domingo, 28 de maio de 2023

O solitário

 


Nas histórias que conto há sempre uma mão quase cheia de verdade e outra com pinceladas ditadas pela imaginação do momento, ou vice-versa. Acontece que nesta história é a técnica de lapidação do diamante em bruto que lhe dá todo o encanto e esplendor, ou tira parte do brilho quando é ultrapassado o limite do razoável.


Solitário. Penso que é uma palavra ideal para lançar a confusão no leitor. Neste caso, claro. Uma história carece de um título que, normalmente, dá um indício à natureza da história que está quase a ser lançada. Mas não é o caso. Eu explico.
Desta vez não vou ser o relator do meu amigo de sempre, Mário, uma amizade que vem do tempo em que ambos frequentávamos a agora extinta Faculdade de Ciências, situada na rua da Escola Politécnica e que se prolongou por uma escola do Ciclo Preparatório, continuando até hoje e quem sabe se até à nossa eternidade, nos depósitos onde se acumulam os ossos, os tais "nossos que esperam pelos vossos", já que essa coisa da existência da alma ainda está longe de ser esclarecida.
"Então... e a alma?"
Não é tema para ser debatido quando a agenda é outra. Nem, tão pouco, sou a pessoa indicada. Mas tem que haver um contador desta história a que dei o nome de "O solitário". Para já, uma dicotomia. Se esse contador for imaginário, então o contador sou eu, embora disfarçado. E não é o caso. Assim, resta-me chamar à cena Aniceto Luís Fagundes, que vou abreviar para Luís, porque é assim que o conhecem no mundo da filatelia, e não só, em que é figura de primeiro plano. À parte esse destaque, é um homem discreto, calmo, um pouco ausente de mundo real das conversas de circunstância. Fala pausadamente e tem o dom de contar uma história, por mais banal que seja, e com todos os pormenores como se estivéssemos presentes em cena e a viver a mesma. O problema é que não consegue passar a história para o papel ou para a pantalha do computador e assim lá se perde o dom. A esse respeito ainda insisti com ele.
«Já tentaste alguma vez?»
Fez um gesto de deixa para lá.
«Cada um sabe o lugar onde se deve situar. O meu e o teu complementam-se. Somos como líquidos não mexíveis, sabes muito bem. Vou contar-te a história e a seguir desempenhas o teu papel.»
«Então, seja. Mas antes... aconteceu mesmo contigo?» 
«Que achas?» 
«Eu não acho nada. Noutros tempos achava facilmente notas de conto, mas perdi o dom.» 
«Talvez porque as pessoas estão mais pobres e contam os tostões com frequência.» 
«Concordo contigo. Mas voltando á vaca fria...»
«Pronto, aconteceu comigo.»
Antes de seguir-se a história a que dei o nome ambíguo de "O solitário" sinto necessidade de esclarecer os leitores sobre o modo como nos conhecemos há sete anos. Nesse tempo tinha uma loja onde negociava em antiguidades e colecionismo em que a filatelia, uma paixão que já vem dos meus dez, onze anos, foi o elo de ligação para uma amizade que consolidou rapidamente, ganhou raízes, principalmente desde que comprámos várias coleções de selos. Mas isso é outra história que nada tem a ver com esta. Veio a lume depois de outra história que lhe estava a contar no intervalo de uma troca de selos e que tinha publicado no blogue. Os classificadores tinham passado para segundo plano enquanto eu, mal ou bem, lhe contava uma história a que dei o nome de "O anel" (1). Admirei-me do meu amigo Luís ter dado mais atenção que o habitual.
«Curiosa essa história, amigo António. Tomei muita atenção. Aconteceu mesmo assim?» «É melhor leres. faltam alguns pormenores.» 
«Lerei.»
Sorri, tentando envolver em mistério a história que acabara de contar. De mistério e verdade pouco tinha. Imaginação, sim. Pura imaginação com fundamentos críticos.
«Sei que tens um amigo que costuma ser o teu relator. Esse teu amigo existe mesmo?»
«Que achas?»
«Bom, queres saber a minha opinião?»
Ignorei a pergunta do Luís. Naquele momento sentia-me nas proximidades de um pântano perigoso.
«E se passássemos à tua história?»
«Começo a acreditar que nunca me vais apresentar esse teu amigo. Depois de ler "O grande salto. Hatshepsut" fiquei com as minhas dúvidas. Mas disse-te que ia contar uma história?»
«Parece que sim.»
Fiquei à espera, mas ele demorava. De repente ficara absorto nos seu pensamentos ao mesmo tempo que abria a cigarreira de prata, herdada do avô. Maquinalmente tirou um meio cigarro.
«Para quê transformares um cigarro em dois?» perguntei-lhe um dia, embora já adivinhasse a resposta.
«É uma forma de fumar menos de cada vez.»
«Poupar nos pregos para o caixão?»
«Mais ou menos.»
«E resulta?»
«Acho que sim.»
Fez-me um gesto para esperar e encaminhou-se para a saída do café e eu fiquei a pensar no seu estratagema para enganar o vício. Talvez um dia passasse a fumar um quarto de cigarro de cada vez. E depois, um oitavo. Continuando, assim sucessivamente, até chegar à definição de átomo de um certo grego da antiguidade.  

