Quando estive a frequentar o curso de Ciências Geológicas, na antiga Faculdade de Ciências, situada na Rua da Escola Politécnica, dividi o meu quarto com um colega. Demo-nos sempre bem porque nunca falámos de política. Por sinal ele era da PIDE e só me disseram mais tarde, quando já morava na Cecílio de Sousa. Foi uma sorte do caraças que tive em, do ponto de vista do meu colega de quarto, não ser comunista, porque, catalogavam de comunistas todos os que não eram da "situação". Está dito. Continuando a falar dos políticos, a democracia, o país e a minha pessoa até tínhamos muito a agradecer se certos e determinados indivíduos da nossa praça não usassem as suas ambições desmedidas e a desonestidade politica, e não só, para apenas chegarem ao poder só pela gula do poder. Para confirmar as palavras que acabei de escrever, veja-se o que se passa HOJE no nosso querido país, cada vez mais dependente dos gulosos e usurários que detêm também o poder, mas uma outra espécie de poder mais perigoso que já abriu o caminho para aquilo que todos nós sabemos e não admitimos ser verdade.
Montaram o sistema tão bem que sabem tudo sobre nós. E tal não joga com a democracia, penso eu. Mas, ponto final. Que se lixe a treta da confidencialidade dos dados dos cidadãos que estão sempre à mercê dos piratas informáticos que sabotam todos os sistemas por mais seguros que sejam. E onde estão os piratas de hoje que não usam a caveira? Às vezes até dentro do sistema porque todos temos um preço, não é?
Esta não é a minha guerra. Nem entro em guerras. Contam-me histórias e eu escrevo-as. Escrevo também histórias que vivi. Para outras que escrevi, usei a imaginação. Nada mais simples.
Que venha a próxima…
2013. Moro em Lisboa, algures entre a Estados Unidos e a avenida de Roma. Não mais que à distância de vinte metros.
Converso na minha casa com o Raul sobre os livros da Vampiro que tenho em "carteira". Diz-me que já leu os que levou da última vez e agora quer levar mais. Bom para mim, já que tento sobreviver a vender livros, selos, cerâmica e outras tantas coisas porque a despesa não para de subir e a receita é sempre a mesma desde 2003. Talvez até já nem receba este ano os subsídios de férias e de Natal. Tudo porque um político megalómano quis dar uma salto maior que a perna. Pronto, ponho-o a nu. Chama-se Sócrates e vive ou já viveu à grande e à francesa. Portanto, não é o filósofo da antiguidade grega, Que este descanse em paz porque está isento de culpa.
«Tens mais livros da Agatha Christie?»
«Só um. Mas comprei há dias alguns da Erle Stanley Gardner.»
«Então, mostra-me esses livros. Mas depressa que o outro está a chegar.»
2013. Moro em Lisboa, algures entre a Estados Unidos e a avenida de Roma. Não mais que à distância de vinte metros.
Converso na minha casa com o Raul sobre os livros da Vampiro que tenho em "carteira". Diz-me que já leu os que levou da última vez e agora quer levar mais. Bom para mim, já que tento sobreviver a vender livros, selos, cerâmica e outras tantas coisas porque a despesa não para de subir e a receita é sempre a mesma desde 2003. Talvez até já nem receba este ano os subsídios de férias e de Natal. Tudo porque um político megalómano quis dar uma salto maior que a perna. Pronto, ponho-o a nu. Chama-se Sócrates e vive ou já viveu à grande e à francesa. Portanto, não é o filósofo da antiguidade grega, Que este descanse em paz porque está isento de culpa.
«Tens mais livros da Agatha Christie?»
«Só um. Mas comprei há dias alguns da Erle Stanley Gardner.»
«Então, mostra-me esses livros. Mas depressa que o outro está a chegar.»
«O outro?»
«Não te armes em parvo.»
Ah sim. O outro é o negociante de ouro e pratas que conheci na net e a quem vendi qualquer coisa em prata..
Estamos na sala. Mal se entra em casa é logo à direita. Quase à entrada, na sala, há uma mesa em faia, de tampo quadrado, que comprei no IKEA.
Levanto-me, atravesso o corredor, corto à esquerda e estou na cozinha. De seguida, entro numa despensa onde há uma estante preta. Demoro algum tempo a procurar os livros.
O outro deve estar a chegar.
«Então?» pergunta o Raul.
«Então o quê? Aqui estou. Querias para ontem?»
Tocam à campainha. Não tive tempo de sentar-me.
«Eu não te dizia para te apressares? Deve ser o teu amigo dos ouros...»
«É cedo. Combinámos entre as quatro e as quatro e meia. Eu vou ver. Dá uma vista de olhos pelos livros.»
