segunda-feira, 8 de maio de 2023

Café Chiado

 

Tem pena de não poder recomeçar a vida no preciso momento do desvio. Voltar a localizar-se numa situação crucial, como foi a decisão que tomou quando rompeu a relação com a Manuela. Certamente muitas coisas não teriam acontecido e muitas outras coisas teriam acontecido.
Não interessa a estação onde se toma o comboio para levar ao destino certo. Interessa, sim, o que se passa dentro do comboio. É aí que se desenvolve a trama, que se decide a mudança de agulha no momento certo. Mas se o automático atua de forma aleatória, então não há mais nada a fazer, nem sequer resulta se alguém fica caído no chão a ver o comboio afastar-se, até se perder de vista.
Voltando ao momento em que Mário tomou a decisão de desistir da Natália, o narrador imagina uma nova situação em alternativa à que poderia ter sido a mais lógica e não foi porque Mário recuou, talvez porque a Natália era menor e as coisas podiam complicar-se. O ponto de paragem aconteceu no dia dos anos do Sérgio. Supondo que nesse dia esteve em casa do amigo, outro jogo se teria desenvolvido no tabuleiro de um só rei à procura da rainha ausente. Mas a Natália nunca seria essa rainha, apesar do romance que estava no prelo. Esqueceu-a depressa. Era jovem e estava ainda muito longe do vermelho crepuscular, de abandonar o corpo grosseiro que pediu emprestado para passar por este planeta azul (só de nome) em que não foi feliz. E o narrador, que julga conhecer, melhor do que ninguém, o seu amigo Mário, dirá que este nunca será feliz, a não ser que o verdadeiro corpo, que não tem idade, tome o comando e o deixe ser igual ao que foi nas entrelinhas da obra em construção. Que sonhe, sonhe sempre. Voe, voe sempre mesmo que sinta as asas quebradas. Que ame, ame sempre, mesmo que o seu amor não seja retribuído. Que seja ele, mas não o outro ele. Que dê cartas mesmo que não tenha a sorte consigo. Que volte a dar cartas até ganhar o jogo ou não tenha a mínima hipótese. Que viva, no seu corpo ou noutro, mas sempre no seu corpo. Na eternidade dos seus corpos, embora sentindo a mágoa de ter esquecido sempre o muito que já viveu. Chamem-lhe homem eterno. Clonado de sucessivas clonagens. Lunático de um paradigma de homem obcecado pelo desejo de voltar a viver. Chamem-lhe homem demolido e mandem-lhe rosas para a tumba. Cuspam em cima dos sonhos. Aticem os cães. Chamem-lhe nomes, mas nunca lhe digam que já viveu tudo porque ele vai continuar a sua travessia em busca de novos desafios!

