quarta-feira, 24 de maio de 2023

As cuecas pretas

 


Uma mesa clássica oval. Seis cadeiras estofadas, cinco delas encostadas ao tampo envernizado. Sobre um móvel condizente com a mesa, estava uma televisão de dimensões exageradas para a distância a que se situavam dois cadeirões forrados a cabedal harmonizados por uma mesa baixa de tampo quadrangular, também envernizada, onde assentavam um candeeiro com abajur creme e um cinzeiro de vidro. Quatro quadros com reproduções de pintores célebres fechavam a ornamentação da sala. Nem uma única planta a dar calor ou bom ambiente à sala. Ou melhor: à única pessoa que a utilizava no dia a dia. Até havia espaço para uma pequena mesa de abas em baixo que, assim como estava, para nada servia. Lembrou-se mais que uma vez de a levar pelas escadas e deixar junto ao contentor do lixo doméstico, destinando-a assim a um novo dono que a levasse. Por este e aquele motivo nunca o fez. Ali foi ficando aquele mono.
Do lado corredor veio-lhe um odor forte que o fez levantar-se de imediato da mesa. Nem teve tempo para fazer pausa com o comando. As últimas da variante delta (que era feito da dita “delta plus”?) eram assustadoras, embora a vacinação estivesse avançada. Ou o plano do vice-almirante, pois faltavam as vacinas.
Que se passava então? Muito simples. Cheirou-lhe a esturro. Um cheiro intenso que veio dos lados da cozinha e que não trazia bons augúrios. Confirmação. Já na cozinha, o fumo era mais que muito. Por instantes, hesitou, vencido pelo imprevisto. A seguir, fez o que se impunha. Rodou o botão do fogão para off e respirou fundo. Ninguém lhe mandou dar atenção ao noticiário. Primeiro foi o estafado caso do comendador e o inevitável que já devia ser inevitável há muito, pois cheirava a bolor. Falta de meios era a desculpa dos investigadores. Mas ali havia umas mãozinhas. Depois, foram as percentagens da variante indiana, também conhecida por delta, pois agora não convinha falar das suas origens e assim tinham surgido os alfa, delta e demais que à frente se veria.
Se o algodão não enganava, como se dizia no anúncio, muito menos o cheiro a esturro. Ficou a olhar para o tacho. Era melhor não tirar a tampa. O que se impunha era fechar a porta da cozinha e correr os vidros da pequena marquise. Assim fez. De seguida, abriu a porta da cozinha já com uma ideia em mente que não podia ser outra senão ter que almoçar fora. Tinha várias opções. Uma delas era a da sua eleição. Sentar-se ao balcão de uma cervejaria e pedir um bitoque.
Que raio de ideia a sua! Logo surgira para seu desencanto a ideia absurda de se lembrar duma cervejaria de Lisboa onde, noutros tempos, comera bitoques ao balcão, sem hipótese de levantar um cotovelo, dado o espaço exíguo de que dispunha.
«O Baleal» pensou. «Há quanto tempo…»
Não sabia se o Baleal se tinha transformado num espaço ocupado por uma agência imobiliária. Pensando com uma certa lógica, não podia ser. O espaço dava para várias imobiliárias. Existir ou não existir, dar ou não dar, o que interessava agora é que já estava na rua.
A segunda opção não surgiu porque tinha entrado num restaurante. Afinal ficava muito próximo de casa e não se tinha lembrado. Só deu conta quando, na sua caminhada, o avistou. E lá estavam as mesas com as distâncias exigidas por causa da pandemia. Ah sim. A pandemia. E a necessidade da máscara. Felizmente que automatizara o ato de pôr a mascarilha ou isso.
Ou não? Seria que…?
Levou uma mão ao rosto e suspirou de alívio.
«Pode sentar-se nesta mesa.» Disse o empregado. «A não ser que prefira outra mais ao fundo.»
Provavelmente ficou especado à entrada do restaurante e daí a solicitude do empregado.
«Esta serve. Posso já pedir…?»
«Faz favor. Mas não quer ver a lista?»
Ignorou a lista.
«Pode ser frango assado com batatas fritas.»
«Deseja salada?»
«Não. Pickles, por favor. Demora muito?»
Ainda era da velha guarda.
«Vou num pé e venho noutro. São só cinco minutos se já houver batatas acabadas de fritar. Os frangos assados são a nossa especialidade.»
Já sabia. Portanto, fez uma pergunta escusada.
«Ah sim.»
«E para beber?»
«Uma caneca de cerveja preta.»
