Numa certa manhã, com sol radioso, apenas sol, ou nem por isso, fosse de maneira fosse resolvi desanuviar um pouco. Os clientes não apertavam àquela hora e os que vinham pouco ou nada adiantavam ao negócio. Eram movidos apenas pela curiosidade de darem uma vista de olhos a uma loja que tinha pouco tempo de existência.
Fechei a porta da loja de colecionismo e velharias, dei alguns passos no corredor que dava acesso a mais três lojas, na ocasião desocupadas, e vi-me logo na rua. De seguida dirigi-me para nascente, passei por um largo referenciado por uma igreja vetusta e um dos cafés mais antigos da cidade e encaminhei-me para sul subindo uma rua outrora com comércio florescente e agora com mais lojas fechadas que abertas. Sinais de uma crise grave instalada em tempos ainda longe da crise que vem-se agora agudizando com a ocorrência de uma intrusão perniciosa. O oportunista do Covid–19. Mas não é sobre ele que quero escrever.
Já no centro da cidade resolvi parar no passeio externo ao jardim. Entre a tentação de sentar-me no banco pintado de verde, onde julgava existir um portal de ligação para outro universo que nada tinha a ver com os bancos do inovado parque existente na periferia e dos quais já falei em tempos, bem como do incrível “crânio” que os concebeu.
Devia continuar para cima ou sentava-me no banco?
Foi nesse momento exato que fiquei frente a frente com um homem de idade próxima da minha, talvez uma meia dúzia de anos mais velho.
«Eu conheço o senhor…»
«E eu não conheço.» Pensei.
Não disse de onde me conhecia, mas estabeleceu-se um diálogo entre nós. Ao mesmo tempo pensava no motivo da sua intromissão. E não demorou. Palavra puxa palavra, confidenciou-me modestamente que tocava "umas coisas" de violino. Mostrei admiração. Não tinha ar de violinista. Sem desprimor, parecia-me mais ser um trabalhador do campo. Desses, de rosto tisnado pelos raios solares, que trabalhavam de sol a sol.
«Quando era mais novo tive um conjunto que atuava nas aldeias. E confesso que com grande êxito. Era trompetista na altura.»
Então lembrei-me do trombetista que abrilhantou um pequeno baile que teve lugar num fim de ano, em vésperas de perdermos Goa, Damão e Diu. Chovia a cântaros e todo o pessoal concentrava-se no interior de uma vivenda, a beber e a dançar. O trompetista era mesmo um fora de série. Isto segundo a minha fraca opinião. Mas poucos o apreciavam. Estavam mais interessados em cingir mais ao seu corpo o par do momento, e vice-versa, do que apreciar a arte daquele músico que tratava por tu o trompete quando ainda estava sóbrio.
A certa altura aproximei-me do trompetista e pedi-lhe para tocar a música do “Tesouro Submarino”. O homem sorriu e fez-me um sinal de quem tinha recebido o pedido. Passava já uma hora da meia noite e o pessoal estava mais alegre do que nunca. Um dos meus amigos teimava em ficar sentado numa cadeira, a meio do hall que dava acesso à sala principal por meio de uma porta tipo Texas, daquelas por onde entravam a passo os cowboys e depois voavam para o exterior. Já sabem como era. Mas o meu amigo não era cowboy e filosofava, sem ser filósofo, sob o efeito do álcool. Deixei-o falar, sem intervir. Felizmente o discurso acabou pouco depois.
«Viste o Alfredo?» perguntei.
«Esse gajo é um grande sacana. Roubou-me a Susana.»
«Está bem. Mas o que me interessa é que ele tem a chave da despensa. São precisas mais garrafas lá para dentro. O trompetista disse que tem a garganta seca e assim não consegue tocar aquela música do “Tesouro Submarino”. Conheces a música? É porreira, porra!»
Em boa verdade não ouviu nada do que disse. Estava obcecado com a cena do Alfredo que lhe tinha dado um nó cego.
«Se eu o apanho, nem sabe de que terra é!»
«Está bem, Fernando. Se bebesses mais laranjada talvez a Susana não te tivesse passado a perna, compreendes?»
O hall dava para a cozinha e entrava-se pela mesma. Aliás, aquela vivenda era fora do comum.
Já na cozinha, na parede à direita dei com a porta de despensa. E não estive com meias medidas. Coisa fácil. Com um pontapé bem dado a porta foi dentro.
«Vejamos. Cá está a vinhaça. E o saca-rolhas à vista. Que sorte a minha!»
Pouco depois estava junto ao músico. No momento esboçava pôr no ar as primeiras notas de “Tesouro Submarino”. Digo esboçava porque a coisa estava a correr mal. Afinal o músico não precisava de mais vinho para deixar mal vista a sua arte.
«E quando foi que trocou o trompete pelo violino, meu amigo?»
«Isso é uma longa história.»
Esta já ia longa e nem sequer era a história que tinha para contar.
«Amanhã vou à sua loja e levo o violino...»
«Sim?»
Claro que não acreditei. Ou melhor, pensei que queria pôr o violino em exposição para venda. Dificuldades financeiras ou um sentimento de incapacidade em virtude da idade avançada.
«Quanto quer para si se eu conseguir vender o violino?»
«Mas não! Vou mesmo tocar.»
Quase que se ofendeu.
«Ok. Tenho muito prazer em apreciar a sua arte. Lá o espero, amigo.»
No caminho para casa lembrei-me de um colega da Escola Secundária que tocava violino numa só corda. À viva força queria fazer parte do nosso conjunto, de nome Academus (antes Red Diamonds), onde eu era um dos vocalistas. Não é para me gabar, mas nesses tempos tinha boa voz. Só faltava domar a rebeldia em insistir nas subidas de tom, que, por vezes, conduziam a fífias que tentava disfarçar. E naquele tempo não havia quem cuidasse de educar vozes que, inevitavelmente, se iam perder, como seria o meu caso. E foi mesmo assim que aconteceu.
«Precisas só de um empurrão, Mário.» Disseram-me uma vez, após uma atuação do conjunto em que cantei o "Arrivederci Roma" como nunca.
«Se eu o apanho, nem sabe de que terra é!»
«Está bem, Fernando. Se bebesses mais laranjada talvez a Susana não te tivesse passado a perna, compreendes?»
O hall dava para a cozinha e entrava-se pela mesma. Aliás, aquela vivenda era fora do comum.