De novo os tempos de estudo. Já não eram as terríveis Matemáticas Gerais, nem a Química Inorgânica. Não interessava o que quer que fosse.
Habitualmente estudava nos cafés. O café Chiado era um deles. Já tinha saído da pensão "Aninhas-Morte-Lenta" e não sabia quantas mais vezes o gato de miados roufenhos tinha caído da grade da varanda, depois de um sonho mais agitado.
Alugou um quarto na Cecílio de Sousa, às portas da Faculdade e foi nesse tempo que se sentiu mais livre do que nunca e também mais só. Não conseguia estudar no quarto, apesar deste ter boas condições. Existia uma mesa redonda ampla e também o silêncio importante para uma concentração plena. Mas era um engano, pois só conseguia concentrar-se dez, quinze minutos. Jantava muitas vezes na Baixa, no Come e Bebe, o tal restaurante dos bifes-sola com um ovo a cavalo e depois tomava o caminho do café Chiado. Rua do Carmo, rua Garrett. Sentia logo à entrada o ruído de fundo das conversas, muitas delas acaloradas. Sentia também o ruído das vozes silenciadas pela meditação em qualquer coisa que fosse. Principalmente o silêncio das vozes dos estudantes seus homónimos constituía o alimento fundamental para a concentração que procurava. E era ali, naquele café com história feita, que se sentia como um peixe na água e mais junto da imensidão das folhas de estudo que alimentavam a saída para uma nova etapa do seu futuro.
Como de costume instalou-se numa das mesas mais ao fundo. Pediu uma bica e um copo de água e depois pegou nas folhas e começou a estudar, abstraindo-se do ruído de fundo e mergulhando no seu mundo. Leitura silenciosa, às vezes em sussurro. Escrita repetida de definições na sebenta. Desvios momentâneos para situações alheias aos estudos. Retorno ao ambiente morno do café. As discussões acaloradas sobre o futebol. O cochichar, receoso, sobre política. Os pares de namorados que davam as mãos e se contemplavam, bebendo, mutuamente, a paixão que deixavam transparecer. E depois o inevitável retorno às folhas.
Um indivíduo de rosto pálido que ocupava uma mesa mais abaixo servia também de interlúdio. Quando levantava os olhos das folhas dava de caras com ele. Muito sério, com o cotovelo esquerdo apoiado na mesa, a palma da mão debaixo do queixo e o indicador colado à face, parecia pensativo.
Mas em que pensava?
Parecia triste. Mas... agora ria, para dentro, em silêncio, parecendo ter entrado em convulsões parecidas com as da epilepsia. Aquele riso era estranho. Mais parecia que soluçava. E pronto. De novo o olhar triste, perdido no vazio. E assim ficava, mergulhado no seu mundo. 
De súbito, sentiu um clik. Pôs as folhas de parte e começou a escrever na sebenta, levado por um impulso forte.


A mesa do café. As folhas. As cadeiras ocupadas pelos outros e as vazias. O ambiente pesado com intenso odor a tabaco. Todos mergulhados em conversas acaloradas, algumas supérfluas. As palavras idealistas daqueles que queriam endireitar o mundo. Os esquecidos deles próprios. Todos estavam consigo. Acontecia, por vezes, não dar por eles e esquecer-se das folhas e dos compromissos, encher-se de tédio e tentar ler nas paredes, enegrecidas pelo fumo expelido pelos viciados, sinais de um visionário que "gostava de beber porque não tinha sede". Puro engano. Afinal esses sinais tinham origem noutro café. Vinham até ele, porquê? Debruçava-se de novo sobre as folhas e recomeçava a viagem pelos domínios de um mundo agreste de símbolos, sentindo, por vezes, que caminhava às escuras por um labirinto sem saída e sem retorno.
Algumas vezes olhava para fora pelas poucas vigias de que dispunha, mas logo o egoísmo da transcendência obrigava-o a mergulhar no mundo dos símbolos, tentando ultrapassar, para dentro, o reino do inconsciente num mergulho às cegas, sem pontos de contacto. Queria fugir e a destreza da noite arrastava-o para mais um inevitável beco sem saída, para o meio do caos que trazia, às vezes, à superfície, a resposta certa, sempre que os vigilantes do consciente adormeciam.


A mesa do café. As folhas. O resto. Todos voltavam a estar consigo. Ciclos e ciclos de ideias que iam e vinham. Milénios e milénios de frações de vida que se consumiam na clepsidra sobre a mesa e ele sempre só, acompanhado pelos outros de maneira a estar só. Tédio. Solidão. Utopia. Idealismo.
Até que um dia teve um sonho. Sonhou com ela. Viu-a. Atravessava as vigias do "outro mundo" e caminhava para ele. Trazia o sorriso da vida. Era o sorriso da vida. Mas não podia dizer que caía por terra o egoísmo da transcendência porque não tinha a certeza se era ela. E assim, os olhos perdiam-se noutros olhos. E depois noutros. E nunca a tinha. Para além da mesa do café, das folhas, do fumo, do homem que ria e chorava no seu mundo às escuras, do resto, estava só, muito só.
O dia ia amanhecer difuso. As pessoas passariam em torvelinho, indiferentes, rumo a destinos pessoais. Era assim que as coisas funcionavam, menos para ele que não tinha destino certo. Perdia-se entre a multidão que passava, para cá e para lá. Uma multidão anónima e ele, anónimo, deixando-se arrastar num flamante passeio de conceção.
Gostava de sair ao acaso, sem pisar as pedras húmidas da calçada, quando não se avistava ninguém. Então, soltava-se o pensamento até aos níveis superiores, bem longe das leis materialistas, à procura da mulher única. Uma busca incessante, desesperada.
Uma eterna procura.