Naquela manhã de céu ausente de nuvens que eclodira há mais de trinta anos, Luís trazia a carteira recheada de notas. Era fim do mês e acabava de receber o ordenado. Nenhuma admiração quanto às notas porque nesse tempo ainda não havia multibanco nem transferências bancárias. Os empregados eram pagos em numerário ou cheque, mas mais usualmente em dinheiro vivo, portanto, em numerário.
Vinha dos lados do Terreiro do Paço e voltava para casa após uns meses de viagem ida e volta num paquete de transporte de tropas que faziam a guerra no Ultramar.
«E o nome do navio?»
«Uíge. Era um paquete da Companhia Colonial de Navegação que fora fretado pelo Estado para o transporte de tropas. Nessa altura estávamos em plena guerra.»
«Portanto, antes da revolução dos cravos.»
«Uns bons anos antes. Mas continuando...»
«Peço desculpa. Espero que não tenhas perdido o fio à meada. Prometo não interromper mais.»
«Não tem problema.»
Já na rua do Ouro, precisamente quando parou junto à montra de uma ourivesaria, lembrou-se que fazia um ano de casado.
«Por pouco escapava-me» pensou. «Talvez encontre aqui um fio de ouro em conta para a Luísa. Ou talvez não.»
Era quase certa a segunda hipótese. Uma ourivesaria de luxo não devia ter nada de ouro em segunda mão. Contudo insistiu. Talvez conseguisse descobrir um fio de malha fina, pouco trabalhada. E leve. O grama do ouro pesava muito nas algibeiras. Ó se pesava! 
Na altura ganhava quase quatro contos por mês. Ele e a Luísa estavam em começo de vida e mal dava para pouparem meia dúzia de escudos em cada mês. Devia cair na realidade e contentar-se em comprar uma peça de roupa. Uma camisola, por exemplo. Talvez depois da campanha de pesca do bacalhau tivesse mais possibilidade. Então faria uma surpresa à sua querida Luísa.
Quando se preparava para seguir em frente pareceu-lhe que os sapatos estavam pregados no empedrado. Não. Não era um fio de ouro. Melhor ainda.
«Mas...»
Aquele bonito anel com um brilhante encastrado tinha um preço convidativo. Tão convidativo que leu mais que uma vez o preço, não fosse enganar-se.
«A pedra será um zircão?»
Dúvida oportuna. Mas não lhe parecia.
Teria defeito?
Outra dúvida com lógica.
Acenou que não com a cabeça. Se tivesse eram obrigados a dar a informação por escrito. Muito dissimulada, mas tinha que estar visível na montra.
Ah, Luís!, deixa-te de tretas e entra. Acabam logo todas essas indecisões. 
Ao abrir a porta assustou-se com um som estridente e viu-se, momentaneamente, na situação de um assaltante. Tinha que agir em segundos. E, já com a joia nas mãos, saía do estabelecimento e fugia a bom fugir.
O som finou-se e o bom do Luís ficou mais calmo. Afinal era um potencial comprador e a dona de uns olhos negros que o fitavam dava razão à realidade. Ainda bem que a Luísa não estava presente porque aquela morena quase que o tirou do sério por momentos. Merecia que ajustasse o nó da gravata e exibisse o melhor dos sorrisos.