Já na cozinha, na parede à direita dei com a porta de despensa. E não estive com meias medidas. Coisa fácil. Com um pontapé bem dado a porta foi dentro.
«Vejamos. Cá está a vinhaça. E o saca-rolhas à vista. Que sorte a minha!»
Pouco depois estava junto ao músico. No momento esboçava pôr no ar as primeiras notas de “Tesouro Submarino”. Digo esboçava porque a coisa estava a correr mal. Afinal o músico não precisava de mais vinho para deixar mal vista a sua arte.
«E quando foi que trocou o trompete pelo violino, meu amigo?»
«Isso é uma longa história.»
Esta já ia longa e nem sequer era a história que tinha para contar.
«Amanhã vou à sua loja e levo o violino...»
«Sim?»
Claro que não acreditei. Ou melhor, pensei que queria pôr o violino em exposição para venda. Dificuldades financeiras ou um sentimento de incapacidade em virtude da idade avançada.
«Quanto quer para si se eu conseguir vender o violino?»
«Mas não! Vou mesmo tocar.»
Quase que se ofendeu.
«Ok. Tenho muito prazer em apreciar a sua arte. Lá o espero, amigo.»
No caminho para casa lembrei-me de um colega da Escola Secundária que tocava violino numa só corda. À viva força queria fazer parte do nosso conjunto, de nome Academus (antes Red Diamonds), onde eu era um dos vocalistas. Não é para me gabar, mas nesses tempos tinha boa voz. Só faltava domar a rebeldia em insistir nas subidas de tom, que, por vezes, conduziam a fífias que tentava disfarçar. E naquele tempo não havia quem cuidasse de educar vozes que, inevitavelmente, se iam perder, como seria o meu caso. E foi mesmo assim que aconteceu.
«Precisas só de um empurrão, Mário.» Disseram-me uma vez, após uma atuação do conjunto em que cantei o "Arrivederci Roma" como nunca.
O comprovativo? Uma grande salva de palmas que me fez voar para um mundo infelizmente virtual.
Pois sim. Promessas. Empurrões só do vento. Ninguém me empurrou. Já não interessa chorar sobre o leite derramado.
Pois sim. Promessas. Empurrões só do vento. Ninguém me empurrou. Já não interessa chorar sobre o leite derramado.
«Queres ouvir?» perguntou o colega que tocava violino com uma só corda.
Fiquei a pensar que não seria desinteressante de todo aumentar o número de participantes no conjunto, nem que fosse para fazerem número.
«Falei com o Guedes e ele não se opôs. Que falasse contigo.»
Já tínhamos o Norberto nas maracas e o Lopes no contrabaixo. Mais um ou menos um era indiferente. Aliás, logicamente não desafinavam.
«Não é preciso. Podes entrar para o conjunto.»
Bom, e lá entrou para o conjunto o Virgílio, o tal que tocava violino com uma só corda (!).
Bom, e lá entrou para o conjunto o Virgílio, o tal que tocava violino com uma só corda (!).
Sobre o Academus...
Teve vida efémera. Menos que a dos Red Diamonds. Esse nome só existiu num folheto publicitário que distribuímos pela vila. O Guedes achou que era melhor mudarmos o nome para Academus. Soava bem ao ouvido, tinha um toque eclético e afinal éramos quase todos universitários. Falando da vida efémera do conjunto, atuámos nas coletividades da vila que ainda não era cidade e uma vez numa aldeia, talvez essa a que teve mais êxito.
«E se organizássemos um baile no Grémio?»
«Não é má ideia.» Concordou logo a pianista, que parecia andava a entender-se bem com o Vítor.
Achei que a sua viola desafinava demasiadas vezes e era a Maria que lhe dava o tom certo.
«Mas o repertório é muito curto!» contrapus.
«Não há problema. Prolongamos as peças e repetimos as vezes que forem necessárias.»
Saudades desses tempos…
O nosso homem, que se chamava Brilhante, cumpriu a sua palavra. No dia seguinte apareceu na loja com o violino e tocou as "Czardas de Monti"!
Gostei. Executou a peça com todas as cordas e de forma aceitável para os meus ouvidos que não detetaram qualquer fífia. Esse flagrante da vida veio amenizar naquele dia o deserto que era aquela loja localizada numa rua deserta, como deserta e sem vida estava a minha cidade que ontem foi vila e tinha um comércio robusto.
Mas não era sobre este flagrante da vida que queria escrever. Serviu apenas de rampa de lançamento para um outro flagrante, talvez mais delicioso para quem é apreciador de delícias do género. Para tal é preciso recuar mais uns anos no tempo…
O Matilde nunca gostou do seu nome. Gozavam com ele porque o nome pendia mais para o feminino do que para o masculino. E nesse tempo as insinuações grosseiras, que hoje se designam por bullyng, eram mais que muitas. Não gostava. Até porque o seu "josezinho" não era coisa para uma mulher desprezar. Mas, voltando ao bullyng, não dava parte de fraco. Aliás, até beneficiava com tal pois tinha melhor aceitação entre as mulheres. E, como oportunista que era, não desperdiçava pitada que lhe aparecesse pela frente.
Naquele tempo era habitual deslocarem-se às aldeias das redondezas da então minha vila os conjuntos musicais de meia bola e força, tipo do “Brilhante das Czardas” e do executante de alto gabarito do “Tesouro Submarino”, isto quando não estava embriagado.
«Tá-rá-rá-tá-rá-rá-tá-tá…»
Os conjuntos e não só. Os engatatões engravatados da vila que procuravam caça grossa. Por mais que soassem sinais de alerta nas aldeias, os êxitos dos forasteiros eram quase sempre garantidos. E o nosso Matilde conhecia muito bem a situação. E não perdoava, oportunista que era.
Um dia, quando falava com o meu pai sobre figuras típicas dos tempos em que a minha cidade de hoje era vila, contou-me um caso que se passou num desses bailes com o Matilde.
O convite para dançar foi ocasional e, aparentemente, bem sucedido. A moçoila disse que sim e lá foram os dois para o meio da sala, à espera que a série de músicas, abrilhantada por um acordeonista, começasse. As cadeiras da frente, onde se sentavam as jovens da aldeia, bonitas, feias, gordas, magras, à espera de um convite formal. alinhavam-se num quadrado quase perfeito.
Já efetivado o convite, o Matilde fixou primeiro os olhos na jovem e depois estes perderam-se nuns peitos avantajados que prometiam soltar o botão da blusa mais próximo do pescoço.
