quinta-feira, 11 de maio de 2023

O emprego na rua dos Douradores

 

No banco de José Duro


O regresso à vida civil foi complicado em duas vertentes. Tinha o curso para acabar e estava desempregado. Portanto, nunca podia ter sido um bom começo. Em relação ao curso, os maus hábitos adquiridos na tropa dificultaram-me a adaptação a um ritmo de vida que deixei quatro anos antes. Nessa altura costumava estudar nos cafés. Apesar do barulho de fundo conseguia concentrar-me menos mal. O meu café de preferência, antes de começar a cumprir o serviço militar era o "Chiado". Agora, era contraproducente continuar num tal esquema para tentar recuperar o hábito perdido. Estudar em cafés, nem pensar. Não conseguia concentrar-me mais que dez minutos. Além do mais irritava-me com facilidade. Talvez conseguisse estudar num ambiente de silêncio. Experimentei no quarto e desisti de imediato ao concluir que ainda era pior porque o sono atormentava-me.
Então que fazer?
Quando entrei para a tropa, sem dar por tal congelei e tive enormes dificuldades em continuar os estudos. Bem me dizia um amigo da Faculdade de Ciências que desesperava e não conseguia estudar por mais que tentasse. Desistiu de estudar depois de ser chamado para um emprego de seguros.
«Maldita sorte. Ainda por cima lutávamos por uma causa perdida. Há quem não pense isso, mas adiante. O que me interessa é que agora estou fora de toda essa merda e ainda não perdi a esperança de acabar a porra do curso. Ou eu não me chame Ludovino. Quando estabilizar mais, vou estudar à noite.»
«Há aulas práticas à noite?» perguntei.
«Ainda não. Ouvi dizer que vai haver.»
Mas esse meu colega e amigo tinha outras razões mais fortes para não conseguir estudar, pois regressara da guerra colonial um pouco pirado. Tinha insónias. Quando não as tinha, acordava a meio da noite alagado em suor e tendo como ruído de fundo o toar dos canhões e o sibilar as balas. Ou o silêncio da noite no mato que antecedia qualquer coisa de ruim. Ou as lutas corpo a corpo, tão reais que imaginava até estar a viver os momentos trágicos que tinha vivido meses atrás. Enfim, ainda havia momentos em que julgava viver no inferno.
«Mário, não vais conseguir tão depressa encontrar o ritmo. Tenta aos poucos.»
«Porra de vida.»
«E agora vê lá o que me aconteceu. Uma vez um turra fraturou-me um maxilar com uma coronhada, mas dei cabo dele. Não me perguntes o estado em que o deixei. Ainda hoje fico muito perturbado quando me lembro da cena. Tiveste muita sorte em ficar por cá, Mário.»
«Bendito o último lugar do Valdo no curso.»
«Que tem a ver esse gajo com a sorte que tiveste de não bateres com os costados no inferno do Ultramar?»
«Ele era filho do major que tratava das mobilizações, entendes? Não foi para a guerra e, sendo assim, mais ninguém do curso foi mobilizado. Avançaram os sargentos-ajudantes que foram de imediato promovidos a alferes.»
«Agora percebo. Foste um sortudo!»
Sortudo duas vezes…
Fui promovido a tenente na reserva. Longe ia o agoiro de ser chamado de novo, como aconteceu ao malogrado capitão de Infantaria que era médico e estoirou com a porra dos miolos porque lhe tinham estoirado o sonho da sua vida. O meu problema agora era encontrar um emprego de acordo com as minhas habilitações literárias. E estava a ser difícil. Os meses passavam e só me traziam angústia.
A propósito de ter tido sorte duas vezes, um mês depois de passar à disponibilidade encontrei o Bastos Carneiro, o alferes que chefiava a secretaria. E o que me foi contar!
«Podia ter sobrado para ti.»
«Como assim?»
A escala de oficial de dia era uma espécie de um-dó-li-tá por sermos poucos. Capitães, praticamente não havia porque estavam sempre de abalada. Bem como tenentes. Restavam os alferes e os aspirantes com mais antiguidade. Ao todo não éramos mais que quatro.
«Lembras-te do quarteleiro?»
«Perfeitamente. Era um indivíduo muito calmo e sisudo. Bom profissional.»
«Pois era.»
O quarteleiro, aquela pessoa calma e que tinha sido escolhido a dedo para desempenhar a sua missão, um dia saiu inopinadamente dos carretos, matou à queima-roupa dois soldados e sequestrou o oficial de dia, refugiando-se depois na arrecadação das armas.