Ficou a ler as palavras que acabara de escrever e concluiu que não lhe restava mais nada senão mergulhar outra vez nas folhas e esperar por novos interlúdios.
Por volta das onze chegou o tempo de beber um Vigor frio, com pouco açúcar. Tinha um sabor especial àquela hora e dava-lhe mais um pouco de energia. Assim, ganhou um novo alento e continuou o seu trabalho. De novo as fórmulas, as revisões na sebenta, a repetição, em sussurro, das definições.
Perdeu-se no tempo. O homem das duas caras já não estava presente. Gostava de o seguir para saber que vida era aquela que tinha.
Meia-noite. Mais minuto, menos minuto, chegava a hora do regresso a casa. Ou subia a Garrett e depois a rua da Misericórdia, ou descia até ao Rossio, Restauradores e subia a calçada íngreme ao lado da linha do elevador da Glória, por vários motivos: porque era novo, porque poupava dois tostões, porque o elevador já não funcionava àquela hora.
Já na rua D. Pedro V chegava o momento mais alto da solidão. Não se via vivalma. Apenas uma ou outra prostituta, à espera de clientes.
«Filho, queres alguma coisa de mim?»
Fez um gesto de recusa e continuou a subir a rua.
«Faço-te um desconto, jeitoso.»
«Estou teso.»
«Tens cara de bom rapaz. Até sou gaja para fiar-te...»
«Obrigado, minha filha, mas hoje não dá.»
«Não me digas que és daqueles...?»
Limitou-se a sorrir e seguiu o seu caminho que o levava a casa. Ela ficou a resmungar. Pouco lhe interessava o que pensava. O que mais precisava era de chegar ao quarto, deitar-se e adormecer depressa para assim esquecer os problemas que nada tinham com o estudo. A Natália ainda estava no seu pensamento e isso não era bom. Nada bom. Nem para ele, nem para ela.
Ah! Porque foi naquela noite à Feira Popular?
Sentia-se quase em casa quando chegou às proximidades da Briosa. Associava a Briosa a um bom bife com fatias de fiambre, um ovo a cavalo, batatas fritas, arroz, salada de alface e depois um pudim flun. Tudo por doze escudos, incluindo uma imperial. Uma refeição opípara, claro que à escala da escassez do dinheiro, era uma coisa que não podia fazer muitas vezes. Com sete mil e quinhentos já comia um bife à Come e Bebe, mais rijo que sola, que também era contemplado com um ovo a cavalo e batatas fritas num óleo bem queimado para sentir ainda mais saudades da Briosa.
Sempre que passava pela Briosa lembrava-me de uma história pitoresca e sorria. Acontecia que um dos três zelosos funcionários da secção de Geologia, que forneciam aos estudantes os tabuleiros com as rochas, fósseis e também os batatoides da Cristalografia, homem sisudo e sempre mal humorado, sabia-se lá porquê, tornara-se num assíduo frequentador dos tintos à gaiola que eram servidos logo à entrada da dita cuja Briosa. Por esse motivo era conhecido na secção e arredores, por Briozoário, curiosamente o nome de um fóssil que aparecia, com frequência, nos tabuleiros que eram requisitados.
Tinha cara de Briozoário?
Claro que não. Mas era um bom cliente e apreciador do tinto bebido à gaiola. Quem o quisesse ver, quando se procurava, a título de requisição de um tabuleiro, certamente era com a barriga encostada ao balcão da tasca que funcionava como antecâmara do restaurante. Fazia uma cara de poucos amigos e atravessava a rua para o lado da Faculdade.
Na zona ficavam duas pastelarias que os estudantes frequentavam: a Cister e a Alsaciana. Pessoalmente gostava mais da segunda, por ser recatada. Aí o ambiente era muito mais silencioso que no café Chiado. Quando o dinheiro escasseava havia outra opção. Os bancos do Jardim Botânica, um jardim com espécies botânicas raras e de grande cotação a nível internacional, eram hipótese a considerar quando o estado do tempo o permitia. Contudo, prestava-se a mais momentos de distração, em virtude da assídua presença feminina que se dirigira do Gineceu para o jardim. Não sabia muito bem como era o esse tal Gineceu, um espaço situado num edifício na ala norte em frente à segunda entrada mais importante da Faculdade, só destinado ao mulherio e onde perto do mesmo se localizava a Biblioteca.
Nem sequer uma vez estudou na Associação. Muito menos tomou uma refeição porque não serviam vinho. Usou-a só para jogar a avançado os famosos matraquilhos ou para ter dois dedos de conversa com os colegas. Quanto ao jogo dos matraquilhos, considerava-se um exímio e quase imbatível avançado, sobretudo quando o companheiro à defesa se portava à altura das circunstâncias. Depois, com a bola na zona dos três avançados não havia defesa possível. Era demasiado rápido e raramente falhava.
Finalmente a Cecílio de Sousa. Mal caísse na cama só acordava na manhã seguinte, fresco que nem uma alface e pronto para mais um dia de estudo ou doutra coisa qualquer que não fosse estudo.