Meia hora depois já estava na rua. Não comeu sobremesa. Apenas bebeu café. Como de costume com robusta a mais.
«E agora?» pensou.
Sentia-se um estranho numa terra estranha. Há cinco amos que vivia naquela vila e as pessoas que conhecia eram só de circunstância. Bom dia. Boa tarde. Hoje está um frio dos diabos. Já tomei a segunda dose. E o senhor?
Decidiu voltar a casa. Depois, ou lia um livro ou inventariava a despensa. Com a porra do convid nunca se sabia. Nem uma coisa nem outra. Havia o problema da cozinha. Um tacho com feijoada provavelmente transformada em carvão.
Como de costume não utilizou o elevador. Não que sentisse claustrofobia no interior do elevador. Morava num primeiro andar e entendia que não se justificava o elevador para poupar as pernas em pouco mais que uma dúzia de degraus.
Suspirou de alívio. Afinal a feijoada não estava feita carvão. Mais cinco minutos e o tacho tinha ido para o lixo. Portanto, um pouco de água a fazer companhia à feijoada amaldiçoada e depois logo se via. E já não se justificava ter escancaradas as janelas de correr da marquise. Era princípio de julho, mas fazia frio. As alterações climáticas davam no que davam e agora vinham com aquela da guerra ao plástico e à descarbonização, por exemplo. Que o dissessem os habitantes de Vancouver. Uma coisa nunca vista. Quase cinquenta graus de máxima era obra. Uma anomalia a ter em conta e que seria repetida no futuro. Não era uma hipótese. Era tese e não carecia de demonstração.
Quando se preparava para correr as janelas centrais da marquise viu uma toalha pendurada por duas molas no estendal à sua direita. A toalha era verde esmeralda, comprida e fina. Uma toalha de banho que devia ser pouco eficaz na sua finalidade.
«Finalmente vizinhos novos!»
Como se tal o entusiasmasse. Habituara-se a viver sozinho e a não ter vizinhança no andar. Mas… que bom! Se lhe faltasse o sal podia bater à porta dos vizinhos. Ideia parva. Isso era noutro tempo.
Fechou as janelas de correr da marquise que dava para um pequeno pátio pertencente aos inquilinos do rés-de chão e saiu da cozinha. Sempre ia ler um livro. Meia dúzia de páginas da “Náusea” de Sartre, seguidas da habitual troca de linhas e de um imediato mergulho nos domínios profundos e inquietantes do inconsciente. Não gostava de dormir de tarde por dois motivos. Primeiro, porque acordava com um gosto horrível a papéis de música. Segundo, porque não conseguia dormir de um só sono na noite da sesta da tarde.
Abriu o livro na página 39 e dispôs-se a recomeçar a leitura interrompida algures no tempo, talvez num dia mais tedioso que o costume. Aliás, não era difícil. Quase todos os dias batia o recorde porque tédio era com ele, talvez um pouco menos acentuado que o do Fernando Pessoa no seu melhor quando “queria beber porque não tinha sede”. Tinha uma vantagem. Ou melhor: duas. Raramente bebia fora das refeições e não trocava cartas com a Ofélia. Para falar verdade o tempo das cartas já lá ia e não se recordava da última paixão. Talvez tivesse batido forte, tão forte que achou por bem esquecer. Não estava bem certo. Essa recordação devia estar guardada, melhor dizendo, enjaulada nas profundezas onde o seu guardião era rei e senhor. Nisso do amor era parecido com o Antoine Roquentin que extravasava o desejo sexual na “Patroa”, quando esta também estava em sintonia e talvez até tivesse dado umas quecas na Madeleine, a criada. Até à página 39 o texto do livro não mencionava e assim ficava-se por uma mera suposição.
Pegara no livro pela última vez há talvez três meses e já não estava dentro do enredo. Para tentar compreender melhor as tentativas de Roquentin para conhecer os seus desígnios e tudo o que o rodeava, fatalmente tinha que voltar ao princípio do livro. Aliás, não era a primeira vez que o fazia e numa dessas tentativas até já chegara ao momento passado na biblioteca em que o inquieto Roquentin tinha feito uma pergunta ao Autodidata e este lhe respondera que ainda não tinha chegado a essa letra. Estava, portanto, mergulhado nas descrições de uma enciclopédia, tentando instruir-se por ordem alfabética.
