quarta-feira, 24 de maio de 2023

Largo do Chiado

 


Está um dia frio, cinzento. Chove com alguma intensidade. É um daqueles dias que convidam a não fazer nada. A tentação de aquecer-se ao borralho assume-se como uma forte prioridade, mas Mário detesta borralhos e, muito menos, sentar-se no sofá e cruzar as pernas para olhar em frente, fixamente, para a televisão ou para a parede cor de marfim acima dela até esvaziar o pensamento num ponto imaterial. Não. Mais do que nunca precisa de concentrar-se em ideias novas. A situação do momento a isso obriga. Mas, para variar, continua a pensar na desgraça que caiu sobre o seu país. Amordaçado na dívida que veio do céu como se de uma estrela cadente ruim se tratasse. Como aconteceu com o país, já sabe. Não foi feitiço algum. A desgraça está bem definida quanto à origem, embora uns tantos continuem a assobiar para o lado como se estivessem alheios à triste realidade e outros tantos batam palmas e ergam o punho vigorosamente, pressentindo que o seu dia está a chegar. Por momentos sentiu-se um animal encurralado, como acontecia quando encostava a porta da cozinha e o Loris logo miava, aflito.

«Pronto, vai lá. Já me esquecia que és claustrofóbico.»
E o gato saía logo da cozinha, de cauda erguida e orelhas arrebitadas.
«Teatral» pensou. «Como se nada tivesse acontecido...»
«Agora ele vai gozar comigo por causa daquela história maldita do pombo rameloso.» Deve ter pensado o Loris.
De facto não sabia mesmo o que fazer. Era fim de semana. As vendas na net estavam paradas. Tinha algumas ideias novas para anúncios, mas faltava-lhe vontade de as concretizar.
«Ah!, já sei...»
Os dias cinzentos em duplicado, porque também se sentia cinzento, prestavam-se a cultivar a sua paixão que já vinha de menino. Marinho? Não devia exagerar. Marinho(quase Mário). Foi quando se recordou que, um dia, viu o seu amigo Sérgio, usando o vidro da janela para marcar sobre a folha de papel almaço os vértices dos futuros retângulos onde iria colocar os selos da segunda coleção, que descobriu o que fazer naquela tarde de tédio.
Dirigiu-se até ao fundo do corredor e abriu a última gaveta do móvel castanho, esguio.
«Cá estão.»
De facto estavam dentro do sobrescrito transparente que trouxera no domingo passado da feira de selos do Mercado da Ribeira. Selos que destinava para as horas de ócio. Quase trezentos para classificar. Era obra.
E começou a separar na mesa dinamarquesa os selos por antiguidade.
«Uhm... não vou conseguir nada por mais que lhe chame a atenção.»
O Loris enganou-se porque o dono levantou-se para ir buscar o catálogo e foi então que olhou para ele.
«Queres comer?»
«Não quero eu outra coisa.»
«Nunca mais perco a mania de falar com este gato que só me responde com miados. Por vezes até parece dizer não. Mas então diz sempre não.»
«Anda lá, gordo.»
E foi até à cozinha deitar no prato a ração para o gato.
Já com os selos alinhados e o catálogo a jeito, puxou do caderno e começou o processo de catalogação. Só depois ia alterar a base de dados e, finalmente, arrumar os selos nos sobrescritos numerados.
Foi então que viu uma aranha branca, minúscula. Veio do lado esquerdo, do nada e atravessou a mesa na diagonal, em direção aos selos.
Diziam que uma aranha branca dava boa sorte a quem a via. E muito mais boa sorte quanto mais pequena ela fosse.
«Perdi-a de vista.» Sussurrou, agastado.
Se a aranha vinha do nada, o seu destino era o nada. Se fosse um sonho só podia ser algo relacionado com o passado. Nos sonhos, tudo o que se deslocava da esquerda para a direita estava ligado ao passado.
«Selos antigos?» pensou.  
Encolheu os ombros e continuou o trabalho dos dias de ócio, quando o tempo estava cinzento e também quando se sentia mais cinzento que o cinzento do tempo.
Nessa noite deitou-se tarde porque teve que acabar a tarefa. O Loris era sempre um perigo iminente a considerar. Dormia naquela sala e quando a noite ia alta também saltava alto, não muito alto no caso da mesa dinamarquesa. E ai dos selos que ficassem para completar o trabalho no dia seguinte. Mordia-os. Não escapava um.
Apesar da noitada levantou-se cedo. Saiu para o supermercado depois da higiene habitual e de se vestir, claro.
Antes, um pormenor. O vidrão. Tinha umas garrafas guardadas num saco há um tempo imenso.
«Não passa de hoje.»
O gato roçou-se pelas pernas e miou.
«Então e eu?»
«Já venho.»
Na altura caía uma chuva de molha tolos.
Perto do vidrão estacou. Acabava de ver algo que até podia ser importante.
«Já vou ver o que é.»
Deitou as garrafas no vidrão e puxou para si o objeto que tinha visto à distância.
«Quem deitou fora uma coisa tão bonita?»
Observou melhor o objeto em questão. Um quadro com os caixilhos cheios de pó. De certeza que fora colocado há pouco. O pó não tinha sequer vestígios de pingos de água.
«Vou levá-lo para casa.»
Não se importava que lhe chamassem o rapa caixotes do lixo. Por sinal aquilo não era um caixote do lixo. Sim, um vidrão.
Já em casa pôs o quadro sobre a mesa dinamarquesa, foi buscar um pano e começou a limpeza que se impunha. Em pouco tempo tinha na sua frente um quadro novo. A estampa, que representava o largo do Chiado e nela sobressaíam, além dos prédios e do poeta Chiado, dois eléctricos da Carris que quase se cruzavam, estava assinada e numerada por um tal Eduardo Alarcão. Provavelmente era uma serigrafia.
«Quem se lembrou de deitar fora uma coisa destas?»
Encostou o quadro à parede e ligou o computador. Tinha curiosidade em saber que coisa tinha apanhado na rua.