Acabou por ser abatido como um cão raivoso pelos seus homónimos de graduação.
«Coisa incrível, Bastos Carneiro!»
«Não sei o que se passou naquela cabeça. Coisa boa não foi para fazer o que fez. Levou o segredo para o túmulo.»
«Obra do maldito 666!» teria concluído o sargento Quezada.
Que o desgraçado do quarteleiro teve um mau fim, isso não nego. Agora atribuir as causas ao Mafarrico, é já outra história sem dimensões para caber aqui. Não pretendo brincar com o fogo e muito menos imaginar as labaredas, para os que acreditam, onde deve estar a arder o pobre quarteleiro que não fazia mal a uma mosca e que um dia teve um sonho ruim que substituiu a realidade do seu dia a dia discreto.
«Podia ter calhado a mim estar de oficial de dia!»
«É verdade. Bem podes agradecer aos santinhos pela sorte que tiveste.»
 O meu colega de curso que se chamava Ludovino foi a primeira pessoa a falar-me do Fel de José Duro, o poeta do infortúnio que tratava a morte por tu.
«Lembras-te, Mário quando te pedi um dos teus poemas para tentar engatar uma sopeira.»
«É verdade. E como ficou isso?»
«Resultou. Comi-a num vão de escada...» 
«E depois descartaste-te.» 
«Claro.»
O encontro ocasional com o meu colega foi positivo. A partir desse dia comecei a esforçar-me mais e os níveis de concentração subiram. Mas o pior é que não conseguia encontrar um emprego. Diziam-me sempre que tinha habilitações a mais. Pois era. Então já sabia o que devia fazer. Modifiquei o currículo. Antigo sétimo ano.
Na passagem do ano desejei que tudo se modificasse para melhor e parece que o desejo deu resultado. Felizmente que em fevereiro acendeu-se uma luz para os lados da rua dos Douradores. O emprego tinha a ver com as instituições bancárias. Era um departamento de assistência onde se processavam os abonos de família e prestações complementares. Como se fosse ontem, lembro-me da manhã em que me apresentei ao serviço. Estava um sol radioso e não havia o mínimo sinal de vento. Como era meu hábito nos encontros marcados e coisas similares, cheguei meia hora mais cedo.
O edifício fazia esquina para um largo donde se podia ver a Pollux. A entrada fazia-se pela rua dos Douradores. Logo no rés-do-chão deparei com um indivíduo que ocupava uma secretária e que entendi tratar-se do porteiro do prédio. Fui interpelado por ele e expliquei ao que vinha.
«É já no primeiro andar, mas só abre às nove.»
«Então, espero aqui. Isto se não se importa.»
«Como queira» disse ele. «Mas toque à campainha lá em cima. Pode ser que o Cintra já tenha chegado.»
«O Cintra...?»
Ia para perguntar, mas calei-me.
«Outro funcionário como eu.» Pensei.
Agradeci e subi as escadas. Dentro em pouco estava a premir o botão da campainha. Não esperei muito tempo.
«É o colega novo?»
«Pois sou. Mário Fonseca. Muito prazer.»
Estendi a mão que ele apertou cordialmente.
«Sou o Cintra Abrantes. Mas entre, colega. A casa é sua.»
O indivíduo pareceu-me simpático. Estava muito bem vestido com um fato completo (incluindo colete) azul escuro. Sapatos pretos, clássicos, a brilhar. Era magro, baixo, usava óculos e tinha cara de garrafão. Devia ter mais de sessenta anos, pelo que o considerei velho.
Tentei descobrir que cargo exercia. Um vulgar terceiro escriturário ou mais que isso. Pelo modo de falar não devia ter muitas habilitações.
«Um enigma.»
«Como?»
«Desculpe. Falei alto sem querer. Queria... queria dizer que não sei o que me espera...»
Agora parecia o Fernando Pessoa a falar do mistério do amanhã na véspera de ser internado com uma cólica hepática fatal no hospital de S. Luís dos Franceses.»
«Não se preocupe, meu amigo. Como é a sua graça?»
«Chamo-me Mário. Mário Fonseca.»
«Muito prazer. E eu sou o Cintra. Mas é a razão seguinte...»
Razão seguinte?
«Como ia a dizer, não se preocupe. A rapaziada daqui é fixe. Vai gostar disto. Mesmo muito. O doutor é um bocado chato, mas tem bom fundo. Não dê muita confiança à Eduarda. Posso tratá-lo por tu?»
