segunda-feira, 15 de maio de 2023

José Miranda Nobre de Menezes



A minha amante foi promovida a companheira. Quer casar comigo, mas os bispos não permitem.
Regina? Anabela? Mais nomes? Pouco interessa. Aliás, talvez um dia deixe cair a máscara...



Conheci o José há vinte e oito anos em circunstâncias que me deixaram chocado na altura. Estávamos em plena canícula. Dias quentes e noites tropicais, sem a mínima brisa, sucediam-se, uns após outros. A agravar a situação morava com a minha companheira de então numa casa em que a temperatura à noite se aproximava dos trinta graus Celsius, facto que nos obrigava a prolongar a permanência na sala para lá das duas da manhã. Não que a temperatura fosse mais baixa aí. Sim porque, mesmo dormindo debaixo de um lençol, a carga térmica acumulada não era convidativa para um sono reparador. Só depois das duas, já cansados, é que nos dispúnhamos a recolher à alcova, quase sem vontade para pormos em prática os ditos segredos de alcova. Mas deitar-me todas as noites para lá da duas da manhã não implicava que me levantasse tarde. Estava na minha natureza levantar-me entre as oito e as nove, enquanto a Regina continuava dormitando como um anjo, mostrando parcialmente a nudez erótica que tanto me tirava do sério. Durante alguns segundos ficava a olhar para ela e a lamentar ter tantos afazeres urgentes. Ela pressentia a minha presença e, com voz lânguida, destapava-se ainda mais e perguntava:
«Vais já, amor?»
Ainda hesitava mas era só por um momento. O que se seguia era inevitável. A amazona cavalgava no seu corcel e íamos até ao fim do mundo. Até que...
«Verboten!»
E vamos em frente. Há uma história para contar.

Recordo-me, como se fosse ontem, do que aconteceu naquela noite que voltava a estar desagradavelmente quente. Estávamos na sala a ver um filme de terror e a Regina aproveitara a ocasião para se aninhar nos meus braços. Aliás, eram os primeiros tempos. Compreende-se. Tudo tem o seu tempo. Mas com ela parecia que ainda estávamos em ontem. Mas não. Ontem ainda tinha sido mais quente.
«Mário, tenho a impressão que não vou aguentar o filme até ao fim. São demasiados sobressaltos para quem tem um coração fraco como o meu.»
«Vá lá, o filme é bom e ainda não são duas horas. Mas não te aproveites da situação. Quente já eu estou e o cálice pode transbordar, sabes?»
«Ah!, que bom! Queres um chá frio, ou assim?»
Compreendi a oferta.
«Assim.»
«Assim está bem.»
«Mas que estás a fazer a fazer?»
«Está muito calor, querido.»
«Brincalhona. Aceito. É capaz de resultar. Mas olha, tu é que perdes. Depois vou ficar com muito soninho.»
«Isso é o que vamos a ver.» Disse, com voz irónica e olhinhos de carneiro mal morto
Já tinha despido o célebre robe vermelho sem botões e com um cinto também vermelho a aconchegá-lo ao corpo. Apesar de a ter visto nua enésimas vezes, era sempre um mistério imaginar o seu corpo escondido naquele diabólico robe que agora estava caído por terra.
Levantou-se e dirigiu-se para a cozinha.
«Não estou a brincar. Mas antes vou beber um chá de camomila com umas pedras de gelo. Alinhas?» perguntou, pouco distante. «É para arrefecer.»
«Acho bem.»
Mas quem podia arrefecer depois do seu gesto brusco a abrir o robe mágico, caído de imediato no chão?
Fiquei a pensar. Era menina para aparecer nua, já sem cuecas e tudo o mais, a servir o chá.
Demorei algum tempo a moer os pensamentos a ponto de ela ter voltado à sala e ficar na minha frente.
«Alinhas mesmo?» repetiu.
«Em quê?» perguntei, armando-me em tolo.
«No chá, claro!» 
«Ah sim. Claro que alinho.»