Afinal é a Lisete, a senhoria. Pouco mais de quarenta anos vividos em turbulências do caraças. Mete pena vê-la, degradada, roída pela droga. Às vezes avisto-a atravessando a rua, vinda do lado sul da avenida, trazendo na mão uma garrafa de litro e meio de Coca-Cola que tem no interior um líquido mais escuro do que o costume. Adivinho e acerto quando está mais próxima. Vinho tinto.
Costuma parar quando me vê, mas desta vez deixa no ar um sorriso envergonhado e continua a sua marcha, sempre apressada, rumo a casa. Se olhar para trás, certamente vejo a sua alma gémea da desgraça vir ao seu encontro. Ela e ele não vão chegar aos sessenta.
«Olá, Lisete...»
Tento despachá-la em grande velocidade. É difícil. Quando está com um grão na asa torna-se pegajosa.
«Veio em má hora. Pode passar por cá mais logo?»
«Só queria uma coisa, doutor. Pode adiantar-me vinte euritos?»
Faço-lhe uma expressão de censura. Sabemos os dois do que se trata. Ela sorri e encolhe os ombros.
«Tem descontado na renda?»
Ah sim. O outro é o negociante de ouro e pratas que conheci na net e a quem vendi qualquer coisa em prata..
Estamos na sala. Mal se entra em casa é logo à direita. Quase à entrada, na sala, há uma mesa em faia, de tampo quadrado, que comprei no IKEA.
Levanto-me, atravesso o corredor, corto à esquerda e estou na cozinha. De seguida, entro numa despensa onde há uma estante preta. Demoro algum tempo a procurar os livros.
O outro deve estar a chegar.
«Então?» pergunta o Raul.
«Então o quê? Aqui estou. Querias para ontem?»
Tocam à campainha. Não tive tempo de sentar-me.
«Eu não te dizia para te apressares? Deve ser o teu amigo dos ouros...»
«É cedo. Combinámos entre as quatro e as quatro e meia. Eu vou ver. Dá uma vista de olhos pelos livros.»
Afinal é a Lisete, a senhoria. Pouco mais de quarenta anos vividos em turbulências do caraças. Mete pena vê-la, degradada, roída pela droga. Às vezes avisto-a atravessando a rua, vinda do lado sul da avenida, trazendo na mão uma garrafa de litro e meio de Coca-Cola que tem no interior um líquido mais escuro do que o costume. Adivinho e acerto quando está mais próxima. Vinho tinto.
Costuma parar quando me vê, mas desta vez deixa no ar um sorriso envergonhado e continua a sua marcha, sempre apressada, rumo a casa. Se olhar para trás, certamente vejo a sua alma gémea da desgraça vir ao seu encontro. Ela e ele não vão chegar aos sessenta.
«Olá, Lisete...»
Tento despachá-la em grande velocidade. É difícil. Quando está com um grão na asa torna-se pegajosa.
«Veio em má hora. Pode passar por cá mais logo?»
«Só queria uma coisa, doutor. Pode adiantar-me vinte euritos?»
Faço-lhe uma expressão de censura. Sabemos os dois do que se trata. Ela sorri e encolhe os ombros.
«Tem descontado na renda?»
«Claro, Lisete. Aqui tem os vinte euros.»
Não é a primeira vez que a abasteço com latas de feijão, grão e conservas de atum e de sardinha.
Resolvida a questão, volto à sala.
«Então? Era a senhoria?»
«Sim. Dei-lhe mais vinte euros por conta. Este mês está quase paga a renda do mês seguinte e ainda agora a procissão vai no adro.»
«Esta gente não tem vergonha. Ainda por cima os dois. Que idade têm eles?»
Referia-se também ao companheiro. Um homem cadavérico de sangue azul que um dia também há de ficar esticado como um carapau, mas por overdose ou droga marada.
«À volta de quarenta...»
Dava Deus nozes a quem não tinha dentes. Ela era potencialmente rica, mas não podia meter a mão na massa porque os prédios estavam quase todos hipotecados. Os dois, ela e o companheiro, viviam com uma heroína.
«Queres ouvir esta que se passou com ele?»
«Enquanto o outro não chega...»
«Num dia de penúria e carência vínica e não só, trouxe-me um caixote de madeira cheio de livros, na maioria da Vampiro e também um saco de plástico com mais livros. Fizemos o negócio do caixote e passámos ao saco de plástico.»
«Tenho aqui uns autores que o doutor vai gostar...»
«Mostre lá, Dimas. Têm que estar em bom estado.»
Dois dos livros ainda mostravam o alarme na contracapa.
Olhei para ele e disse de chofre:
«Negócios destes não faço, Dimas, e já sabe porquê!»