Saudades desses tempos…
O nosso homem, que se chamava Brilhante, cumpriu a sua palavra. No dia seguinte apareceu na loja com o violino e tocou as "Czardas de Monti"!
Gostei. Executou a peça com todas as cordas e de forma aceitável para os meus ouvidos que não detetaram qualquer fífia. Esse flagrante da vida veio amenizar naquele dia o deserto que era aquela loja localizada numa rua deserta, como deserta e sem vida estava a minha cidade que ontem foi vila e tinha um comércio robusto.
Mas não era sobre este flagrante da vida que queria escrever. Serviu apenas de rampa de lançamento para um outro flagrante, talvez mais delicioso para quem é apreciador de delícias do género. Para tal é preciso recuar mais uns anos no tempo…
O Matilde nunca gostou do seu nome. Gozavam com ele porque o nome pendia mais para o feminino do que para o masculino. E nesse tempo as insinuações grosseiras, que hoje se designam por bullyng, eram mais que muitas. Não gostava. Até porque o seu "josezinho" não era coisa para uma mulher desprezar. Mas, voltando ao bullyng, não dava parte de fraco. Aliás, até beneficiava com tal pois tinha melhor aceitação entre as mulheres. E, como oportunista que era, não desperdiçava pitada que lhe aparecesse pela frente.
Naquele tempo era habitual deslocarem-se às aldeias das redondezas da então minha vila os conjuntos musicais de meia bola e força, tipo do “Brilhante das Czardas” e do executante de alto gabarito do “Tesouro Submarino”, isto quando não estava embriagado.
«Tá-rá-rá-tá-rá-rá-tá-tá…»
Os conjuntos e não só. Os engatatões engravatados da vila que procuravam caça grossa. Por mais que soassem sinais de alerta nas aldeias, os êxitos dos forasteiros eram quase sempre garantidos. E o nosso Matilde conhecia muito bem a situação. E não perdoava, oportunista que era.
Um dia, quando falava com o meu pai sobre figuras típicas dos tempos em que a minha cidade de hoje era vila, contou-me um caso que se passou num desses bailes com o Matilde.
O convite para dançar foi ocasional e, aparentemente, bem sucedido. A moçoila disse que sim e lá foram os dois para o meio da sala, à espera que a série de músicas, abrilhantada por um acordeonista, começasse. As cadeiras da frente, onde se sentavam as jovens da aldeia, bonitas, feias, gordas, magras, à espera de um convite formal. alinhavam-se num quadrado quase perfeito.
Já efetivado o convite, o Matilde fixou primeiro os olhos na jovem e depois estes perderam-se nuns peitos avantajados que prometiam soltar o botão da blusa mais próximo do pescoço.
Que desassossego! E esfregou as mãos em pensamento.
«Para onde estás o olhar?»
«Para nada» mentiu, sorridente. «Como é a tua graça?»
«Maria.»
«Só?»
«Não. Mas basta Maria.»
«Pois bem, Maria, vamos deslizar pela sala com a elegância de dois cisnes. Salvo seja.»
«Para onde estás o olhar?»
«Para nada» mentiu, sorridente. «Como é a tua graça?»
«Maria.»
«Só?»
«Não. Mas basta Maria.»
«Pois bem, Maria, vamos deslizar pela sala com a elegância de dois cisnes. Salvo seja.»
Ela sorriu, com uma certa ironia quase premonitória.
«Vamos a ver...»
A música começou e o Matilde lamentou-se em pensamento. Logo calhou uma música rápida. Não tinha como prendê-la junto a si. Azar do caraças, o seu.
«Vamos lá então, graciosa Maria.»
«Pois vamos. Mas ainda não sei como te chamas.»
«Vamos a ver...»
A música começou e o Matilde lamentou-se em pensamento. Logo calhou uma música rápida. Não tinha como prendê-la junto a si. Azar do caraças, o seu.
«Vamos lá então, graciosa Maria.»
«Pois vamos. Mas ainda não sei como te chamas.»
Demorou a responder.
«Arnaldo.»
«Arnaldo.»
Porque mentiu?
«Nome bonito.»
E lá foram deslizando pela sala, tentando imitar o par de cisnes mencionados pelo Matilde.
«Ai!»
«Que foi, donzela?»
«Pisaste-me, caraças!»
«Desculpa-me. Chega-te mais a mim para acertarmos melhor.»
«Isso querias tu. Vê lá se acertas. Ai! Outra vez.»
E sucederam-se mais ais. Até que ela soltou-se dele e pôs as mãos à ilharga.
«Acabou-se, finório da vila. Só sabes pisar…»
Deu conta que muitos olhavam para os dois.
«Vamos tentar outra vez.»
E foram.
«Ai! Não tens jeito nenhum...»
«Lá está a donzela aos coices!»
Saiu-lhe. Foi o momento certo para o cálice transbordar de tanto cheio.
«Aos coices estás tu, desastrado…»
Infelizmente havia alguns seus amigos nas proximidades e ouviram o que se passou. Como resultado, a partir dessa noite ficou com a alcunha do “donzela aos coices”.
O tempo passou. Já era homem feito quando o meu pai me contou esta história do Matilde, um estofador de profissão muito conhecido na vila. Bom no ofício, mas desastrado na dança.
E lá foram deslizando pela sala, tentando imitar o par de cisnes mencionados pelo Matilde.
«Ai!»
«Que foi, donzela?»
«Pisaste-me, caraças!»
«Desculpa-me. Chega-te mais a mim para acertarmos melhor.»
«Isso querias tu. Vê lá se acertas. Ai! Outra vez.»
E sucederam-se mais ais. Até que ela soltou-se dele e pôs as mãos à ilharga.
«Acabou-se, finório da vila. Só sabes pisar…»
Deu conta que muitos olhavam para os dois.
«Vamos tentar outra vez.»
E foram.
«Ai! Não tens jeito nenhum...»
«Lá está a donzela aos coices!»
Saiu-lhe. Foi o momento certo para o cálice transbordar de tanto cheio.
«Aos coices estás tu, desastrado…»
Infelizmente havia alguns seus amigos nas proximidades e ouviram o que se passou. Como resultado, a partir dessa noite ficou com a alcunha do “donzela aos coices”.
O tempo passou. Já era homem feito quando o meu pai me contou esta história do Matilde, um estofador de profissão muito conhecido na vila. Bom no ofício, mas desastrado na dança.