Pousou na mesa de apoio o tabuleiro com o bule, duas chávenas, colheres de chá e o resto das coisas. Acertei em cheio. As cuecas brancas tinham passado à história. Toda ela era ironia e sedução. Mais sedução que ironia.
«Então?»
«Queres que sirva o chá, Regina?»
Pôs as duas mãos na cintura. E eu fiquei à espera. Não do chá, claro.
«Então?» repetiu. «Mas não olhes que me atrofias!»
«Que menina...» Pensei.
Acreditei que ia cumprir a ameaça erótica.
«Pronto, não sirvo o chá.»
Muito séria, mordeu os lábios e baixou-se para pegar no roupão. Logo de seguida vestiu-o e deixou-me perplexo.
«Que se passa, Regina?»
«Estou a brincar. Não gostas de suspense?»
«Ah!»
E voltou a acontecer o gesto mágico.
Um toque estridente de campainha quebrou o encanto.
«Quem será a estas horas?» perguntei, contrariado.
«Adivinha quem é?»
«Não faço a mínima ideia. Tocarem à campainha às duas da manhã é coisa de pessoa sem senso. Será algum antigo namorado teu que não sabe de mim?»
«Mário!»
«Um admirador?»
«Sou mulher de um só homem, bem sabes.»
Desisti. Já alguém batia levemente na porta. Voltou a vestir o roupão e desta vez deu um nó com o cinto.
«Deixa, Regina, que vou abrir.»
Tentei interpretar o seu sorriso irónico.
A primeira impressão que tive ao abrir a porta de modo algum foi positiva. A pessoa na minha frente, muito alta e esgalgada, fazia lembrar uma figura acabada de saltar da tela do filme de terror que estávamos a ver, coisa parva que ainda admiti por frações de segundo.
«Desculpe por vir a estas horas.»
Por quem era! Estava na minha frente um desconhecido que "morava" nas alturas e que quase metia medo ao susto, não fosse o seu sorriso simpático. Passava das duas da manhã e não imaginava ao que vinha.
«Deixa-o entrar. Essa alma não faz mal a uma mosca.»
«Mas...»
«Sou o José Miranda. A Regina já teceu os mais rasgados elogios ao senhor e eu venho confirmar. Posso...?»
«Não me falaste desta ave rara.» Pensei.
«Entra, José, apesar de serem duas da manhã e de estares bêbado. Creio que já não são precisas apresentações.»
«Sendo assim, faz favor de entrar. Julgo que é um amigo da Regina.»
E fiz um gesto para o encaminhar até à sala. O homem sorriu, agradado. Cambaleante, avançou. O seu modo de andar não levantava suspeitas. Estava no estado que estava.
Logo a seguir, sentámo-nos. Eu e a Regina no sofá do costume e o José na senhorinha cinzenta em frente.
«Desculpem vir tão tarde, mas vi luz e decidi-me a conhecer a última descoberta da minha amiga. Desculpa, amiga. Não era bem isto que queria dizer.»
Caldo entornado para a Regina. O olhar que me dirigiu não foi de pessoa muito à vontade.
«E o que é que querias dizer, José?»
«Já bebi um pouco hoje. Preciso de ter cuidado com a língua.»
Pior a emenda que o soneto?
«Isso, é melhor. Deixa que ela se prenda. Olha uma coisa, a Lucília está bem?»
«Para te falar com franqueza, não a vejo desde o jantar e já se passaram uns tantos e quantos whiskis. O teu companheiro deve estar cá com uma impressão à primeira vista!»
Pus o José à vontade.
«A Regina já me falou do senhor.» Menti. «Pode ficar descansado. Nunca me fico pelas primeiras impressões.»
«Ah, ainda bem que é assim. Mas este senhor para o servir chama-se José. Só José.»
«Muito bem, José. E eu sou o Mário, como já deve saber. Aceita beber mais um copo?»
«Com muito gosto. Já estou a ver que vamos ser bons amigos.»
«Dos copos, não. Desengana-te, José de Menezes, que não tens sócio para esse tipo de negócio.» Avisou ela. «A propósito, Mário, este amigo que está na tua frente é de linhagens nobres. Não parece, mas é. Educado, com uma cultura fora do comum, amigo do seu amigo, dedicado compulsivo dos seus sapatos...»