«Pois é. Por acaso não tinha reparado. Nem sei como vieram aqui parar.»
«Resultado: não voltei a negociar livros em segunda mão com ele.»
«Esse fulano é perigoso, Mário. Tem cuidado.»
«Sabes?, tenho pena deles. Passam muita fome. Não é a primeira vez que lhes dou conservas, ovos, sobras do almoço, etc. Mas vinho, não.»
«Deixa-te de brincar às caridades. Eles precisam é de ganhar juízo. E ouve uma coisa, Mário...»
«Diz.»
«Não esperes gratidão desta gente. À primeira oportunidade passam-te a perna.»
Novo toque de campainha.
«Agora é que deve ser ele.»
E é. O negociante.
«Olhe, Gabriel, este é o meu amigo que tem umas tantas moedas de prata para vender.»
E pronto. A partir desse momento fico apenas como espectador.
«Conforme deve saber só interessa a percentagem de prata. São moedas que tiveram uma grande tiragem e...»
O negócio ainda estava no início e já eu me levantava. Ouvi o ruído da cancela do elevador e logo a seguir uma restolhada que me pareceu estranha.
«Não ouviram nada?»
«Não.» Disse o Raul.
Quanto ao Gabriel limitou-se a levar a cabeça. Via-se que os dois estavam embrenhados até ao fundo no negócio das moedas de prata.
Entretanto os ruídos estranhos continuaram. O prédio tinha dois elevadores mas um deles há muito que não funcionava. As razões eram óbvias. Falta de dinheiro da proprietária do imóvel para a reparação. Um elevador para um prédio de seis andares era problemático. E quando este se avariava, nem sei que diga. Felizmente que morava no primeiro piso.
Levantei-me e com dois passos já estava junto à porta. A restolhada continuava.
«Estão a ouvir?»
Isso sim. Aquela moeda tinha tantos por mil de prata e a outra...
Espreitei pelo óculo e vi junto ao elevador os pés e as pernas de uma pessoa que estava com o resto do corpo dentro do elevador. Na altura, um homem debruçava-se sobre a dita pessoa. Achei estranho o que os meus olhos viam.
Estaria morta?
«Há um problema. Está uma pessoa caída dentro do elevador.»
Olharam para mim e não deram atenção. O Gabriel contava as moedas e o Raul controlava a contagem. Coisa mais importante não havia.
Então abri a porta de repente e saí para o pequeno átrio.
O homem, que estava debruçado sobre o corpo, voltou-se para mim. Pareceu-me inquieto.
«Que se passa?»
Entretanto já estava de pé.
«Esta senhora sentiu-se mal e precisa de auxílio!»
E saiu a correr, quase chocando com o ex-professor nonagenário do Liceu Camões que entretanto tinha chegado. Conversávamos frequentemente sobre os tempos do ensino, que já nada era como dantes, que não havia qualquer respeito pelos professores, que os programas eram pouco exigentes, bla bla bla. Entretanto eu já dispunha de condições para identificar a vítima. A mulher, que estava virada em decúbito ventral, aparentemente em estado de choque, de olhos muito abertos, agarrada com as duas mãos à mala, talvez sem hipótese de proferir qualquer palavra, era a vizinha do segundo andar. Devia ter mais de oitenta anos.
Sempre que me cruzava com a senhora no átrio do prédio, esta dizia-me:
«É o vizinho que está cá de novo? Sabe, eu fui secretária do Salazar. Depois, trabalhei no Português do Atlântico.»
«Está muito magoada, dona Emília?»
Movimentou negativamente a cabeça.
«Ainda bem.»
Tentei levantar a vítima. Era o levantavas. A senhora era pesada.
Dei uma corrida até à porta e pedi ajuda ao Raul, já que o meu vizinho nonagenário logicamente não o podia fazer. Lá suspenderam o negócio. Só assim conseguimos levantar a ex-secretária do professor Salazar.
«Quer descansar um pouco na minha casa?»
«Não, muito obrigada. O homem queria assaltar-me!»
E eu caí que nem um patinho na conversa do assaltante. Apanhado de surpresa, apesar de achar tudo aquilo muito estranho, não tive o discernimento para suspeitar que estava na presença de um assalto. Fora tudo tão rápido!
Foi então que descobri umas chaves no piso do elevador e debrucei-me para as apanhar.
«São as minhas chaves. Ele queria tirar-mas...»
«Vou acompanhá-la a casa, dona Emília...»
«Muito obrigada, senhor doutor.»
O Raul regressou à sala para continuar a negociação com o Gabriel e eu preparei-me para subir ao segundo andar no elevador com a ex-secretária de Salazar e o vizinho nonagenário, no momento mais mudo que uma múmia.