Voltando ao conjunto Academus, o baile no Grémio podia ter sido a rampa de lançamento para altos voos, mas não foi. Nessa tarde de domingo, com uma razoável assistência à espera daquele conjunto eclético que ia abrilhantar o baile, houve um contratempo mal a primeira música foi para o ar. Faltou a luz! Fim do Academus e mudança para as atribulações do Matilde.
Já era homem mais que homem feito à data em que a história da faceta de dançarino do Matilde se tornou motivo de celebridade aos meus olhos quando, um dia, aceitei um convite do meu primo Hélder para irmos a um baile a um hotel da mesma localidade onde eu tinha arrendado a casa da praia para fins de semana e férias, por sinal um segundo andar onde já tinham acontecido alguns fenómenos insólitos. Alguns, minto. Muitos. E que fenómenos!
«Vais ver que não te arrependes, Mário. Tenho um jogo forte na manga.»
«Vais ver que não te arrependes, Mário. Tenho um jogo forte na manga.»
«Que vai nessa cabeça, primo?»
«Logo vês.»
«Só pode ser...»
«Sim, é isso.»
«E a Júlia?»
«Está de visita a uns parentes e só volta na segunda.»
«Bom, vamos então. E é caro?»
«Não sei. Depende.»
Sempre havia rabos de saias pelo meio. Calhou-me na rifa uma morena baixinha, bem torneada. A dele era mais avantajada. Devíamos ter trocado. Mas não estava em causa. Nem o jantar que antecedeu o baile. Um jantar demasiado caro para a qualidade apresentada.
Então, o que estava em causa?
O Hélder tinha-me dito para tratar bem da pequena. Margarida, se bem me lembro.
«E a Júlia?»
«Está de visita a uns parentes e só volta na segunda.»
«Bom, vamos então. E é caro?»
«Não sei. Depende.»
Sempre havia rabos de saias pelo meio. Calhou-me na rifa uma morena baixinha, bem torneada. A dele era mais avantajada. Devíamos ter trocado. Mas não estava em causa. Nem o jantar que antecedeu o baile. Um jantar demasiado caro para a qualidade apresentada.
Então, o que estava em causa?
O Hélder tinha-me dito para tratar bem da pequena. Margarida, se bem me lembro.
E em que consistia esse tratamento?
«Não deixes que tenha o copo vazio.»
«Onde queres chegar?»
«Ora, adiante. A casa está livre?»
«Não deixes que tenha o copo vazio.»
«Onde queres chegar?»
«Ora, adiante. A casa está livre?»
«Sim. Mas...»
«Ótimo.»
Quando entrámos no salão já muitas mesas estavam ocupadas. De um relance, como faziam os homens do signo Escorpião, dei conta que havia algumas pessoas conhecidas. Pouco interessava a um homem sem compromissos. Os primeiros dados estavam lançados e a nossa mesa pronta para o jogo.
Ultrapassemos o tempo do jantar, das jovens convidadas para o mesmo e dos momentos que antederam o baile. Bem como aquele em que o Hélder me segredou ao ouvido:
«Ela já está em ponto de rebuçado?»
Quando entrámos no salão já muitas mesas estavam ocupadas. De um relance, como faziam os homens do signo Escorpião, dei conta que havia algumas pessoas conhecidas. Pouco interessava a um homem sem compromissos. Os primeiros dados estavam lançados e a nossa mesa pronta para o jogo.
Ultrapassemos o tempo do jantar, das jovens convidadas para o mesmo e dos momentos que antederam o baile. Bem como aquele em que o Hélder me segredou ao ouvido:
«Ela já está em ponto de rebuçado?»
«Que queres dizer? Isto não é atar e pôr ao fumeiro.»
«Bebeu o suficiente?»
«Não sei» respondi. «Conheci-a hoje e não posso avaliar a sua capacidade de resistência ao álcool…»
«Disse alguma coisa, Mário?» perguntou a Margarida.
Desfolhando a Margarida. Logo veríamos.
«Às vezes falo alto, Margarida.»
«E também sonha alto?»
«Acordado ou a dormir?»
Coincidência. Foi então que acordei num dos lados ao fundo da sala. Não queria acreditar no que estavam a ver os meus olhos.
«O Matilde! Com uma velhinha…»
«Não sabes da coisa?»
«Não sei o quê?»
«Bebeu o suficiente?»
«Não sei» respondi. «Conheci-a hoje e não posso avaliar a sua capacidade de resistência ao álcool…»
«Disse alguma coisa, Mário?» perguntou a Margarida.
Desfolhando a Margarida. Logo veríamos.
«Às vezes falo alto, Margarida.»
«E também sonha alto?»
«Acordado ou a dormir?»
Coincidência. Foi então que acordei num dos lados ao fundo da sala. Não queria acreditar no que estavam a ver os meus olhos.
«O Matilde! Com uma velhinha…»
«Não sabes da coisa?»
«Não sei o quê?»
«Dos seus atributos. Estou a viver no Canadá e sei mais do que tu.»
O Matilde, todo ele sorrisos, enlaçava a “velhinha” que devia andar pela idade dele. E pouco depois evoluíam na sala, como dois cisnes elegantes. Que grande evolução na arte de bem dançar do Matilde.
«E o fulano dança bem. Sabes aquela da “donzela aos coices”?
«Quem não sabe lá na vila?»
«Tu que andas por fora, afinal sabes mais do que eu. Lisboa é o meu meio. Todo o resto não me tem interessado desde que saí da vila. Agora esta do Matilde é de bradar aos céus. Nem quero acreditar que aquele cepo dança como dança...»
«E o fulano dança bem. Sabes aquela da “donzela aos coices”?
«Quem não sabe lá na vila?»
«Tu que andas por fora, afinal sabes mais do que eu. Lisboa é o meu meio. Todo o resto não me tem interessado desde que saí da vila. Agora esta do Matilde é de bradar aos céus. Nem quero acreditar que aquele cepo dança como dança...»
«É como estás a ver.»
Olhei para o meu primo e de repente veio-me à lembrança o caso das duas jovens que me "guardaram" em Fátima numa das vezes que fomos lá em peregrinação. De regresso passámos pela Nazaré...
Entretanto o baile na vivenda, quase encravada num vale onde corria uma ribeira que no verão deitava mau cheiro, tinha chegado ao fim. Antes desse acontecimento já o homem do trompete estava fora de cena.