Lembrei-me então da obsessão de um amigo pelo brilho dos sapatos pretos ou castanhos. Então era ele aquele amigo que tinha sempre os seus sapatos brilhantes como o luar a refletirem-se nas águas de um lago. E segundo ele, José, não havia segredo. Dispunha de material que fazia a inveja de um engraxador, desses que já rareavam na cidade.
José apontou a mão ossuda na direção da Regina que, entretanto, se tinha levantado.
«Não me digas que proíbes o teu mais que tudo de beber um copo comigo. Isso é uma ofensa!»
«Um ou mais que um.» Disse eu. «Mas se não se importa bebo uma cerveja. A Regina já conhece os meus gostos e sabe que eu e o whisky temos uma má relação. Bem como o brandy. Coisas que o passado não esqueceu.»
«E acertou em cheio no seu gosto com a Regina. Mas não sabe o que ganha em não apreciar o whisky. Estou numa fase em que já é tarde para remediar. Esta bebida não gosta nada do fígado e vice-versa. Mas que se há de fazer? O vício é meu dono e senhor.»
«Nunca é tarde, José.»
Entretanto ela já estava junto de nós com o copo de whisky simples e a Sagres em copo.
«Que conspiraram na minha ausência?»
«Eu disse alguma coisa de mal, José?» perguntei.
«Nada de especial. Nem eu. Só disse que estava com muita sede. E eu ainda não bebi nada.»
«Nesta casa.»
«Pois.»
Nessa noite fiquei a saber de duas paixões de um dos homens mais feios e desengonçados do mundo. Gatos e relógios. Havia ainda uma terceira e essa adivinhei nessa noite logo aos primeiros minutos. A paixão muda pela Regina. 
Aparecia às duas da manhã antes de eu e a Regina juntarmos os trapinhos? 
Então, Mário, não sejas desconfiado...
O Magricela era um gato campeão de raça egípcia e a Fininha não se ficava atrás. Já tinham ganho várias medalhas em exposições de gatos. Quanto aos filhos, estava a prepará-los para seguirem as pisadas dos campeões. Mas o campeão dos campeões era o Magricela.
«Se o fígado não me pregar uma partida daquelas..., percebe, amigo Mário?
«Eles são de raça egípcia!» informou a Regina.
«O teu amigo já me disse.»
«Puros. Valem uma pipa de massa, mas não os vendo por nada deste mundo. São feios, mas eu consigo ser ainda mais feio» afirmou, sorrindo e exibindo a dentadura alva, não original. «A sua alimentação é especial e custa-me os olhos da cara. Mas eu e a minha Lucília fazemos gosto nisso. Gosta de gatos, meu amigo?»
«Que tens a ver com isso, José Miranda?»
Ignorámos a intromissão da minha companheira.
«Gosto muito, José. Quando tinha pouco mais de três anos deitava-os da varanda da casa dos meus pais para o quintal. Acreditava que eles voavam, sabe? O que valia aos desgraçados bichanos é que da varanda ao quintal iam pouco mais de dois metros. Fora isso e falando a sério, sim, gosto muito de gatos.»
«O Mário teve um grande desgosto há um ano. A sua Princesa morreu com complicações no fígado e no coração. Nessa altura ainda não o conhecia.»
«Complicações de fígado. Mas a gata bebia?»
«Deixa-te de graças, José!»
«Ah sim. Vamos esquecer essa Princesa que tanto o traumatizou. Mas a sua ideia de atirar os gatos pela varanda abaixo não lembra ao careca (1).»
«Que és tu.»
«Bom, está perdoado. Fê-lo com boas intenções do seu espírito inventivo.»
«Sim. O Mário desde muito cedo dedicou-se à investigação» disse a minha companheira, sorrindo ironicamente. «Quanto ao caso dos gatos, merece o benefício da dúvida.»
O José levou as duas mãos ao alto da cabeça, carente de pilosidade, mais brilhante ainda que os sapatos que calçava no momento. Devia ter descido vários pontos na sua consideração com a descrição sobre os gatos que fazia cair no empedrado do quintal.