«Nem sabe o que podia ter-lhe acontecido. Felizmente que a senhora resistiu e o assaltante não conseguiu metê-la dentro do elevador. Já lhe tinha tirado as chaves e preparava-se para a levar até ao primeiro andar.»
«Não foi bem assim.»
E explicou-me. Abriu a porta da rua, subiu os três degraus e encaminhou-se, de chaves na mão, para o elevador. Foi então que ele apareceu e agarrou-a por trás.
«Não sei donde veio...»
«Muito provavelmente seguiu-a e entrou atrás de si.»
«Deve ter razão. Não ouvi a porta fechar-se. Até tem uma mola forte. Mas eu sou rija. Sou beirã! Já fui secretária do Salazar, sabe? Ele era uma pessoa muito económica. Calcule que até mandava passajar as camisas. Eu própria...»
Pois não sabia outra coisa! Sempre que me cruzava com a vetusta senhora saía-me com aquela história das camisas e tudo o mais.
«Depois fui funcionária do Banco Português do Atlântico...»
«Pois foi, dona Emília. Não quer mesmo entrar para descansar um pouco?»
O professor nonagenário continuava ao nosso lado.
«Viu como estava vestido o assaltante, caro colega?»
Lá falou. De múmia passou a detetive.
«Vagamente. Trazia vestidas umas calças cinzentas sem vinco e casaco também cinzento. Fazia lembrar os antigos operários fabris. Sabe como era que se vestiam, doutor?»
«Sim sim, caro colega. E que mais?»
«O dito assaltante não devia ter ainda sessenta anos. Quanto à estatura era média e no aspeto físico, razoavelmente bem constituído. Sou um bom fisionomista e reconheço-o se me aparecer pela frente nestes dias mais próximos.»
Ocorreu-me que a indumentária fazia lembrar a usada pelos doentes do Júlio de Matos mas não referi esse pormenor.
Seria algum deles?
Entretanto tínhamos tomado o elevador que seguiu até ao segundo andar.
«Não quer entrar, senhor doutor?» perguntou a senhora.
«Não, muito obrigado. A senhora está bem?»
«Um pouco dorida e ainda assustada.»
Pudera!
«Se for preciso alguma coisa, não hesite.»
«Mais uma vez, muito obrigada.»
«Adeus, colega.» Despedi-me do nonagenário.
«Adeus, caríssimo colega. A sua prestação foi muito preciosa.»
Resolvida a questão, volto à sala.
«Então? Era a senhoria?»
«Sim. Dei-lhe mais vinte euros por conta. Este mês está quase paga a renda do mês seguinte e ainda agora a procissão vai no adro.»
«Esta gente não tem vergonha. Ainda por cima os dois. Que idade têm eles?»
Referia-se também ao companheiro. Um homem cadavérico de sangue azul que um dia também há de ficar esticado como um carapau, mas por overdose ou droga marada.
«À volta de quarenta...»
Dava Deus nozes a quem não tinha dentes. Ela era potencialmente rica, mas não podia meter a mão na massa porque os prédios estavam quase todos hipotecados. Os dois, ela e o companheiro, viviam com uma heroína.
«Queres ouvir esta que se passou com ele?»
«Enquanto o outro não chega...»
«Num dia de penúria e carência vínica e não só, trouxe-me um caixote de madeira cheio de livros, na maioria da Vampiro e também um saco de plástico com mais livros. Fizemos o negócio do caixote e passámos ao saco de plástico.»
«Tenho aqui uns autores que o doutor vai gostar...»
«Mostre lá, Dimas. Têm que estar em bom estado.»
Dois dos livros ainda mostravam o alarme na contracapa.
Olhei para ele e disse de chofre:
«Negócios destes não faço, Dimas, e já sabe porquê!»
«Pois é. Por acaso não tinha reparado. Nem sei como vieram aqui parar.»
«Resultado: não voltei a negociar livros em segunda mão com ele.»
«Esse fulano é perigoso, Mário. Tem cuidado.»
«Sabes?, tenho pena deles. Passam muita fome. Não é a primeira vez que lhes dou conservas, ovos, sobras do almoço, etc. Mas vinho, não.»
«Deixa-te de brincar às caridades. Eles precisam é de ganhar juízo. E ouve uma coisa, Mário...»
«Diz.»
«Não esperes gratidão desta gente. À primeira oportunidade passam-te a perna.»
Novo toque de campainha.
«Agora é que deve ser ele.»
E é. O negociante.
«Olhe, Gabriel, este é o meu amigo que tem umas tantas moedas de prata para vender.»
E pronto. A partir desse momento fico apenas como espectador.
«Conforme deve saber só interessa a percentagem de prata. São moedas que tiveram uma grande tiragem e...»