«Acho bem. Quem é essa a Eduarda?»
«A mulher da limpeza.»
«Ah, sim. Obrigado. Nunca esqueço um bom conselho.»
Afinal que cargo desempenhava aquele homem?
«Mas vamos entrando. Aqui é o gabinete do chefe.»
«O doutor.»
«Pois.»
Passámos para uma sala grande, toda preenchida até ao fundo por secretárias com o tampo em vidro onde certamente estaria uma à minha espera. O Cintra pareceu adivinhar os meus pensamentos.
«Esta é a tua secretária. Estás em frente ao guichet. Prepara-te que vais ser o mais sacrificado. Sempre que ouvires o besouro terás que atender, mesmo que não seja para ti.»
«Foi de propósito?»
«Claro que não foi. O colega que vais substituir ocupava esta secretária.»
«Ok.»
Começaram a aparecer os outros colegas. O Cintra apresentou-mos um a um, sempre de uma forma monocórdica.
«É o Mário Fonseca. Vem substituir o Quaresma...»
Invariavelmente disseram frases parecidas com estas:
«O ambiente é bom. Vai gostar. A rapaziada é fixe. Somos uma família.»
A chamada “rapaziada” era muito diversificada no que dizia respeito à idade, indo de uma escala de dezoito até um pouco além dos cinquenta. Curiosamente todos atiravam bocas ao Cintra. Para grande surpresa minha tive que admitir que o meu interlocutor, muito bem vestido no seu fato azul escuro, impecavelmente passado a ferro, não passava de um simples contínuo. Chefe do pessoal menor, pois claro. E o pessoal menor era constituído por ele e a tal Eduarda a quem não devia dar muita confiança.
Por volta das dez horas chegou o doutor. Era um homem de semblante muito carregado, o que me deixou uma certa apreensão.
«O trabalho que vai fazer nada tem a ver com as habilitações que apresentou no seu currículo, embora possa sentir grande facilidade em desempenhar as suas funções. E não se admire do seu primeiro mês aqui. É norma da casa os caloiros desempenharem as tarefas do Cintra. O chamado “cuspo e dedo”, como eles dizem. E pouco mais.»
«Cuspo e dedo?» perguntei, cheio de dúvidas.
«Muito simples. Vai colar selos nas cartas e entregar nos correios. Dar também a entrada e a saída da correspondência. Isto é: fazer o registo. Há dois livros próprios.»
Não estava a gostar da graça.
«Isto só no primeiro mês?»
«Sim. Ao mesmo tempo, nos momentos livres, junta-se ao colega que trabalha, em acumulação, com o “Português do Atlântico”.»
«Que será o meu futuro trabalho.»
«Exato. Agora vamos tomar o café e aproveita para falar com os seus colegas de trabalho. Dou-lhe um conselho. Não dê muitas largas ao Cintra. É boa pessoa, mas abusa um pouco.»
Ia perguntar se o Cintra abusava do álcool, mas fiquei-me por um meio sorriso. Entendia onde o doutor queria chegar.
«Certo, certo, doutor Barata. E também devo ter cuidado com a empregada da limpeza, não é?»
«Quem lhe disse isso?»
«O Cintra.»
«Não ligue. Eles andam sempre às turras um com o outro. Vamos ao café?»
Disse que sim com a cabeça. Ato contínuo fez-me um gesto para o seguir. Chefe à frente, subordinado atrás, como se impunha. Empurrou a porta envidraçada com força para vencer a resistência da mola e segurou-a para eu passar. Não foram precisos muitos passos para estar em frente à mesa comprida onde esperavam, com um sorriso amistoso, os meus colegas de trabalho.
«É um local de convívio e também serve para reuniões de trabalho.»
Fiquei a saber que havia nove terceiros escriturários, um segundo e dois primeiros, um deles responsável pelo nosso sector e o outro, contabilista. Esqueci-me de dizer que havia duas casas de banho. Uma era para a datilógrafa e para a empregada de limpeza e a outra para os homens. Situavam-se à esquerda, logo a seguir à porta que comunicava com a sala de convívio. Dum e doutro lado, bem como na nossa sala havia armários metálicos encostados à parede.
«Quem faz o café é a Eduarda, a nossa empregada auxiliar.» Disse.
E em voz baixa:
«Cuidado! Ela é atiradiça...»
Bicho pegajoso, pensei. Então o Cintra não estava isento de razão. Fiquei também com a ideia que o doutor era elitista.
O intervalo para o café serviu para conhecer melhor os colegas que começaram com brincadeiras de gozo dirigidas para o Cintra.