Pôs o marcador de parte e resignou-se a recomeçar a leitura a partir do princípio. Em boa verdade o livro era demasiado profundo para a superficialidade que o bom do homem aparentava ter. Mas, como era mais teimoso que um burro (salvo seja), não era agora que ia desistir. Já de livro em punho embrenhou-se então na leitura do mesmo. Uma leitura lenta a convidar ao sono. E não. Desta vez não o ia vencer. Mas quem o venceu foi o piri-piri que pôs em excesso no frango, o que, a juntar à quantidade de pickles envinagrados que ingeriu lhe estavam a fazer uma sede dos demónios. Talvez uma “bejeca” viesse a calhar. Dias não eram dias e, por vezes, era preciso quebrar as cadeias das rotinas.
Abandonou o livro no cadeirão e encaminhou-se para a cozinha. Se a primeira cerveja não fizesse efeito, ingerir uma segunda não fazia mal. Naquela tarde abria uma exceção. Estava decidido. A pensar nas cervejas, no piri-piri e tudo mais, entrou na cozinha. Mal abriu a porta e deu dois passos esta fechou-se com estrondo e não conseguiu evitar dar um salto.
«Porra que assustei-me mesmo!»
A causa daquela porta ter-se fechado de repente estava à vista. Ia jurar que tinha fechado os vidros de correr da marquise. Afinal a realidade era outra. Agora é que a ia fechar mesmo. E lá estava a toalha verde. Mais que a toalha verde, uma mulher que se prepara para estender no fio de nylon uma peça íntima de roupa.
Ficou parado a olhar. Foi mais que a surpresa do momento. A mulher interrompera o ato a que se propusera e sorria para ele. Tinha um rosto alongado talvez mais pela influência de uns cabelos escuros, lisos e curtos, de risco ao meio. Os olhos também eram escuros e a sua cor de certeza que era natural. Vestia uma blusa vermelha que escondia a cor da pele denunciada pelo tom moreno do rosto. Era simpática, mas ele não estava para simpatias. Não estava para simpatias porque continuava parado, como se fosse uma imagem da televisão em pausa. Ela baixou o olhar e ficou séria. Assim exigia o momento solene em que estendia umas minúsculas cuecas pretas.
«Estou a fazer figura de urso» pensou. «Tenho que dizer algumas palavras.»
Mas dizer o quê?, pois já não valia a pena?
Ela tinha voltado a sorrir para ele. Pôde ainda ver os lábios carnudos, sem batom, antes de recuar e sair do seu campo de visão.
«É efeito do botox, ou são mesmo sumarentos?»
Triste ideia a sua. Com botox ou sem botox, achava-a atraente e tinha perdido uma oportunidade de ouro de chegarem à fala. Mas com ele as coisas eram mesmo assim. Deixava acontecer e perdia de vista o acontecimento.
Lembrou-se então que tinha sede e que ia ao frigorífico para sacar uma cerveja. Talvez duas. Agora, mais do que nunca, tinham que ser duas. Há muito tempo que um mero e ocasional olhar de mulher não o impressionava. Uma mulher bonita que estava a pôr de lado a solidão de todos os dias. Não. Nada disso. O carro estava a deslocar-se muito à frente dos bois. A mulher não tinha mais que trinta anos e ele era um cinquentão amargurado por um passado que não queria recordar. Um passado que até podia não passar de um bluff bem feito pelo seu subconsciente.
Atravessou corredor e voltou à sala com duas cervejas geladas nas mãos. Nunca se habituara a fazer como as personagens dos filmes, tanto homens como mulheres. Mas desta vez ia ser assim. Beber as cervejas sem usar o copo. O modo como alguns desses artistas bebiam por vezes não passava de uma simulação. E era natural simularem que bebiam, pois desempenhavam o seu papel nos filmes e alguns até eram abstémios. Na vida real não sabia como eram. Nem lhe interessava saber. Fofoquices não era com ele. Tempo não lhe faltava, mas preferia sonhar tendo como fundo as paredes da sala.
Agora é que a mesa de abas em baixo ia finalmente desempenhar o seu papel. E se bem o pensou, assim o fez. A seguir, voltou à cozinha. Uns amendoins iam bem com a cerveja. Só não se lembrava onde estavam. Talvez na caixa de verga onde guardava o pão e também os pacotes de batata frita.
Voltou a atravessar o corredor. Já na cozinha não resistiu à tentação de espreitar para a outra marquise cujos extremos faziam um ângulo reto com a sua. Voltou a ver a toalha de banho e as cuecas pretas da desconhecida. As cortinas estavam corridas e não podia divisar o que havia atrás delas.
«São sensuais.»