O negócio ainda estava no início e já eu me levantava. Ouvi o ruído da cancela do elevador e logo a seguir uma restolhada que me pareceu estranha.
«Não ouviram nada?»
«Não.» Disse o Raul.
Quanto ao Gabriel limitou-se a levar a cabeça. Via-se que os dois estavam embrenhados até ao fundo no negócio das moedas de prata.
Entretanto os ruídos estranhos continuaram. O prédio tinha dois elevadores mas um deles há muito que não funcionava. As razões eram óbvias. Falta de dinheiro da proprietária do imóvel para a reparação. Um elevador para um prédio de seis andares era problemático. E quando este se avariava, nem sei que diga. Felizmente que morava no primeiro piso.
Levantei-me e com dois passos já estava junto à porta. A restolhada continuava.
«Estão a ouvir?»
Isso sim. Aquela moeda tinha tantos por mil de prata e a outra...
Espreitei pelo óculo e vi junto ao elevador os pés e as pernas de uma pessoa que estava com o resto do corpo dentro do elevador. Na altura, um homem debruçava-se sobre a dita pessoa. Achei estranho o que os meus olhos viam.
Estaria morta?
«Há um problema. Está uma pessoa caída dentro do elevador.»
Olharam para mim e não deram atenção. O Gabriel contava as moedas e o Raul controlava a contagem. Coisa mais importante não havia.
Então abri a porta de repente e saí para o pequeno átrio.
O homem, que estava debruçado sobre o corpo, voltou-se para mim. Pareceu-me inquieto.
«Que se passa?»
Entretanto já estava de pé.
«Esta senhora sentiu-se mal e precisa de auxílio!»
E saiu a correr, quase chocando com o ex-professor nonagenário do Liceu Camões que entretanto tinha chegado. Conversávamos frequentemente sobre os tempos do ensino, que já nada era como dantes, que não havia qualquer respeito pelos professores, que os programas eram pouco exigentes, bla bla bla. Entretanto eu já dispunha de condições para identificar a vítima. A mulher, que estava virada em decúbito ventral, aparentemente em estado de choque, de olhos muito abertos, agarrada com as duas mãos à mala, talvez sem hipótese de proferir qualquer palavra, era a vizinha do segundo andar. Devia ter mais de oitenta anos.
Sempre que me cruzava com a senhora no átrio do prédio, esta dizia-me:
«É o vizinho que está cá de novo? Sabe, eu fui secretária do Salazar. Depois, trabalhei no Português do Atlântico.»
«Está muito magoada, dona Emília?»
Movimentou negativamente a cabeça.
«Ainda bem.»
Tentei levantar a vítima. Era o levantavas. A senhora era pesada.
Dei uma corrida até à porta e pedi ajuda ao Raul, já que o meu vizinho nonagenário logicamente não o podia fazer. Lá suspenderam o negócio. Só assim conseguimos levantar a ex-secretária do professor Salazar.
«Quer descansar um pouco na minha casa?»
«Não, muito obrigada. O homem queria assaltar-me!»
E eu caí que nem um patinho na conversa do assaltante. Apanhado de surpresa, apesar de achar tudo aquilo muito estranho, não tive o discernimento para suspeitar que estava na presença de um assalto. Fora tudo tão rápido!
Foi então que descobri umas chaves no piso do elevador e debrucei-me para as apanhar.
«São as minhas chaves. Ele queria tirar-mas...»
«Vou acompanhá-la a casa, dona Emília...»
«Muito obrigada, senhor doutor.»
O Raul regressou à sala para continuar a negociação com o Gabriel e eu preparei-me para subir ao segundo andar no elevador com a ex-secretária de Salazar e o vizinho nonagenário, no momento mais mudo que uma múmia.
«Nem sabe o que podia ter-lhe acontecido. Felizmente que a senhora resistiu e o assaltante não conseguiu metê-la dentro do elevador. Já lhe tinha tirado as chaves e preparava-se para a levar até ao primeiro andar.»
«Não foi bem assim.»
E explicou-me. Abriu a porta da rua, subiu os três degraus e encaminhou-se, de chaves na mão, para o elevador. Foi então que ele apareceu e agarrou-a por trás.
«Não sei donde veio...»
«Muito provavelmente seguiu-a e entrou atrás de si.»
«Deve ter razão. Não ouvi a porta fechar-se. Até tem uma mola forte. Mas eu sou rija. Sou beirã! Já fui secretária do Salazar, sabe? Ele era uma pessoa muito económica. Calcule que até mandava passajar as camisas. Eu própria...»
Pois não sabia outra coisa! Sempre que me cruzava com a vetusta senhora saía-me com aquela história das camisas e tudo o mais.