«Conta lá ao Mário quando estiveste na tropa a prestar serviço na Companhia do arre macho
Virei-me para o Cintra.
«Arre macho?»
«Bom... não te engasgues.» Ironizou o Germano, colocando o indicador sob o narigão do contínuo.
«Descansa o bico.»
O homem fez-se muito vermelho.
«É a razão seguinte» disse, virando-se para mim. «Estes gajos fazem-me a cabeça em água...»
Não saiu nenhuma história da boca do bom do Cintra, mas o Germano, que tratava dos assuntos do BNU, resolveu contar por ele. Entretanto ouviu-se o doutor a tossir. Já tinha saído da sala há uns segundos e agora voltava.
«Vamos. Já sabes, Mário» esclareceu o Vicente. «Quando o doutor tosse é o mesmo que um sinal de chamada. Todos para a sala, meninos.»
«Parece que estás a chamar as putas dum bordel.» Disse o Leonel.
Sorri.
«Vamos então.»
Já estava a ocupar a secretária quando o Cintra apareceu com ar de pessoa entendida. Trazia um maço de cartas consigo que pôs sobre a secretária.«Olha, Mário. Vou-te explicar como se faz esta coisada. É a razão seguinte. Pegas no livro de registos, escreves a data e lanças tal como foi feito no dia anterior. Mas antes carimbas todos os documentos. Os próprios envelopes são carimbados, não te esqueças.»
«Certíssimo, chefe.»
«É pá... Desculpa estar a ensinar-te uma coisa que já sabes.»
«Claro que não sei, Cintra. Explica-me melhor.»
Todo inchado, continuou a explicar-me a mecânica do meu trabalho que tinha uma dificuldade extrema.
«Primeiro vais alterar a data do carimbo...»
Ouviu-se o besouro. Alguém estava entrando na pequena sala quadrada por onde os beneficiários chegavam ao guichet.
«Faz favor de dizer, senhor...»
Grande Cintra!
Colocou o cotovelo esquerdo sobre o apoio junto ao vidro, encostou um dos ouvidos e foi ouvindo, aparentemente atento, o que o beneficiário tinha a dizer de sua justiça. Não disse uma palavra. Parecia pensativo, tentando encontrar uma resposta para a dúvida posta pelo outro. Mas, fracasso total.
«Ó Alfredo. É para ti. Atende este benevisiário
Depois virou-se para o benevisiário, metendo a mão direita na anca, ao mesmo tempo que exibia o seu ar de sapiência número um.
«Sabe, meu amigo... É a razão seguinte» disse ao beneficiário. «Mas o meu colega vai explicar-lhe melhor.»
Claro que não explicou nada. Nadinha. Afastou-se, rumando para a sua secretária. Decididamente chegara ao fim a lição sobre a tarefa que eu ia desempenhar.
«Olha para ele» disse o meu colega do lado. «O nosso homem está a fazer boquinhas. Hoje começou cedo.»
Era isso. Estava a fazer mil caretas.
«E ainda não o viste depois das quatro!»
Parece que o homem metia-se nos copos. Afinal adivinhei quando o “cataloguei” como tendo cara de garrafão.
Bebia por gosto ou por desgosto?
Próximo da hora do almoço já me sentia pessoa da casa. Aquele emprego não se coadunava bem o que eu desejava. O ordenado não era famoso e mal dava para pagar a renda da casa. Estava numa fase de transição que servia de ponte para voos mais altos ainda no segredo dos sonhos e dos deuses. Chegara ao fim o pesadelo do desemprego. Havia uma prioridade e ia atirar-me de cabeça. A hipótese fortalecida de acabar do curso que me daria de imediato acesso a novos horizontes. Se tivesse força de vontade, tempo não me faltava. Inclusivamente a gaveta do meio era boa conselheira, pensei. Já tinha visto o meu colega do lado utilizar a sua. Tinha camuflado na gaveta um livro que ia lendo e folheando.
O próprio Dinis aconselhou-me:
«Faz o mesmo que eu. Traz o teu livro e estuda quando não tiveres nada para fazer. Estou a tirar um curso de Contabilidade e quando chegar o momento pisgo-me imediatamente daqui.»
«Vou seguir o teu conselho. Obrigado por me teres posto à-vontade.»
A ideia era ótima.
«Olha, queres ir almoçar connosco?»
«Obrigado.»
Não concluí. O Sobral, homem de aspeto bonacheirão, que a pedido de um amigo comum me tinha facilitado o acesso ao emprego, estava na minha frente.