Sim. As cuecas despertavam desejos. Mas o homem não podia viver de desejos não realizados, como não previa estarem escritos nas linhas invisíveis do futuro. Não que fosse mais negativo para lá do negativo que era. A verdade estava bem à vista.
Na mente conservava agora o sorriso simpático da mulher dos cabelos lisos, curtos. De tal forma estava enleado por aquela recordação recente que deixou ficar-se à entrada da marquise, quem sabe se à espera de um milagre que afinal não era um milagre. De um momento para o outro a mulher podia descerrar as cortinas e aproximar-se do estendal para pendurar outra peça de roupa. Quiçá, um soutien. Ainda pensou em sentar-se num banco à espera de quem não prometeu vir. Logo encolheu os ombros e decidiu que ia voltar ao livro que prometia mais dificuldades. Nem sequer pensou nas cervejas colocadas sobre a mesinha que já tinha as abas levantadas. O melhor era fazer de conta que nada tinha acontecido.
Foi então que ouviu um toque prolongado de campainha.
«Será ela?»
Espreitou pelo óculo e nada concluiu. Lembrou-se que não havia luz no patamar. Os casquilhos onde enroscavam as lâmpadas da escada e a da sua casa tinham ficado queimados há mais de um mês e a senhoria ainda não tomara as devidas providências.
«Quem é?»
«É a vizinha.»
Adeus, ilusão. Reconheceu a voz e não hesitou em abrir a porta. Mas recuou logo ao ver a vizinha de mão estendida. Nada pedia. Apenas lhe mostrava, sorridente, umas cuecas pretas.
«Entre, vizinha. Não há luz no patamar e a minha lâmpada fundiu-se ontem.» Mentiu no que dizia respeito à parte que lhe tocava.
«Estavam à porta, sobre o tapete.» Disse a vizinha.
Estranhou.
«Como assim?»
Agora voltava a fazer figura de parvo. Ao mesmo tempo interrogava-se como fora que ela dera pelas cuecas se não havia luz lá fora.
«Tropecei nelas quando descia as escadas. Estou a ser inconveniente?»
«Claro que não. Mas entre para a sala.»
Assim era outra coisa. Mais descansado, sorriu e puxou uma das cadeiras que estavam encaixadas na mesa oval. 
«Não, obrigada. prefiro ficar de pé.»
Demasiado tarde para se arrepender. A vizinha, mulher nada curiosa, tinha dirigido o olhar precisamente para a mesinha de abas onde estavam as duas cervejas. Perante tal descoberta não tinha alibi para apresentar.
«Estão molhadas.»
«Molhadas?»
«Mas cheiram a lavadas, fique descansado.»
Estendeu um braço para confirmar.
«Pois estão. Quer beber uma cerveja comigo?»
Arrependeu-se logo de ter feito semelhante convite porque se prestava a interpretações dúbias. Mas o que estava dito, estava dito. Não que a mulher fosse algo para se deitar fora. Uma cinquentona a atirar para o forte que ainda mostrava vestígios de uma frescura de quem tinha aproveitado bem as circunstâncias da vida.
«Obrigada. Não bebo álcool.»
«Ah, ainda bem.»
«Ainda bem?»
Agora ela sentia-se vexada. Era mesmo um desajeitado do caraças, pensou.
«Ainda bem que não bebe.»
«Ah!»
Hesitou se devia dizer à mulher que sabia da origem daquelas cuecas. Logo a seguir decidiu-se. Sempre podia ficar a saber alguma coisa sobre a desconhecida que lhe sorrira com simpatia. E também, ao mesmo tempo, afastar as suspeitas que iam naquela cabeça de cata-vento que olhava para toda a sala e até já tinha espreitado pelo corredor.
«A senhora é que pode informar-me sobre a nova vizinha do lado.»
«Qual vizinha?»
«Ah… ainda não sabe.»
«Não me diga que a viu?»
«Essas cuecas devem ser dela. Como vieram parar ao tapete, não faço a mínima ideia. Estavam o estendal. Vi-a, a seguir ao almoço, a pendurá-las. E também uma toalha de banho. Verde.»
«Já estava a estranhar…»
«Não acredita?»
A vizinha parecia estar convicta que havia um rabo de saias escondido algures na casa. As duas cervejas eram mais uma prova a ajudar à festa. Pensou em dizer-lhe para revistar a casa, mas admitiu que era dar confiança a mais àquela alcoviteira.
«Acredito, sim» sorriu, irónica. «Que faço às cuecas?»
«Dispa-as.» Pensou.
«Olhe, deixe ficar.»
«Acha que ela precisa…?»
Onde queria chegar?