«Depois fui funcionária do Banco Português do Atlântico...»
«Pois foi, dona Emília. Não quer mesmo entrar para descansar um pouco?»
O professor nonagenário continuava ao nosso lado.
«Viu como estava vestido o assaltante, caro colega?»
Lá falou. De múmia passou a detetive.
«Vagamente. Trazia vestidas umas calças cinzentas sem vinco e casaco também cinzento. Fazia lembrar os antigos operários fabris. Sabe como era que se vestiam, doutor?»
«Sim sim, caro colega. E que mais?»
«O dito assaltante não devia ter ainda sessenta anos. Quanto à estatura era média e no aspeto físico, razoavelmente bem constituído. Sou um bom fisionomista e reconheço-o se me aparecer pela frente nestes dias mais próximos.»
Ocorreu-me que a indumentária fazia lembrar a usada pelos doentes do Júlio de Matos mas não referi esse pormenor.
Seria algum deles?
Entretanto tínhamos tomado o elevador que seguiu até ao segundo andar.
«Não quer entrar, senhor doutor?» perguntou a senhora.
«Não, muito obrigado. A senhora está bem?»
«Um pouco dorida e ainda assustada.»
Pudera!
«Se for preciso alguma coisa, não hesite.»
«Mais uma vez, muito obrigada.»
«Adeus, colega.» Despedi-me do nonagenário.
«Adeus, caríssimo colega. A sua prestação foi muito preciosa.»
E desci no elevador até ao primeiro piso. Os negociadores estavam a chegar ao fim do negócio.
«Então o que aconteceu?»
Finalmente!
«A senhora foi assaltada. Se não tivesse aberto a porta e chegado tão prontamente, a estas horas a mulher já estava morta. Safei-a de uma morte certa. O assaltante queria levá-la ao segundo andar.»
«Salvaste-a de uma morte certa, porquê?»
«Então o que aconteceu?»
Finalmente!
«A senhora foi assaltada. Se não tivesse aberto a porta e chegado tão prontamente, a estas horas a mulher já estava morta. Safei-a de uma morte certa. O assaltante queria levá-la ao segundo andar.»
«Salvaste-a de uma morte certa, porquê?»
Irritou-me a pergunta do Raul.
«Primeiro porque ele, um homem possante, dominava-a em pouco tempo e levava-a até ao seu andar, metendo-a à força dentro de casa. A seguir, matava-a e roubava o que de importante havia para roubar. Nada mais simples e previsível.»
«Porquê matá-la?» perguntou o Gabriel, interrompendo os cálculos.
«Porque ela viu-o.»
«Como assim?»
«Quando abri a porta, a senhora estava caída e voltada para cima e o meliante debruçado sobre ela. Preparava-se para tirar-lhe as chaves de casa.»
«Está certo. Ele matava-a.»
«Portanto, salvaste de uma morte certa a ex-secretária do Salazar.»
Até o Raul já sabia da antiga atividade profissional da dona Emília.
«Podes dizer, Raul...»
Dias mais tarde a porteira bateu-me à porta a dizer que a polícia estava na casa da assaltada e pedia a minha presença lá. Não levantei a mínima objeção e subi no elevador até ao andar da senhora.
Depois das formalidades das apresentações, preparei-me para seguir o decorrer das perguntas e respostas.
Para meu espanto constatei que o meu colega nonagenário, que fora professor no liceu Camões, tinha-se dado como testemunha principal, quando, a única coisa que podia dizer em abono da verdade era o facto de ter-se cruzado à entrada na porta da rua com o assaltante, estando na altura longe de imaginar o que se tinha passado segundos antes. E mais: lembrei-me que lhe tinha dado, logo após a tentativa de assalto, todos os elementos ao meu distinto colega nonagenário, elementos esses que ele agora estava a debitar.
Fica a única pergunta que os agentes de autoridade me fizeram:
«O senhor consegue identificar o assaltante?»
«Se o vir, sim. Não tenho qualquer dúvida.»
«Primeiro porque ele, um homem possante, dominava-a em pouco tempo e levava-a até ao seu andar, metendo-a à força dentro de casa. A seguir, matava-a e roubava o que de importante havia para roubar. Nada mais simples e previsível.»
«Porquê matá-la?» perguntou o Gabriel, interrompendo os cálculos.
«Porque ela viu-o.»
«Como assim?»
«Quando abri a porta, a senhora estava caída e voltada para cima e o meliante debruçado sobre ela. Preparava-se para tirar-lhe as chaves de casa.»
«Está certo. Ele matava-a.»
«Portanto, salvaste de uma morte certa a ex-secretária do Salazar.»
Até o Raul já sabia da antiga atividade profissional da dona Emília.
«Podes dizer, Raul...»