«Está convidado a ir à próxima exposição. Traje de cerimónia.»
Surpresa das surpresas.
«Obrigado. Tenho muito gosto. Disse traje de cerimónia?»
«Estou a brincar. É informal, como não podia deixar de ser. As senhoras é que fazem questão em aperaltar-se. Eu vou mais ou menos como estou. Umas calças de ganga e uma camisa.»
«E também uns sapatos reluzentes.»
«Ah sim. É o costume.»
Um convite que nunca foi concretizado, esse da exposição felina.
«Agora tenho que falar dos meus Swatches... Sabe que possuo mais de cem na coleção?»
«Não me diga!»
«É coisa de maduro. O curioso é que só coleciono dessa marca. Já viu algum?»
«Sim. Devem fazer uma coleção interessante.»
Olhei para o copo vazio do José. Talvez não fosse boa ideia sugerir que bebesse mais um whisky. De qualquer forma, mais um menos um não fazia grande estrago.
«Amanhã quer ver a coleção? Aproveito para lhe mostrar o Magricela e a Fininha.»
«E a Lucília?» perguntou a Regina, em ar de gozo.
A pergunta passou ao lado.
«Mais um copo, José?»
«Se me quiser acompanhar...?»
«Não há mais copos para ninguém. Já viram as horas que são, meus meninos?»
«Só mais um, por favor. Prometo que não me levam a casa ao colo. Este vosso amigo é magro mas pesa quase noventa quilos.»
«Então tens ossos pesados.»
Talvez duas pessoas conseguissem fazer uma cadeirinha para levar o José ao destino.
Levantou-se. No inverno devia padecer de frio lá nas alturas.
«Posso ir à casa de banho, querida Regina?»
«Ai como nós estamos com tanta meiguice! Vais subir as escadas de gatas, José, vais vais...»
«Já não é a primeira vez.» Admitiu.
«E eu não sei?»
Aproveitando a ausência do amigo, entendeu que devia admoestar-me.
«A ideia que tiveste, Mário! O homem já não aguenta mais um copo.»
«Queres apostar?»
«Aquilo que nós sabemos.»
«De acordo. Era o que ia propor.» Concordei, sorrindo.
Regressado à sala, já tinha o seu copo de whisky simples em cima da mesa de apoio e eu o copo de cerveja.
«Comam ao menos uns aperitivos para atrasar, alminhas de Deus!»
«Vamos nisso, amigo José? Umas tapas de chouriço e pão torrado?»
Com aquele tipo de bebida não rimava. Mas tudo servia para o José no estado em que estava.
«Se não se importa. Qual é o seu hobby, Mário?»
«Entre outros» fiz uma ligeira pausa, sorrindo para a Regina «sou filatelista.»
«Ah!, tenho lá em casa uns tantos selos para lhe mostrar. Se achar que são alguma coisa de jeito pode ficar com eles porque não coleciono. É uma herança de família.»
Fiquei logo a sonhar com os selos de D. Maria que valiam um balúrdio.
«Obrigado, José.»
«A propósito da família. Fala da tua árvore genealógica.»
Consultou o relógio.
«Já é tarde. Este também é um Swatch, claro.» Referiu-se ao relógio. «Não podia deixar de ser.»
E levantou-se, oscilando quase como um pêndulo, mas de trás para a frente e vice versa.
«É melhor acompanhares o José a casa, Mário. Se ele der mostras de desorientação é o segundo esquerdo do outro lado do restaurante.»
«Regina!» repreendi-a.
«Até agradeço. Já estive melhor, confesso. Ah ah.»
«Estás bonito! Ainda bem que a Lucília dorme a estas horas. Por onde andaste, desgraçado, antes de vires até cá?»
«Andei por aí e por ali. É o costume.»
«Quando ganhas juízo?»
«Quando a cirrose quiser levar-me para a quinta das tabuletas. Aí deixo de beber e também de fumar. A propósito, Regina, posso fumar um cigarrito?»
«Já sabes que não. Sou alérgica ao fumo. Até porque estás de saída, não te lembras?»