Deixara de chover e o caminho de regresso ficara completamente alagado. Tivemos que subir pelo lamaçal entre o vinhedo, com um ou outro contratempo. Foi o caso de uma senhora que vestia um casaco de peles, segundo ela a estrear, ter ficado a meio da encosta atolada na lama até aos joelhos. Valeu-lhe a ajuda de dois amigos meus que a tiraram daquele obstáculo quase a atirar para o movediço.
No regresso à vila ainda surgiu um imprevisto que podia ter dado para o torto. O "Carocha" do Vítor executou um pião perfeito quando o meu amigo deparou subitamente com um lençol de água na estrada e logo numa curva. Travou a fundo e não devia ter feito. Felizmente não passou de um susto e chegámos sãos e salvos ao nosso destino.
Nessa noite Portugal perdeu as possessões na Índia e eu perdi os sapatos que ficaram inutilizados depois daquela subida quase heróica entre o vinhedo, travada por um lamaçal pegajoso. E entretanto, para mal dos meus pecados, ganhei uma mulher que nunca devia ter entrado na minha órbita do acontecer. Mas sejamos positivos. Antes isso que o "Carocha" do Vítor ter capotado e nós, os quatro ocupantes, sermos convidados pelos "anjinhos" para uma viagem sem regresso.
Agora, Fátima...
Estive uma hora de pé, estático, a assistir ao terço na capelinha das Aparições e não senti quaisquer problemas nas pernas, ao contrário do que acontecia vulgarmente. Quanto à Júlia e à minha irmã ficaram sentadas à frente. O Hélder esteve quase sempre ao meu lado, um pouco afastado para a direita.A certa altura comecei a olhar fixamente para a imagem da Senhora do Rosário e os olhos encheram-se de lágrimas. Dei comigo pedindo para Ela não me levar. Logo de seguida a dúvida assaltou-me.
Fui mesmo eu que pedi à Virgem, tal como aconteceu uma vez em Lisboa (1)?
O mais estranho estava para vir. Coisa muito simples e aparentemente natural. Ao mesmo tempo rápida na duração.
Tudo começou quando uma jovem de blusa vermelha foi colocar-se ao meu lado direito, quase se encostando. Não tive tempo para desconfiar porque, minutos depois, uma outra mulher, também nova, um pouco mais velha que a primeira, apareceu à entrada do recinto da capela. Era alta e tinha um perfil egípcio. Trazia uma criança pela mão.
Aproximou-se e passou pela frente, colocando-se do lado esquerdo, embora ligeiramente afastada.
O curioso é que vieram ambas do meu lado direito. Portanto, vieram do futuro.
Ainda não estava restabelecido da surpresa quando, em baixo, começaram a rezar o terço. Foi então que senti a segunda mulher a chegar-se a mim.
Distraiu-se ou fez de propósito?
Ficaria para sempre a dúvida. Uma coisa era verdade. Fui “guardado” por duas mulheres que vieram do futuro (2).
Um pormenor que não me escapou: a segunda mulher cantava divinamente. De vez em quando olhava para ela e via o seu rosto de perfil, imperturbável. Estava ao meu lado como se eu não existisse. Mas o contacto do seu corpo era real. Um contacto ao de leve. Tinha uma saia vermelha, de bolas brancas. Da cor da blusa não me lembrava.
Que significado podia dar a tanto vermelho?
Sentia-me bem. Respirava-se paz em Fátima.
Na viagem de regresso falei da Manuela (3), acedendo a um pedido da minha prima. Pouco depois ela adormeceu e então calei-se. Acordou quase de seguida e perguntou-me de chofre:
«A Manuela teve uma filha?»
«Acho que não. Porque perguntas?»
«Foi uma ideia que me veio à cabeça.»
«Estou mais descansado.»
Então, perguntei-lhes se tinham visto alguém ao meu lado na capelinha, quando acabou o terço e elas vieram ter comigo, ou mesmo antes. Para meu espanto responderam que não se lembravam. Não disseram que não tinham visto. Apenas não se lembravam. No mínimo, era muito estranho.
Parámos na Nazaré para lanchar. Mais propriamente no Sítio. Enquanto lanchávamos, o meu primo mostrou interesse em conhecer o que aconteceu a D. Fuas Roupinho quando perseguia um veado.
«Não sei muito bem. Aliás é uma lenda. Nesse dia um nevoeiro intenso não deixou que desse conta que, com o entusiasmo da perseguição a um veado, se aproximasse perigosamente do topo de uma falésia. Era demasiado tarde quando o cavaleiro viu onde estava. Então implorou à Virgem e de imediato o cavalo estacou, ficando os dois suspensos à beira do precipício. Em síntese, parece que é isto.»
«Interessante.»
«Mas é uma lenda, Hélder...»
«Sim, claro. Vamos lá depois do lanche?»
Tivemos oportunidade de ver a marca deixada por uma das patas do cavalo de D. Fuas na ponta do Bico do Milagre.
«Se fosse verdade!»
Tentei imaginar a cena do milagre e fiquei cético. O fio do pensamento ajudou-me a acompanhar o inevitável voo sem rede de cavaleiro e cavalo pelo precipício rumo a uma morte certa. Só a Virgem podia travar essa queda. E, segundo a lenda, travou.
«Só acredita quem tem fé, Hélder. Quanto a mim, preciso de ver para crer... o que é impossível visto ter acontecido em mil cento e troca o passo.»
«Entramos na capela?»
«Vão vocês. Eu fico aqui.»
Aproximei-se o mais que podia da ponta da falésia e olhei para baixo, sem receio.
«Impressionante! Ninguém escapa se cair daqui...» Sussurrei.
Então, em pensamento, abri os braços e comecei a planar ao nível da falésia.
«Maravilhoso!»
Naquele momento era só o sonho que comandava a vida e só por isso deixei-se ir, cada vez mais para baixo, sentindo no rosto a brisa suave que soprava dos lados do mar. Continuei a descer até à praia, sempre de braços abertos, como um deus alado.
Admirei-me com duas coisas. A primeira implicava a segunda. O sol muito alto, localizado a sul. A praia cheia de banhistas como se o calendário marcasse o mês de agosto. E sabia que não, tanto para um caso como para o outro. Na verdade o sol estava no ocaso e a época balnear alta já tinha passado.
Como explicar a situação?