Dias mais tarde a porteira bateu-me à porta a dizer que a polícia estava na casa da assaltada e pedia a minha presença lá. Não levantei a mínima objeção e subi no elevador até ao andar da senhora.
Depois das formalidades das apresentações, preparei-me para seguir o decorrer das perguntas e respostas.
Para meu espanto constatei que o meu colega nonagenário, que fora professor no liceu Camões, tinha-se dado como testemunha principal, quando, a única coisa que podia dizer em abono da verdade era o facto de ter-se cruzado à entrada na porta da rua com o assaltante, estando na altura longe de imaginar o que se tinha passado segundos antes. E mais: lembrei-me que lhe tinha dado, logo após a tentativa de assalto, todos os elementos ao meu distinto colega nonagenário, elementos esses que ele agora estava a debitar.
Fica a única pergunta que os agentes de autoridade me fizeram:
«O senhor consegue identificar o assaltante?»
«Se o vir, sim. Não tenho qualquer dúvida.»
«Se precisarmos de si, contactamos.»
E mais nada. Quantos menos elementos tivessem mais depressa era arquivado o processo. Daí, não ser preciso ouvirem-me.
O que ia bem no reino da Dinamarca?
A propósito do arquivamento do processo, também tentei arquivar num recanto da memória os dois anos vividos naquela casa que se localizava a vinte metros da avenida de Roma. Isto por um motivo muito simples. Mais vinte metros e teria concretizado o meu sonho de sempre que era morar na avenida de Roma.
Ainda hoje me lembro deste caso rocambolesco passado com a antiga secretária de Salazar que residia num dos andares do prédio. Sempre que me cruzava com a vetusta senhora não conseguia escapar à descrição que ela, no patamar, prestes a entrar no elevador de portas metálicas que abriam com estrondo, nunca se esquecia de fazer sobre o brilhante o cargo que desempenhou provavelmente com muita dedicação e a bem do Estado Novo, embora se esquecesse que já o tinha referido muitas vezes.
«Sabe, fui secretária do Salazar.»
«Ah sim, dona Emília?»
«Pois fui. Durante alguns anos. Mais tarde trabalhei no Banco Português do Atlântico, até que me reformei. O senhor é o novo vizinho, não é? E gosta do ambiente do prédio? Moram aqui pessoas horríveis. Detesto os senhorios. São uns pedinchões... Veja lá, senhor doutor, podiam ter uma vida tão boa e não têm juízo nenhum!»
«E parecem uns desgraçados, não é?»
«Parecem, não. São.»
Os senhorios também moravam no prédio. O aspeto caótico da sua marquise que dava para a avenida de Roma, bem como alguns vidros partidos, eram um espelho fiel do que ia no estado de espírito daquelas alminhas.
Rebusquei algumas palavras para elogiar a velhota sobre o que quer que fosse, como, por exemplo, ter sido noutros tempos secretária de Salazar. Não gostava dos senhorios, mas pagava de renda mensal vinte e nove euros por quatro assoalhadas. Os senhorios, pondo de lado a arte da pedinchice, deviam por certo retribuir na mesma moeda e talvez com mais troco os sentimentos que ela manifestava ter por eles.
O que ia bem no reino da Dinamarca?
A propósito do arquivamento do processo, também tentei arquivar num recanto da memória os dois anos vividos naquela casa que se localizava a vinte metros da avenida de Roma. Isto por um motivo muito simples. Mais vinte metros e teria concretizado o meu sonho de sempre que era morar na avenida de Roma.
Ainda hoje me lembro deste caso rocambolesco passado com a antiga secretária de Salazar que residia num dos andares do prédio. Sempre que me cruzava com a vetusta senhora não conseguia escapar à descrição que ela, no patamar, prestes a entrar no elevador de portas metálicas que abriam com estrondo, nunca se esquecia de fazer sobre o brilhante o cargo que desempenhou provavelmente com muita dedicação e a bem do Estado Novo, embora se esquecesse que já o tinha referido muitas vezes.
«Sabe, fui secretária do Salazar.»
«Ah sim, dona Emília?»
«Pois fui. Durante alguns anos. Mais tarde trabalhei no Banco Português do Atlântico, até que me reformei. O senhor é o novo vizinho, não é? E gosta do ambiente do prédio? Moram aqui pessoas horríveis. Detesto os senhorios. São uns pedinchões... Veja lá, senhor doutor, podiam ter uma vida tão boa e não têm juízo nenhum!»
«E parecem uns desgraçados, não é?»
«Parecem, não. São.»
Os senhorios também moravam no prédio. O aspeto caótico da sua marquise que dava para a avenida de Roma, bem como alguns vidros partidos, eram um espelho fiel do que ia no estado de espírito daquelas alminhas.