("Foram 30 anos a pintar ruas, vielas, eléctricos, casas de Lisboa e não só, numa obra que se estende por mais de 500 quadros. Uma pintura muito personalizada e facilmente reconhecida que encantou todos aqueles que gostam de arte, durante os anos oitenta e noventa. Destacaram-se ao longo deste percurso artístico dois períodos: o naivismo e o expressionismo. Duas fases tão distintas como se tratasse de dois artistas igualmente diferentes. O primeiro, minucioso, colorido, substancialmente distorcido, onde Lisboa é reencontrada num fado pintado, compreende os finais dos anos 70 até aos princípios dos anos 90.



Esta serigrafia é uma das mais bonitas e expressivas serigrafias produzidas, referentes à primeira fase da pintura de Eduardo Alarcão.
O "Largo do Chiado", o nome dado a esta serigrafia, é apresentado por dois eléctricos que tanto marcaram a sua obra. De tamanho generoso, 70 x 100 cm, representa Lisboa, bonita e bela, como a imaginamos.")

«Bem me enganou a aranha! Isto não deve ser uma serigrafia, pois tem dimensões diferentes, bem abaixo dos 70 x 100. Mas então...?, e o outro sinal?»

Se não era uma serigrafia, então do que se tratava?
Provavelmente uma fotocópia.
Resolveu pôr-se em ação.
Contactou por e-mail a galeria de arte donde retirara as informações sobre o autor e a obra e foi informado que, em virtude da procura da serigrafia exceder a oferta, foi feita outra serigrafia de dimensões inferiores. Portanto, se a primeira serigrafia tinha um valor comercial compreendido entre quinhentos e mil euros, a segunda oscilaria por entre valores bem mais baixos.
Lembrou-se que a zona dos selos para onde se dirigira a aranha era representada por selos referentes a pinturas. Coincidência? Inclinava-se mais para uma partida da aranha.

Dias mais tarde, quando caminhava num jardim cujo pavimento estava pejado de folhas que se tinham cansado de viver, sentiu o pé deslizar por um monte de folhas. Conseguiu equilibrar-se e não deixou de olhar para trás com o fim de identificar a causa de uma escorregadela que podia ter originado maus resultados.
Reforço!
Tinha escorregado num poio, provavelmente de cão. Um reforço de boa sorte que podia ter dado maus resultados.
Mas a sorte também podia ser de cão... 
A descoberta daquela serigrafia, porquê?
Talvez só para a suspender na parede acima da televisão num poupa senhorios e assim poder deliciar-se na minúcia dos pormenores existentes na obra do pintor.
Mário queria entender que mistério havia naquele quadro e não conseguia.
E se escondia o original no seu interior, atrás da serigrafia?
Sonha alto, Mário. Voa. Mas não caias do alto.
Meses antes, em pleno verão, enquanto esperava por uma pessoa amiga no largo do Chiado para jantarem num restaurante de nome Buenos Aires ou coisa parecida, fotografou os mesmos prédios que o pintor deixou na aguarela. Antes da aranha, uma espécie de premonição.
Claro que, apesar do fiasco, não deitou fora o quadro. Ali estava, por cima da televisão, talvez para o ver com mais frequência. Quanto aos eléctricos, que se deslocavam da esquerda para a direita, continuavam parados, como parado estava há muito o destino de Mário.

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