fora de casa. Impunha-se uma limpeza imediata.
«Há um vidrão perto.» Disse ela.
Não ficou um único vidro para amostra. Era essencial que todos os estilhaços de vidro saíssem.
Mas porquê?
Talvez porque resolvi mandar aquela boca!
«Se descobrires alguma coisa, conta-me.» Disse ela.
«Fica combinado.»
Logo a seguir saí. De facto havia um vidrão perto, em frente ao prédio. Deitei os vidros no vidrão e o saco num recipiente para o lixo. Depois fui apanhar o autocarro. Olhei para cima. Ela estava por detrás da janela. Esboçou uma fuga, mas eu já tinha levantado o indicador direito, como que a dizer:
«Missão cumprida.»
Não teve outro remédio senão dizer-me adeus. Retribuí com outro gesto, mas o meu pensamento-resposta foi outro quando a vi espreitar por detrás dos vidros.
«Desconfiada!»
Foi então que senti uma arritmia quando já estava na paragem do autocarro.
Porquê a arritmia?
Nem sequer ficara assustado!
Esperava-me também uma surpresa em casa quando vi um copo quebrado.
No dia seguinte encontrei-me com ela na escola. Contei-lhe que também se quebrara um copo na minha casa. Parece que o segundo caso do copo ainda a assustou mais e fez transbordar a história para um beco sem saída e desculpou-se de imediato.
Ainda mais um pormenor daquele dia do copo estilhaçado. A Fátima estava vestida com um fato de treino azul e tinhas riscas azuis na pintura dos olhos. Azul. Fato de treino. Corrida. Fuga. Era previsível. Aliás, depois desse dia, começou a fugir, a fingir que não me via.
Mulher fria! E eu a pensar que ela era ninfomaníaca…
Já me esquecia duma coisa que referi atrás, ainda antes das férias. Tinha-lhe pedido para ilustrar o livro do meu amigo António. Na altura disse que sim. E coisa estranha! Mais tarde, disse mesmo que não fazia a ilustração para o conto insólito.
«Conto? Mas era para o livro de poemas...»
«Já não sei para o que era!»
Fez-se desentendida ao contar-me que não dormira na noite em que leu Uma Morte Anunciada. Uma amiga dela também ficou muito impressionada. Não fazia a ilustração. Queria dormir descansada.
E o livro de poemas?
Claro. Ficou com ele.
Dias mais tarde telefonei-lhe.
«Tive uma certa relutância em telefonar-te...»
Mas ela foi convincente. A nossa amizade não tinha acabado.
Tivemos uma conversa interessante em que ela tentou dizer que estava enganado quando dizia que ela me evitava.
«Sabes, Fátima, só quero descobrir o que aconteceu naquele dia.»
Ponto final num caso que nem sequer chegou a começar, talvez por causa daquele copo que se estilhaçou na cozinha.
Nesta história algo estranha só tenho pena de duas coisas. A primeira coisa, é de nunca vir a entender o porquê do estilhaçar do copo e também da alteração do meu ritmo cardíaco quando já estava na paragem do autocarro. Quanto à segunda, naquela tarde em que a vi fechar a porta à chave por dentro, devia ter saído imediatamente da trajetória dos marotos raios solares que passavam através das persianas…
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