Rebusquei algumas palavras para elogiar a velhota sobre o que quer que fosse, como, por exemplo, ter sido noutros tempos secretária de Salazar. Não gostava dos senhorios, mas pagava de renda mensal vinte e nove euros por quatro assoalhadas. Os senhorios, pondo de lado a arte da pedinchice, deviam por certo retribuir na mesma moeda e talvez com mais troco os sentimentos que ela manifestava ter por eles.
Um dia, depois da habitual apresentação, comentou comigo:
«Venho muito incomodada da rua. Um indivíduo idoso pediu-me uma esmola e eu não lhe dei porque vi logo que era para a droga. Só lhe fazia mal, não acha?»
«Estava embriagado, não?»
«Cambaleava. Devia ser internado.»
«Sim. O álcool é uma droga muito perigosa quando tomado em excesso. Mas é permitida por lei. Sabia que nos casos extremos pode provocar alucinações, isto para não falar noutros danos físicos e psíquicos que causa no organismo da pessoa alcoolizada?»
«A quem o diz.»
Que queria dizer?
«E o seu patrão metia-se na pinga?»
«Era uma pessoa muito sóbria e poupada. Calcule que até as camisas eram passajadas. Eu própria passajei algumas, sabe?» Esclareceu, fugindo à pergunta.
«Venho muito incomodada da rua. Um indivíduo idoso pediu-me uma esmola e eu não lhe dei porque vi logo que era para a droga. Só lhe fazia mal, não acha?»
«Estava embriagado, não?»
«Cambaleava. Devia ser internado.»
«Sim. O álcool é uma droga muito perigosa quando tomado em excesso. Mas é permitida por lei. Sabia que nos casos extremos pode provocar alucinações, isto para não falar noutros danos físicos e psíquicos que causa no organismo da pessoa alcoolizada?»
«A quem o diz.»
Que queria dizer?
«E o seu patrão metia-se na pinga?»
«Era uma pessoa muito sóbria e poupada. Calcule que até as camisas eram passajadas. Eu própria passajei algumas, sabe?» Esclareceu, fugindo à pergunta.
Aquele "a quem o diz" referia-se a quem? Aos senhorios?
«Graças às suas poupanças ficaram muitas barras de ouro nos cofres do Estado. Não falo das poupanças pessoais, claro. Já o caso do Sócrates foi diferente...»
Muito diferente. O oposto. Foi um aproveitar e fartar vilanagem!
«Deixou obra.»
Referia-se à obra deixada por Oliveira Salazar ou à obra megalómana do Sócrates que nada tinha a ver com o filósofo?
«Um dia gostava de falar com a senhora sobre o seu cargo de secretária. Pode ser?»
«Do Salazar? Fui secretária dele, sim. Mais tarde trabalhei no...»
Corta!
«Sim, se não se importa podíamos encontrar-nos no café Luanda um destes dias...»
«Com todo o gosto. Está combinado. E sabe uma coisa...?»
Claro que sabia.
O encontro nunca aconteceu.
Hoje nada sei da ex-secretária de Oliveira Salazar. Mudei-me para outra casa há perto de dois anos e não voltei a entrar naquele prédio, nem a saber dela, nem do todo bem pronto ex-colega nonagenário, testemunha principal de assalto a que não assistiu, nem dos mal prontos e pedinchões senhorios, amantes de uma certa heroína que, um dia, certamente os irá trair e levar para a terra do nunca...
«Graças às suas poupanças ficaram muitas barras de ouro nos cofres do Estado. Não falo das poupanças pessoais, claro. Já o caso do Sócrates foi diferente...»
Muito diferente. O oposto. Foi um aproveitar e fartar vilanagem!
«Deixou obra.»
Referia-se à obra deixada por Oliveira Salazar ou à obra megalómana do Sócrates que nada tinha a ver com o filósofo?
«Um dia gostava de falar com a senhora sobre o seu cargo de secretária. Pode ser?»
«Do Salazar? Fui secretária dele, sim. Mais tarde trabalhei no...»
Corta!
«Sim, se não se importa podíamos encontrar-nos no café Luanda um destes dias...»
«Com todo o gosto. Está combinado. E sabe uma coisa...?»
Claro que sabia.
O encontro nunca aconteceu.
Hoje nada sei da ex-secretária de Oliveira Salazar. Mudei-me para outra casa há perto de dois anos e não voltei a entrar naquele prédio, nem a saber dela, nem do todo bem pronto ex-colega nonagenário, testemunha principal de assalto a que não assistiu, nem dos mal prontos e pedinchões senhorios, amantes de uma certa heroína que, um dia, certamente os irá trair e levar para a terra do nunca...
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