«Então, vamos, meu amigo? Até amanhã. Dorme com os anjos.»
«Não podia ser outra coisa. Sou também um anjo.»
«Ah ah! Só se for aquele que caiu do céu por mau comportamento.»
«José!»
«Encontramo-nos ao almoço no Estêvão?»
O Estêvão era uma restaurante perto de casa onde já tinha almoçado duas vezes com a Regina, desde que me acolheu na sua casa. Não se comia mal nem se comia bem. Como dizia o outro, antes pelo contrário.
«Logo vemos.» Disse ela.
«Faço questão em pagar.»
«Isso já é outra conversa.»
«Regina!»
Da sala até à porta oscilou mais que uma vez.
«Então está combinado.»
A expedição até à porta da rua da casa do José foi algo agitada.
«Meu bom amigo, foi um prazer conhecê-lo. Trate bem a sua companheira. Este palminho de cara tem mau feitio, mas paciência. Podia ser pior.»
(Quem tratou bem quem?)
«Farei os possíveis.»
«Então até amanhã.»
Perguntei-lhe se queria ajuda para subir as escadas. Fez um gesto negativo.
«Eu cá me arranjo. Ah!»
Que aconteceu entretanto?
Tinha que ser! Um vómito. Logo a seguir um esguicho de líquido. Um cheiro nauseabundo, pois talvez se tivesse borrado. Enfim. O que nós sabíamos. Só tive tempo de dar um salto à retaguarda. Não deu para avisar. Vomitou o whisky que tinha bebido antes e depois. Só líquidos. Nada sólido. Tive que o segurar para não cair para a frente.
«Estou mais aliviado. Mas agora chegou o mar alto e não há nada a fazer se não aguentar...»
Demorou a abrir a porta, mas lá conseguiu.
«Já faltou mais.»
Sim. Havia a tortura das escadas.
«Não quer mesmo ajuda, José?»
«Obrigado. Ah ah. Vou tentar.»
Custa-me dizer porque ofende a dignidade humana. Mas é fatal como o destino. Tenho que dizer. Aquele homem, que me pareceu ser um bom e esquelético gigante, subiu as escadas de gatas. Aliás, gatos e gatas era com ele.

Conforme tínhamos combinado, um pouco antes da uma da tarde estávamos a entrar no restaurante do Estêvão.
«Vamos tramá-lo, Mário. Faz favor de pedires uma garrafa de um vinho caro. De preferência tinto porque ele só bebe branco. Para não falar nas bebidas... como se diz?»
«Espirituosas.»
«Pois.»
O restaurante não era grande e vi logo que ele e a mulher ainda não tinham chegado.
«Vou perguntar ao Estêvão.»
E dirigiu-se ao balcão, que ficava logo à entrada. Eu segui-a.
«O senhor engenheiro Menezes marcou alguma mesa para quatro?»
«Não, doutora. Nem sequer o vi pela manhã para o mata-bicho.»
«Mata-bicho a essa hora?» perguntei, abismado.
«Sim, um copo de branco. Doutra forma não era mata-bicho.»
«Estranho.» Comentei.
«O mata-bicho do engenheiro?»
«Não. É que ficou combinado ele marcar uma mesa.»
«O que ele combinou ontem pode não valer hoje, compreende? Mas sentem-se na mesa dele.»
E assim fizemos.
«Ele é engenheiro?» perguntei.
«Da mula russa.»
«Bem me parecia.»
«São peneiras da mulher. Vá, manda vir a garrafa de tinto.»
«É uma indelicadeza. Só conheço o homem desde ontem...»
«Eu assumo.»
O tempo foi correndo e o restaurante ficou sem mesas por ocupar. Ao almoço era sempre assim. Não por ser um restaurante de qualidade, mas por faltarem opções nas redondezas.
«Uma e meia. Já não vem. A piela que apanhou ontem deixou-o num estado comatoso tal que a esta hora ainda está a curtir.»
«Bom» disse. «Vamos almoçar. Mas pagas tu a garrafa.»
«É o pagas...»

