sábado, 6 de maio de 2023

Lisboa e o princípio do fim


 Em meados de outubro surgiu mais uma variável que viria a perturbar a rotina da minha vida. Uma variável importante, diga-se. Entrei para a Faculdade de Ciências, concretizando um sonho antigo e também o do meu pai que se sacrificou para que tivesse um outro futuro, bem diferente do seu. 
Perdi-me em Lisboa. A capital deslumbra­va-me. Era o começo de uma vida diferente. De liberdade. De independência. E depois havia o desejo de me perder na cidade e cortar todos os cordões umbilicais. Era natural.
A ida para a Faculdade em nada alterou a relação com a Manuela, pelo menos enquanto existiu um compromisso mútuo de confiança. A maior parte do tempo de namoro passou-se com trocas de cartas, de cá para lá e de lá para cá, quase todos os dias. Tudo estava bem. Nunca nos cansámos de escrever, mas claro que roçámos muitas vezes a banalidade e por essa razão tentei dar a volta, inventando histórias que pedia para ela continuar. Nunca o fez. Confessava que não tinha jeito. E eu danava-me, mas era só no momento. Gostava muito 
dela. Dizia que era a mulher única e que nunca a ia perder. Seríamos os eternos enamorados.
Bem me enganei. A maldição caiu forte sobre nós quando aluguei um quarto na rua de S. Bento. O serviço de refeições era requintado e cada hóspede tinha a sua mesa privativa. O pequeno-almoço era bom, à descrição. Pão com manteiga ou doce, pãezinhos de Deus, leite do dia servido em leiteira de inox, um bule com chá, uma pequena cafeteira para o café. Tudo sobre uma toalha branca, muito limpa. As outras refeições também eram fartas e de qualidade razoável. Quanto aos hóspedes, aí torcia o nariz porque eram todos indianos e achei-os muito falsos, o que ocasionou um ou outro conflito de que saí sempre por cima.
Para amenizar o ambiente apareceu a Rosa Maria, uma simpática algarvia que se tornou minha protegida quando me pediu um dia para despedir o explicador de Português.
Recebi-o à porta e disse-lhe, cara a cara, com firmeza, que a menina Rosa não queria mais explicações. Não tugiu, nem mugiu, nem sequer pediu a conta. O homem desapareceu sem uma palavra, com o rabo metido entre as pernas. 
Estranhei a atitude dele. Havia ali coisa grossa. Lembrei-me que a Rosa Maria estava muito nervosa quando me pediu para o despedir.
Que motivo forte levou à despedida?
Meteu-lhe as mãos nas coxas gordas ou então aconteceu outra coisa ainda pior. A Rosa Maria não me contou. Também não lhe perguntei.
Mas estava aí o pomo da discórdia e fui um ingénuo. Caí na boca do leão, sem sequer haver um leão. Até porque nunca houve nada entre nós. O mal foi contar à minha namorada tudo o que se passava na pensão e provavelmente falei muitas vezes da Rosa Maria. As cartas que trocávamos eram quase diárias e naturalmente o assunto faltava. Daí fazer uma espécie de diário de tudo o que se passava naquela pensão.
Ela desconfiou. Por mais que insistisse que não passava de uma amiga e que se sentia deslocada de todo no ambiente em que se inseria, não acreditou na sinceridade das minhas palavras. A Rosa Maria precisava de proteção porque estava rodeada de indianos. E eu julgava que não tinham as melhores intenções em relação à jovem algarvia.
Foi assim que vi nascer o ciúme doentio na nossa relação. Nada bom. Começou a roer o amor que jurámos ser eterno.
Entretanto enchi o saco por causa dos indianos que estavam a criar demasiadas intrigas em relação à Rosa Maria e decidi mudar-me no princípio do ano para um quarto na travessa de S. Sebastião. Era um terceiro andar com alguma vista sobre a parte norte da cidade. Havia uma varanda larga virada para norte e alguns dos quartos davam precisamente para a dita varanda, um dos quais o que ocupava.
A pensão, com cerca de dez comensais todos homens era gerida pela "Aninhas-morte-lenta". Aqui as refeições nada tinham a ver com as da pensão da rua de S. Bento. Comia-se mal. Muito mal. Mas era mais do meu agrado em relação à convivência com os outros comensais, na sua maioria estudantes.
Foi em janeiro que o veneno do ciúme, que atuara lentamente por causa duma suposta relação minha com a Rosa Maria, matou de vez o mito da mulher única.
Gostávamos muito um do outro, mas não nos entendíamos. Então o melhor seria pararmos com as cartas e esperarmos por melhores tempos, pensei.
Propus a interrupção e ela concordou logo.
Continuei a perder-me em Lisboa, seduzido pelo prazer matreiro da liberdade.
Será que ganhei alguma coisa com os novos horizontes que se abriram?
Apareceu a Odete. Apareceu a Ausenda. Apareceu a Natália. Outras mais. Mas o lugar da Manuela ficou sempre no meu coração!
O pior de tudo ainda é que não acabámos a bem. Trocámos cartas e prendas e foi ela a primeira a fazê-lo. Fiquei revoltado e fui para o quintal da casa dos meus pais, onde ateei uma grande fogueira com as cartas que a Manuela me devolveu. Foi um impulso de que me arrependi logo. Até porque estava ali uma vida que durou pouco mais de dois anos e também muitas histórias que eu tinha começado e depois acabado porque a Manuela não conseguia, de forma alguma, pegar nelas. 
Até trocámos as alianças em prata com a flor-de-lis.
Arrependi-me?

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