Não sabia. Dum momento para o outro tinha na frente um cenário novo, como se estivesse a assistir a uma peça de teatro com duas partes com diferenças nítidas.
Ziguezagueei entre os banhistas deitados sobre as toalhas até chegar ao muro que dava acesso à estrada, que atravessei. Atingi na zona pedonal onde se localizavam as esplanadas que vi cheias de veraneantes. Ao fundo, as ruas estreitas começavam a inclinar-se, prenúncio do começo da subida para o Monte Branco, onde era o parque de campismo.
Ouvi uma música familiar que vinha de um café à esquerda. Achei estranho. Não ouvia a “Marina” há muito tempo.
«Que saudades, Marino Marini! Nunca mais terei vinte anos…»
Lembrei-me que, em tempos, no fim dos anos cinquenta, cantava com um certo à-vontade essa canção do conjunto de Marino Marini. Era tão estranha a situação que aproximei-me do café e espreitei para o interior. Pasmei com o que vi. Uma antiga máquina de discos, igual à que existia no snack onde passei longos dias azuis com a Patrícia. Mas o mais estranho é que ainda não tinha acontecido o momento em que a Patrícia hipoteticamente entrou na minha vida (4). E contudo, sabia desse acontecimento.
«Estranho!»
Pois, Mário. Mesmo muito estranho.
Encolhi os ombros e escolhi seguir ao acaso por uma rua que começou a inclinar quase de seguida. Pouco depois percebi que estava no Monte Branco, onde se situava o antigo parque de campismo com o seu característico amontoado de tendas dos mais diversos formatos, dispostas de forma quase anárquica.
Fui avançando. A animação era grande. Muito provavelmente estava a correr a hora do almoço. De nada valia consultar o relógio de pulso que certamente marcava outro tempo. Daí concluí que só me encontrava ali como resultado de um mergulho profundo que entretanto tinha feito no passado.
Fui mesmo eu que pedi à Virgem, tal como aconteceu uma vez em Lisboa (1)?
O mais estranho estava para vir. Coisa muito simples e aparentemente natural. Ao mesmo tempo rápida na duração.
Tudo começou quando uma jovem de blusa vermelha foi colocar-se ao meu lado direito, quase se encostando. Não tive tempo para desconfiar porque, minutos depois, uma outra mulher, também nova, um pouco mais velha que a primeira, apareceu à entrada do recinto da capela. Era alta e tinha um perfil egípcio. Trazia uma criança pela mão.
Aproximou-se e passou pela frente, colocando-se do lado esquerdo, embora ligeiramente afastada.
O curioso é que vieram ambas do meu lado direito. Portanto, vieram do futuro.
Ainda não estava restabelecido da surpresa quando, em baixo, começaram a rezar o terço. Foi então que senti a segunda mulher a chegar-se a mim.
Distraiu-se ou fez de propósito?
Ficaria para sempre a dúvida. Uma coisa era verdade. Fui “guardado” por duas mulheres que vieram do futuro (2).
Um pormenor que não me escapou: a segunda mulher cantava divinamente. De vez em quando olhava para ela e via o seu rosto de perfil, imperturbável. Estava ao meu lado como se eu não existisse. Mas o contacto do seu corpo era real. Um contacto ao de leve. Tinha uma saia vermelha, de bolas brancas. Da cor da blusa não me lembrava.
Que significado podia dar a tanto vermelho?
Sentia-me bem. Respirava-se paz em Fátima.
Na viagem de regresso falei da Manuela (3), acedendo a um pedido da minha prima. Pouco depois ela adormeceu e então calei-se. Acordou quase de seguida e perguntou-me de chofre:
«A Manuela teve uma filha?»
«Acho que não. Porque perguntas?»
«Foi uma ideia que me veio à cabeça.»
«Estou mais descansado.»
Então, perguntei-lhes se tinham visto alguém ao meu lado na capelinha, quando acabou o terço e elas vieram ter comigo, ou mesmo antes. Para meu espanto responderam que não se lembravam. Não disseram que não tinham visto. Apenas não se lembravam. No mínimo, era muito estranho.
Parámos na Nazaré para lanchar. Mais propriamente no Sítio. Enquanto lanchávamos, o meu primo mostrou interesse em conhecer o que aconteceu a D. Fuas Roupinho quando perseguia um veado.
«Não sei muito bem. Aliás é uma lenda. Nesse dia um nevoeiro intenso não deixou que desse conta que, com o entusiasmo da perseguição a um veado, se aproximasse perigosamente do topo de uma falésia. Era demasiado tarde quando o cavaleiro viu onde estava. Então implorou à Virgem e de imediato o cavalo estacou, ficando os dois suspensos à beira do precipício. Em síntese, parece que é isto.»
«Interessante.»
«Mas é uma lenda, Hélder...»
«Sim, claro. Vamos lá depois do lanche?»
Tivemos oportunidade de ver a marca deixada por uma das patas do cavalo de D. Fuas na ponta do Bico do Milagre.
«Se fosse verdade!»
Tentei imaginar a cena do milagre e fiquei cético. O fio do pensamento ajudou-me a acompanhar o inevitável voo sem rede de cavaleiro e cavalo pelo precipício rumo a uma morte certa. Só a Virgem podia travar essa queda. E, segundo a lenda, travou.
«Só acredita quem tem fé, Hélder. Quanto a mim, preciso de ver para crer... o que é impossível visto ter acontecido em mil cento e troca o passo.»
«Entramos na capela?»
«Vão vocês. Eu fico aqui.»
Aproximei-se o mais que podia da ponta da falésia e olhei para baixo, sem receio.
«Impressionante! Ninguém escapa se cair daqui...» Sussurrei.
Então, em pensamento, abri os braços e comecei a planar ao nível da falésia.
«Maravilhoso!»
Naquele momento era só o sonho que comandava a vida e só por isso deixei-se ir, cada vez mais para baixo, sentindo no rosto a brisa suave que soprava dos lados do mar. Continuei a descer até à praia, sempre de braços abertos, como um deus alado.
Admirei-me com duas coisas. A primeira implicava a segunda. O sol muito alto, localizado a sul. A praia cheia de banhistas como se o calendário marcasse o mês de agosto. E sabia que não, tanto para um caso como para o outro. Na verdade o sol estava no ocaso e a época balnear alta já tinha passado.
Como explicar a situação?
Não sabia. Dum momento para o outro tinha na frente um cenário novo, como se estivesse a assistir a uma peça de teatro com duas partes com diferenças nítidas.