Por volta das quatro da tarde fomos ao dentista. Eu como acompanhante, a Regina como "doente". O problema era mais grave do que o costume. Não um simples tratamento, mas um dente que tinha que ser extraído. Para ela era uma tragédia. Tudo bem para mim, desde que entrasse na câmara das torturas e eu ficasse na sala de espera a ler uma das muitas revistas já passadas no tempo. Mas não foi bem assim que aconteceu. A seu pedido assisti à extração do dente. Contrariado, mas fui também lá para dentro. Ainda hoje não entendo porque tive de assistir a semelhante ato. Uma vez não são vezes e jurei a mim próprio que jamais se iria repetir.
Felizmente que a extração do dente correu bem, dentro dos parâmetros considerados normais, isto segundo a opinião abalizada do dentista.
«Vês como não custou?» disse, já junto ao balcão, enquanto ela se preparava para pagar.
«Não foste tu que vieste arrancar o dente.»
«Pois não. Mas sofri bastante com o que vi. E não estava nas minhas atribuições, Regina!»
De regresso a casa entrámos numa discoteca onde ela comprou um CD-ROM com jogos e eu, aproveitando um saldo, três CD normais com música variada, um deles do Nat King Cole.
«E agora?» perguntei.
«Tens alguma ideia?»
«Queres um gelado?»
«Agradeço a tua ideia. Mas o que mais desejo neste momento é voltar para casa e deitar-me. Fiquei muito stressada.»
Concordei com ela.
«Vamos então. Mas olha quem vem ali?»
A pessoa em questão caminhava na nossa direção pelo passeio da praça de Londres, descontraída, coluna arqueada, boné branco com a pala um pouco levantada.
«Para onde vai aquela ave rara?»
«Olha, Mário, entrou numa loja de pronto a vestir.»
«De certeza que nos viu antes de o vermos e desviou-se. Repara como foi lesto a entrar na loja.»
«Vamos pregar-lhe uma partida.»
Sem dar-me oportunidade a concordar ou não com a ideia, apressou o passo e tive que fazer o mesmo. Segundos depois estávamos a entrar na loja.
«Vai ter cá uma destas surpresas!»
«Estás a vê-lo, Regina?»
«Não.»
«Então fica à entrada que eu dou uma volta por toda a loja.»
E assim foi. E pude concluir que o José de Menezes, pois não era outra pessoa senão ele, se tinha, pura e simplesmente evaporado.
«Essa agora!» exclamei.
«Onde se meteu o melro? Desistimos ou esperamos lá fora?»
A Regina, que saíra dorida do consultório, esquecera as dores e tudo mais, achou por bem esperarmos à saída da loja. Parecia estar tão intrigada como eu.
«A casa não tem buracos. Também não tem saída para as traseiras. Ele há de aparecer. É só preciso termos um pouco de paciência.»

«Olha, amor, ele está a sair da loja...»
«Com a breca! Onde se terá metido lá dentro?»
Foi então que a Regina se desmanchou a rir.
«Que se passa?» perguntei, desconfiado.
«Não te disse uma coisa. A loja é da Lucília e ele conhece todos os cantos e cantinhos.»
«Da Lucília?»
«Sim. A mulher dele. Dona também do Magricelas, da Fininha e da companhia limitada.»
«Ah! Como caí nesta esparrela. E estavas combinada com ele. Esse teu ar sério enganou-me.»
«Não cheguei a esse ponto.»
«Agora sou eu que vou segui-lo e perguntar-lhe, cara a cara, porque faltou ao combinado e agora se pôs a evitar-nos. Ele que apareça outra vez lá em casa que vai logo corrido em dois segundos. Nem que seja a uma hora normal!»
«Não sejas ruim! Deixa o homem em paz e vamos para casa. Eu indemnizo-te.»
Olhei-a de frente e imaginei a cama larga onde nos perdíamos. Tinha que acontecer, mesmo com uma pós extração de dentes ou coisa pior.
«Com uma condição.»
«Diz.»
«Não é preciso dizer.»
«Sabes que nunca me nego.»
«A quê?»
Sabíamos do que se tratava.