Mais um dia igual aos outros. Espreguiçou-se e saltou da cama para fora. Depois da higiene matinal entrou na casa de jantar, onde tomou o pequeno almoço. Café com leite e pão com manteiga. Longe iam os tempos do requinte da pensão da rua de S. Bento que dispunha de mesas individuais. Os hóspedes eram goeses ou indianos. Lembrava-se de uma festa que fizeram e para a qual foi convidado. Estava tudo tão picante que passou por debaixo da mesa.
Não havendo mais nada a fazer, já que tinha tomado o pequeno almoço, voltou ao quarto e sentou-se em cima da cama, entretanto já feita. Ficou a olhar para a mesa redonda, fez uma careta de desagrado e resolveu sair, já que o silêncio era mau conselheiro para o estudo. Porta fora com ele e rua Cecílio de Sousa acima. Deu de caras com a escadaria em calcário recifal de Pero Pinheiro com Rudistas do Cretácico. Foi invadido pela chamada nostalgia das ruínas ao pensar na Análise 1 e no antipático professor que no futuro lhe faria a oral. Coçou a cabeça, indeciso.
«Quantos são hoje? Que horas são...»
Tempestade ao largo. Caminhada ao acaso desta vez pelas ruas estreitas do Bairro Alto. Descida até à calçada do Combro. Paragem junto ao elevador da Bica, num alfarrabista, aonde não ia há muito tempo, para comprar livros da Argonauta. Também sonhava com a antecipação do futuro. Aliás, pertencia ao futuro. Julgava que era eterno, mas estaria para sempre agarrado ao passado.
Ah!, este orgulho estúpido que o consome, que lhe queima as entranhas, que não o deixa evoluir. A náusea de estoirar com tudo o que é presente, dá-lhe vontade de rir. Não faz sentido ter ao mesmo tempo dois estados de alma antagónicos. Mas a verdade é que os tem.
Afinal o que quer um homem que diz ser eterno?
Talvez abrir passagem para outro lado do tempo, recuar e voltar outra vez ao tempo que foi o começo do tempo dos seus verdes anos. E ficar por ali para sempre porque foi o tempo mais feliz da sua vida.

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