Ziguezagueei entre os banhistas deitados sobre as toalhas até chegar ao muro que dava acesso à estrada, que atravessei. Atingi na zona pedonal onde se localizavam as esplanadas que vi cheias de veraneantes. Ao fundo, as ruas estreitas começavam a inclinar-se, prenúncio do começo da subida para o Monte Branco, onde era o parque de campismo.
Ouvi uma música familiar que vinha de um café à esquerda. Achei estranho. Não ouvia a “Marina” há muito tempo.
«Que saudades, Marino Marini! Nunca mais terei vinte anos…»
Lembrei-me que, em tempos, no fim dos anos cinquenta, cantava com um certo à-vontade essa canção do conjunto de Marino Marini. Era tão estranha a situação que aproximei-me do café e espreitei para o interior. Pasmei com o que vi. Uma antiga máquina de discos, igual à que existia no snack onde passei longos dias azuis com a Patrícia. Mas o mais estranho é que ainda não tinha acontecido o momento em que a Patrícia hipoteticamente entrou na minha vida (4). E contudo, sabia desse acontecimento.
«Estranho!»
Pois, Mário. Mesmo muito estranho.
Encolhi os ombros e escolhi seguir ao acaso por uma rua que começou a inclinar quase de seguida. Pouco depois percebi que estava no Monte Branco, onde se situava o antigo parque de campismo com o seu característico amontoado de tendas dos mais diversos formatos, dispostas de forma quase anárquica.
Fui avançando. A animação era grande. Muito provavelmente estava a correr a hora do almoço. De nada valia consultar o relógio de pulso que certamente marcava outro tempo. Daí concluí que só me encontrava ali como resultado de um mergulho profundo que entretanto tinha feito no passado.
Foi então que o Hélder me contou. O Matilde, o eficiente estofador transformou-se no Matilde dançarino. Ele e um amigo tinham sido contratados pelo hotel para serem acompanhantes de turistas seniores. Mulheres, claro.
«E como ele e a inglesa estão in love! Ela é inglesa, não é?»
«E como ele e a inglesa estão in love! Ela é inglesa, não é?»
«Pelo menos parece.»
Que rica vida ele levava! Já a caminho do crepúsculo tinha-lhe saído a sorte grande. Boa comida e boa bebida. E cama, como dizer… que até podia ser pior.
«Não me convida para dançar, Mário?»
Não respondi. Estava vidrado na cena do Matilde e da inglesa.
«Isso isso. Vou fazer o mesmo com a Dolores. Vamos, preciosa?»
Donzela. Preciosa. Margarida para desfolhar.
Mas o caldo entornou-se quando me levantei sem esperar pelo meu par.
«Onde vais, Mário?» perguntou o Hélder, perturbado.
Adeus, minhas encomendas. O caminho estava traçado. O par de cisnes elegantes preparava-se para levantar “voo” e eu não podia perdê-los de vista. Queria ver se era mesmo como o Hélder dizia.
Segui-os à distância. Estavam a sair do salão. Queria ver tudo muito bem visto com os meus olhos.
«Vão lá para fora apreciar o luar da lua nova? Não acredito.»
Era verdade. A lua cheia ainda vinha longe.
Continuei a segui-los com todo o cuidado. E não queria acreditar no que estava a ver. O “donzela aos coices” a dar um beliscão no traseiro da sexagenária!
Boa, Matilde! De certa forma saíste-te bem depois daquele fracasso retumbante no baile da aldeia. Tornaste-te num dançarino de primeira sem ser preciso fazeres “un pas de deux”, piruetas e assim. Se tiveres juízo, coisa de que duvido, tens garantido o teu futuro ao crepúsculo. Pensa bem. As reformas inglesas nada têm a ver com as nossas.
Desisti de os seguir. Talvez que nunca viesse a saber do futuro dos dois mesmo que conseguisse fazer leitura de mãos por mais que apelasse aos meus dotes de quirólogo. Afinal o amanhã era uma incógnita para os dois porque havia em jogo muitas variáveis.
Voltei para trás sem sequer saber, nem me interessar, se tinham ido ao quarto tomar um drink e depois outro… ou apreciar o luar romântico de ontem.
Quando regressei ao salão reparei que não havia ninguém na mesa. Não me preocupei. O Hélder devia estar a dançar com a Dolores e a Margarida punha, no toilete, rouge nas faces ou assim. Tudo tão simples como imaginava que fosse.
Enquanto esperava por eles não conseguia deixar de pensar no salto qualitativo do “donzela aos coices”, tão qualitativo que talvez um dia uma inglesa sénior o levasse consigo para tratar do seu jardim e não só. Dependia do "josezinho" continuar ou não operacional.
«Boa, Matilde! Gostei.»
Que rica vida ele levava! Já a caminho do crepúsculo tinha-lhe saído a sorte grande. Boa comida e boa bebida. E cama, como dizer… que até podia ser pior.
«Não me convida para dançar, Mário?»
Não respondi. Estava vidrado na cena do Matilde e da inglesa.
«Isso isso. Vou fazer o mesmo com a Dolores. Vamos, preciosa?»
Donzela. Preciosa. Margarida para desfolhar.
Mas o caldo entornou-se quando me levantei sem esperar pelo meu par.
«Onde vais, Mário?» perguntou o Hélder, perturbado.
Adeus, minhas encomendas. O caminho estava traçado. O par de cisnes elegantes preparava-se para levantar “voo” e eu não podia perdê-los de vista. Queria ver se era mesmo como o Hélder dizia.
Segui-os à distância. Estavam a sair do salão. Queria ver tudo muito bem visto com os meus olhos.
«Vão lá para fora apreciar o luar da lua nova? Não acredito.»
Era verdade. A lua cheia ainda vinha longe.
Continuei a segui-los com todo o cuidado. E não queria acreditar no que estava a ver. O “donzela aos coices” a dar um beliscão no traseiro da sexagenária!
Boa, Matilde! De certa forma saíste-te bem depois daquele fracasso retumbante no baile da aldeia. Tornaste-te num dançarino de primeira sem ser preciso fazeres “un pas de deux”, piruetas e assim. Se tiveres juízo, coisa de que duvido, tens garantido o teu futuro ao crepúsculo. Pensa bem. As reformas inglesas nada têm a ver com as nossas.