«Assustou-se.»
«Pois... pois foi.»
Tinha que mudar de atitude.
«E tem razão para tal. O avisador mais parece um sinal de alarme.»
«De facto pensei que fosse um sinal de alarme.»
Aqueles olhos escuros, sedutores, continuavam a perturbá-lo. Já nem se lembrava de ao que vinha.
«Estás, pronta, Marisol?»
«Sim, querido. Onde vamos hoje?»
«Por aí. Só os dois.»
«Sou toda tua...» 
Caiu em si. Estava a esquecer-se do motivo que o levou a entrar na ourivesaria. A culpa talvez fosse dos olhos escuros...
«Posso ajudá-lo?»
«Ah... é por causa de um anel que está na montra.»
«O solitário» adivinhou. «Tem bom gosto, senhor.»
Pouco depois o Luís e o anel de brilhante estavam em estação, como se dizia de um teodolito pronto a ser manobrado por um topógrafo para este recolher os dados.
«É belo!»
«Tem razão, senhor.»
«É... é mesmo diamante a pedra?»
«Claro que é. Um anel e um brilhante em sintonia. O preço está muito em conta.»
«Pois está. E é belo.»
«Ainda bem que gosta.»
«Trezentos, não é?»
A empregada acenou com a cabeça. E ele sorriu. O preço era um achado.
«O brilhante não tem mesmo defeito?»
«Pode ficar descansado. A nossa ourivesaria é muito conceituada.»
«Então, vamos nisso.» 
«Podemos ainda fazer uma atenção...»
 Ia a dizer que não valia a pena porque o danado do anel já tinha um preço muito em conta, mas desistiu, acabando por deixar um olhar interrogador.
«Duzentos e oitenta.» Disse ela.
«Ótimo. Pode embrulhar.»
Tirou a carteira do bolso interior do casaco e pôs-se a contar o dinheiro.
«Não quer pagar em cheque?»
Interrompeu a contagem.
«Não vale a pena.»
Recomeçou a contagem. 
«Aqui está o dinheiro.»
A empregada fixou os olhos negros, perplexos nos seus.
«Não está certo? A menina seguiu a contagem com os olhos.»
Ia a dizer belos olhos negros, mas arrependeu-se a tempo.
Ela aproximou-se dele e sussurrou-lhe ao ouvido:
«São duzentos e oitenta contos, senhor!»
Não havia buracos nas proximidades nem gelo para lhe arrefecer o rosto. Nem houve palavras para descrever a vergonha e deceção do bom do Luís. Um anel com um belo brilhante por duzentos e oitenta escudos teria sido uma coisa de outro mundo.
Muitos pedidos de desculpa e o Luís direitinho para rua mal foi possível.
«Que triste figura fiz! Onde tinha a cabeça?»
Pôs as duas mãos nos bolsos do casaco e tomou o rumo da estação do Rossio.
«Mas...»
O cartão de visita que tirou de um dos bolos tinha um nome escrito.
«Marisol Costa.»
«Marisol? Com um raio! Sou bruxo. Acertei no nome da jovem...»
De certeza que ela pôs o cartão no bolso do casaco quando lhe sussurrou ao ouvido o verdadeiro preço do anel. Tão certo como ele se chamar Luís.
Voltou a pôr o cartão no bolso, mas retirou-o logo quando pensou na sua Luísa. E foi então que deu com um último detalhe.
«Tem escrita a morada. E o número de telefone!»
Claro que quase todos cartões de visita tinham escrita a morada e o número de telefone.

(1) O anel

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