Não lhe perguntou e ela despediu-se, não sem antes oferecer os seus préstimos. E aí ele viu um raiozinho de sol a espreitar entre nuvens densas. Nunca se sabia em tempos difíceis de covid.
Ficou só na sala, com as cuecas pretas, ainda molhadas, entre mãos. Estendeu-as nas costas de uma das cadeiras mais solitárias que a sua solidão e hesitou entre recomeçar a ler, beber uma das cervejas pelo gargalo, ou fazer as duas coisas. Sempre que olhava para as cuecas pretas lembrava-se da dona. Não. Não podia estar apaixonado por aquela mulher que lhe lançara apenas um olhar simpático e sorrira. E tinha que acabar de vez com aquele estado de coisas. Coisas estúpidas. Sim, estúpidas. Mas estranhas. Não conseguia ignorar que havia cumplicidade naquele olhar.
Como era natural as cuecas já não estavam a secar no estendal. Bem como a toalha de banho de cor verde esmeralda, a primeira prova cabal de existência de vida atrás daquelas cortinas, agora corridas.
«Tem que ser!»
Pegou nas cuecas e abriu a porta da rua.
«Estupidez a minha.» Admitiu.
Voltou à cozinha e dirigiu-se à despensa, donde trouxe um saco de plástico. Assim estava melhor. Não ia aparecer à nova vizinha com as minúsculas cuecas pretas na mão.
Premiu o botão da campainha e não obteve deste a mínima reação. Estava desligado. Então bateu à porta com a noz dos dedos. Esta moveu-se.
«Está aberta. Se fosse em Lisboa já a tinham assaltado.»
«Faz favor…»
Aguardou pela resposta que não veio. Hesitou entre entrar e voltar para trás. Deu um passo. Depois outro. A escuridão era total. Às apalpadelas foi avançando para o interior da casa. Aquilo que julgava ser um corredor parecia fazer um “L”.
«Está alguém em casa?»
Ia a dizer “trago umas cuecas pretas”, mas não disse. Prestava-se a más interpretações.
Não obteve resposta. Ou melhor: a resposta foi um estrondo com a porta da rua a fechar-se. Admitiu que alguém tinha aberto uma janela. Esse alguém só podia ser a desconhecida. E o que menos desejava agora era brincar ao gato e ao rato.
Começou a ver um pouco de luz ao fundo e continuou a avançar.
«Deve ser a cozinha. De certeza que liga com a marquise.» Pensou.
Tinha razão. Fazendo ângulo reto com a porta da cozinha havia outra porta que dava para uma sala. E esta tinha uma janela que comunicava com a marquise. Seria o segundo local a explorar depois de entrar na cozinha e dirigir-se à marquise. Era mais pequena que a sua. E ali estava a toalha de banho verde esmeralda sobre um pequeno móvel encostado à parede. Das cuecas nem um vestígio.
«Pudera. Tenho-as eu.»
As da desconhecida, claro. E deixou o saco de plástico sobre a toalha. Pronto, não havia vivalma na casa e estava entregue a mercadoria.
«O tecido é mesmo fino. Tal como imaginei.»
Os vidros centrais da marquise deixavam passar o ar. Daí a porta da casa ter-se fechado por causa da corrente de ar. Tudo tinha explicação. Sabia disso.
Quanto à toalha, notou que ainda estava húmida.
«Não a deixou secar na totalidade, porquê?»
E que motivo a levou a deixar as cuecas pretas, ainda molhadas, sobre o tapete junto à porta? 
Aquilo cheirava-lhe a convite.
A ideia que lhe passou pela cabeça era de sonho. Oxalá se concretizasse. Mas tinha que apressar-se. Não queria ser apanhado em casa alheia. Podia dar mau resultado.
O instinto levou-o ainda à sala contígua à cozinha.
«Vejamos. Não há nada de especial. A não ser…»
Sobre um aparador, que estava encostado à parece oposta à outra onde se rasgava a janela, havia vários bibelots dispersos, mas o que lhe chamou a atenção foi a moldura com uma fotografia de meio corpo. Também não lhe passou despercebido o retângulo de pó que ficou no aparador quando pegou na moldura.
«Mas é ela!»
Curiosamente vestia uma blusa vermelha igual à que viu quando ela se preparava para prender no estendal com duas molas as cuecas pretas.
«O que mais gostava agora era ver-te!» exclamou.
E não é que a viu?
Oxalá ele não tivesse adormecido embalado pelo livro do Sartre, o que provava, em última análise, que havia sempre muita coisa estranha que ficava por explicar.

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