Desisti de os seguir. Talvez que nunca viesse a saber do futuro dos dois mesmo que conseguisse fazer leitura de mãos por mais que apelasse aos meus dotes de quirólogo. Afinal o amanhã era uma incógnita para os dois porque havia em jogo muitas variáveis.
Voltei para trás sem sequer saber, nem me interessar, se tinham ido ao quarto tomar um drink e depois outro… ou apreciar o luar romântico de ontem.
Quando regressei ao salão reparei que não havia ninguém na mesa. Não me preocupei. O Hélder devia estar a dançar com a Dolores e a Margarida punha, no toilete, rouge nas faces ou assim. Tudo tão simples como imaginava que fosse.
Enquanto esperava por eles não conseguia deixar de pensar no salto qualitativo do “donzela aos coices”, tão qualitativo que talvez um dia uma inglesa sénior o levasse consigo para tratar do seu jardim e não só. Dependia do "josezinho" continuar ou não operacional.
«Boa, Matilde! Gostei.»
Nunca mais precisava de estofar um cadeirão.
«O que me havia de acontecer!»
Era o Hélder que regressava sozinho. Parecia preocupado.
«Ah estás aí. Afinal de contas onde te meteste, pá?»
Não esperou pela resposta.
«Calcula o que havia de me acontecer!»
«Então?»
«Dançámos durante todo este tempo em que estiveste ausente. Tudo parecia ir bem. Calhou-nos uma série com música lenta e aproveitei para encostar o rosto ao dela. Aquele romantismo que já conheces.»
«Claro. E depois?»
«Antes que me esqueça. A Margarida ficou furibunda com a tua atitude. Ainda esperou dez minutos e veio ter connosco ao sítio onde dançávamos. Deu-me este envelope pequeno para te entregar. Abre-o. Estou curioso. Talvez tenhas mais sorte do que eu.»
«Já abro. Mas diz-me o que te aconteceu com a Dolores.»
«Muito simples. Resolvi atacar a fundo.»
«E?»
Encolheu os ombros.
«Será melhor encomendarmos outra garrafa.»
Fez um sinal a um empregado que estava próximo.
«Apalpei-lhe o traseiro.»
«Como fez o “donzela aos coices”. Mas acredito que obteve melhores resultados que tu.» Afirmei.
«O que me havia de acontecer!»
Era o Hélder que regressava sozinho. Parecia preocupado.
«Ah estás aí. Afinal de contas onde te meteste, pá?»
Não esperou pela resposta.
«Calcula o que havia de me acontecer!»
«Então?»
«Dançámos durante todo este tempo em que estiveste ausente. Tudo parecia ir bem. Calhou-nos uma série com música lenta e aproveitei para encostar o rosto ao dela. Aquele romantismo que já conheces.»
«Claro. E depois?»
«Antes que me esqueça. A Margarida ficou furibunda com a tua atitude. Ainda esperou dez minutos e veio ter connosco ao sítio onde dançávamos. Deu-me este envelope pequeno para te entregar. Abre-o. Estou curioso. Talvez tenhas mais sorte do que eu.»
«Já abro. Mas diz-me o que te aconteceu com a Dolores.»
«Muito simples. Resolvi atacar a fundo.»
«E?»
Encolheu os ombros.
«Será melhor encomendarmos outra garrafa.»
Fez um sinal a um empregado que estava próximo.
«Apalpei-lhe o traseiro.»
«Como fez o “donzela aos coices”. Mas acredito que obteve melhores resultados que tu.» Afirmei.
«O "donzela" fez o quê?»
«Deixa. E ela?»
«Deu-me um chapadão e nunca mais a vi.»
«Bonito.»
«Vá, abre o envelope.»
Fiz-lhe a vontade. Também estava curioso.
«Deu-te a morada?»
O conteúdo do interior do envelope era uma nota de quinhentos escudos.
«E aqui estamos os dois. Tristes e sós. Que vamos fazer?» perguntou o Hélder.
«Para já, beber dois ou três copos. A seguir, logo se vê.»
Vi-o olhar para a direita com insistência.
«Deixa. E ela?»
«Deu-me um chapadão e nunca mais a vi.»
«Bonito.»
«Vá, abre o envelope.»
Fiz-lhe a vontade. Também estava curioso.
«Deu-te a morada?»
O conteúdo do interior do envelope era uma nota de quinhentos escudos.
«E aqui estamos os dois. Tristes e sós. Que vamos fazer?» perguntou o Hélder.
«Para já, beber dois ou três copos. A seguir, logo se vê.»
Vi-o olhar para a direita com insistência.
Que estava a magicar?
«Olha para aquela mesa onde estão duas mulheres que parecem ser estrangeiras. A que está com um vestido verde não tira os olhos de nós. Agora… aquela que sorri para cá.»
«Já reparei. E achas que elas são para nós?»
«És assim tão esquisito?»
«E imaginas que estamos por conta do hotel como o Matilde e o amigo? Toma juízo nessa mona, Hélder.»
«Alinhas ou não?»
«Não brinques comigo.»
«Não sejas desmancha prazeres. Quem não tem cão caça com gato.»
«Onde vais? És mais velho que eu, mas repara no abismo das idades para elas. Nem com as luzes apagadas.»
Mas ele já estava a caminho. O álcool toldara-lhe a visão e o bom censo.
E eu?
Antes que se fizesse tarde desapareci de cena. Afinal de contas nem tudo estava perdido naquela noite. A nota de quinhentos tinha um número escrito e mais abaixo um “M”.
«Olha para aquela mesa onde estão duas mulheres que parecem ser estrangeiras. A que está com um vestido verde não tira os olhos de nós. Agora… aquela que sorri para cá.»
«Já reparei. E achas que elas são para nós?»
«És assim tão esquisito?»
«E imaginas que estamos por conta do hotel como o Matilde e o amigo? Toma juízo nessa mona, Hélder.»
«Alinhas ou não?»
«Não brinques comigo.»
«Não sejas desmancha prazeres. Quem não tem cão caça com gato.»
«Onde vais? És mais velho que eu, mas repara no abismo das idades para elas. Nem com as luzes apagadas.»
Mas ele já estava a caminho. O álcool toldara-lhe a visão e o bom censo.
E eu?
Antes que se fizesse tarde desapareci de cena. Afinal de contas nem tudo estava perdido naquela noite. A nota de quinhentos tinha um número escrito e mais abaixo um “M”.
(3) Manuela

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