«Vamos então aproveitar a oportunidade. Pode acontecer um tremor de terra outra coisa ruim. Nunca se sabe.»
«Credo, Mário!»
Já em casa, ficámos a conversar no hall, junto à porta. Eu, virado para a sala e a Regina, de costas, de frente para mim.
«Pois é, aquele asno evitou-nos porque ainda tem um pouco de vergonha na cara. Valha-nos isso.»
«Penso que não o vamos ver por aqui tão depressa.»
«Pois não, Mário.»
«Estás dorida?»
«Não, porque o efeito da anestesia ainda não passou. Sinto a boca encortiçada.»
«Bom, vamos?»
«Aonde?»
«Oh!»
Foi uma visão rápida. Inesperada.
Ao fundo da sala, e ao lado da senhorinha, pareceu-me ver uma mulher vestida de negro, com um lenço na cabeça, também negro.
«Que foi, Mário?»
Não consegui ver o rosto. Foi tudo muito rápido. 
«Uma mulher!»
Virou-se também.
«Estou arrepiado dos pés à cabeça!»
«Viste mesmo?»
«Foi muito rápido.»
«Oh!»
Foi a vez da minha companheira soltar a exclamação porque a visão repetiu-se. De novo muito rápida. Precisamente igual, mas com uma diferença: senti um arrepio mais prolongado e a própria barba eriçou-se, conforme ela confirmou depois.
Que era aquilo?
«Já alguma vez aconteceu?»
«Sim. Com a minha mãe presente. E no mesmo sítio.»
«Então fica sabendo que ali há um portal!»
Pensei tanto ou tão pouco naquele fenómeno a que acabara de assistir que até me esqueci por momentos da cama larga onde me perdia com a Regina.
Aproximei-me da zona onde julguei ter acontecido a aparição. Ainda bem que ela também tinha visto da segunda vez.
«Que estás a fazer, Mário?»
«Não há qualquer vestígio. Nem um simples odor.»
Cheguei à janela e olhei para a rua.
«Anda ver.»
«É o José!»
«E está a olhar para cá. Aquele safardana teve a lata de seguir-nos!»
«O homem está passado das carochas!»
«Que há entre vocês dois?»
«Mário!»
«Desculpa, estou irritado.»
«Está a afastar-se. E tu aonde vais?»
«Vou perguntar-lhe umas coisas.»
«Então e aquela nossa conversa?»
«Ah sim. Tens que esmerar-te porque fiquei muito abalado.»
Começou a despir, uma a uma, as peças de roupa e eu fiquei a vê-la despir-se, perguntando a mim próprio o que aconteceria se, um dia mais tarde, aquele ato de sedução se transformasse numa rotina.

A noite ia alta quando ouvimos a campainha da porta.
«Não quero acreditar! Aquele fulano desapareceu sem uma explicação depois de faltar ao prometido e agora tem a lata de vir fazer não sei o quê...»
A Regina encolheu os ombros, como que a desculpar o José.
«Deixa lá. Temos que ter paciência.»
«Paciência? Ainda por cima deve vir bêbado que nem um cacho. Não. Vamos fingir que não estamos cá.»
«Ele viu luz na sala, Mário. Seria uma indelicadeza não abrirmos a porta ao desgraçado do homem.»
«Com os seus problemas posso eu bem.»
«Vá lá!»
«Era assim antes de eu entrar na tua vida?»
«O que queres insinuar?»
«Nada. Apenas me ocorreu perguntar. E outra coisa: porque foste naquele cruzeiro e deixaste-me cá?»
«Ora, meu amor, já te expliquei mais que uma vez que precisava de arrumar as ideias. Por vezes são tacanhas. Vai lá abrir a porta ao pobre do José.»
«Viva, amigo José. Finalmente deu à costa.»
Ia a dizer a horas tardias. Recuei.
«Será que os meus amigos perdoam a este desgraçado pela falta que cometeu?»
Estranhamente, o nosso homem vinha sóbrio. Só por isso, e depois de o convidar para se sentar, ofereci-lhe, com um sorriso, uma bebida.
«Muito obrigado. Mas só se for um dedal...»
Dedal ou copo meio, serviu para mostrar o olhar acusador da Regina.
«Simples?»
«Sim, caríssimo Mário.»
Agora tínhamos os salamaleques da ordem.
Deixei-os na sala e dirigi-me para a casa de jantar. Se bem me lembrava, tinha deixado a garrafa de Dimple em cima da mesa.
«Ah! Esqueci-me de perguntar à Regina se queria beber um Martini.» Pensei.
E voltei à sala.
Felizmente, ou antes pelo contrário, fiquei à entrada da sala. O que estava a ver não fazia sentido. Ou melhor, isso era o que pensava no momento.
«Cuidado, José. Ele está a chegar!»
«Minha querida, o labrego ainda demora.»
Metia-lhe as mãos esquálidas nas coxas e ela deixava-se ir outra vez na viagem. Uma viagem sem barco e sem mar.
«Então é isso!»
Levantaram-se, sobressaltados, e eu cresci para eles. Na mão direita segurava a garrafa.
«Não é o que pensas, Mário!»
«Pois não. Mas é o que vejo...»
«Meu bom amigo…»
«Labrego?»
«Como?»
«Ai comes, comes.»
A presença da garrafa nas minhas mãos era um sinal de perigo iminente para a cabeça calva daquele homem feio como um bode.
«Bom, é melhor eu ir andando.»
Batendo heroicamente em retirada...
«Acho bem, antes que me passe uma coisa esquisita pela cabeça, seu esqueleto ambulante!»
E esgueirou-se para o pequeno hall. A porta abriu-se num relâmpago, mas eu ainda fui mais rápido. Não lhe dei com a garrafa na cabeça. Limitei-me a empurrá-lo pela escada abaixo e não me preocupei com o estado em que ficou depois daquele voo imprevisto. A seguir, entrei outra vez em casa e fechei a porta com algum estrondo.
«Agora nós, Regina!»
Mas a sala estava vazia.
«Onde te meteste, cabra?»
Bem me avisou o Alfredo.
A primeira ideia que me veio à cabeça foi o quarto e a cama grande que todos os dias se enchia de amor.
«É ali que ela está!»
Sim, imaginei. Sentada na cama. Vestida com o seu roupão vermelho, comprido, que escondia a nudez. Lânguida. Irresistível. A tentar fazer magia para me levar à certa. A farsa não podia continuar.
Fiz uma pequena pausa antes de entrar. Tinha que resistir aos cantos da sereia. Custasse o que custasse. Mas seria capaz?
«Tens o robe vermelho a tapar-te a nudez e vais abri-lo quando eu entrar. Já conheço o truque. Estou mais que preparado para resistir ao teu canto de sereia.»
Os pensamentos eróticos bloqueavam-me a lucidez. Não podia esquecer que fui traído. Tinha que ter força psíquica.
«Estás aí, traidora?»
A resposta foi o silêncio.
«Escusas de abrir o robe que essa tática já não pega.»
E entrei.
Então, vi um quarto vazio. Sem a cama larga. Sem cómoda. Sem a bicicleta estática que servia apenas para pendurar os casacos. Sem o roupeiro. Sem ela.
Depois, acordei.

«Mário, para que foi todo esse reboliço que fizeste na cama?»
«Nem imaginas o pesadelo que tive, Regina...»
«Então o que foi, amor?»
«Estavas a trair-me com o José. Ele metia-te as mãos nas coxas e tudo isso. Nem imaginas, estava pior que fulo e empurrei-o escada abaixo.»
«Credo, homem! Fizeste isso logo a um morto?»
«O quê?!...»
«É verdade. O desgraçado do José morreu. Ficou-se como um passarinho.»
«E não me disseste nada?»
«Como havia de dizer? Contaram-me há pouco na padaria.»
«Vá, chega-te para mim que tenho frio.»
«Tu teres frio? Onde é que isso já aconteceu? Então está bem. Vou à casa de banho.»
Tentei adivinhar o que iria acontecer a seguir. Voltava para a cama com o roupão vermelho vestido a esconder a nudez, ou com a nudez a esconder o roupão?

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