«Mário...»
«Olá, Sobral. Passa-se alguma coisa?»
«Nada de especial. Queres ir almoçar comigo e com o doutor?»
«O Dinis estava a convidar-me neste momento.»
«Deixa para amanhã o almoço com o Dinis e os outros gajos. É de bom tom aceitares, acredita. Foi o doutor quem fez a sugestão.» Informou.
«Prepara-te para andar um pouco.»
Esses tempos que corriam, para quem tinha deixado recentemente o serviço militar, não me metiam qualquer medo quanto a fazer exercício físico.
«Não tem problema que seja longe. Sou magro e a tropa ofereceu-me o único bem de louvar. Fisicamente estou impecável. Já corri dezassete quilómetros sem parar.»
«Não me digas, pá?»
«Com fato de macaco, Mauser e botas.»
«Ótimo. Então, vamos. Ele já está à espera.»
Seguimos pela rua de Santa Justa, a dois passos do emprego. Olhei de soslaio para o Sobral.
«Afinal a caminhada é curta.» Disse este, em voz baixa.
Depois de atravessarmos a rua do Ouro entrámos no elevador que nos levou até ao Carmo.
«Hoje não vamos à Bicaense.» Disse o doutor. «O passeio é mais curto.»
A Bicaense situava-se para os lados da Calçada do Combro e, segundo o Sobral, o bife á Bicaense era de comer e chorar por mais. Para lá chegarmos tínhamos ainda que descer as escadas ao lado do elevador da Bica.
«Então, doutor? Vamos ao enfarta brutos?» perguntou o Sobral.
«Hoje há cozido.» Afirmou este.
«É verdade. É dia de cozido.»
«Não tem relutância em irmos a um tasco, Mário?»
«Claro que não, doutor. Até porque não estou propriamente a nadar em dinheiro.»
«Eles fazem bem o cozido e não é caro.»
O Sobral voltou a olhar para mim de soslaio e torceu o nariz. Entendi pouco depois. O tasco era mesmo um tasco. Mesas com oleados manhosos, manchados de tinto, comida fora dos pratos e no chão, pessoas em fatos de macaco sebentos, bancos de correr para mesas compridas, bancos normais, tipo pontapé nas costas, para mesas de quatro pessoas.
Ocupámos uma dessas mesas e comemos o cozido. Nem bom, nem mau. Antes pelo contrário.
Veio-me à memória o tempo de Faculdade, antes de entrar para a tropa, quando eu e o Ludovino íamos comer à taberna do Serafim. Feijoadas, cozidos, bacalhau com grão, polvo cozido, peixe-espada frito. Quando pedia um bife com um ovo a cavalo o prato custava mais um escudo. Nada famoso. Mesmo assim um pouco melhor que os bifes de sola do Come e Bebe.
Grande desilusão! Quando cheguei a casa e despi as calças, dei conta que estas estavam sujas na zona do rabo. O barato saiu-me caro, mas foi um investimento que fiz ao ter por companhia o meu chefe. Quanto ao mês da experiência, feita no meio de cartas, carimbos, livros de registos de entrada e saída de correspondência, idas diárias aos correios e uma ou outra saída na companhia do Cintra, com entradas obrigatórias nas tascas para bebermos um copo de tinto, pareceu-me demorar uma eternidade a passar. Valeu começar a aprender os meandros relacionados com os assuntos dos beneficiários, ocupação muito mais interessante que aquela tarefa rotineira levada ao extremo do cuspo e dedo e pouco mais.
O Cintra voltou à sua tarefa e pude confirmar que deitava a língua de fora e para o lado quando carimbava um documento ou pressionava um envelope acabado de fechar.
Entrei então em contacto direto com a classe mais arrogante do mundo. Os funcionários bancários, talvez porque se sentiam guardadores do dinheiro dos outros, porque o tratavam por tu, falavam de cima para baixo para os pobres dos meus colegas.
Comigo não pegou. Dei-lhes sempre a volta e nunca perdoei uma entrada de documentos fora de prazo.
«Mas eu tenho direito! Desconto como todos os meus colegas.»
«Tinha, meu amigo. Lamento. O seu pedido de subsídio entrou fora de prazo. Nada a fazer.»
«Deve haver um engano. Eu respeitei o prazo!»
«O que conta não é data da carta, mas a do carimbo dos CTT. Veja bem a data, caro senhor.»
«Tem razão. Não pode ao menos fechar os olhos?»
«Só para pestanejar.»
Era bom para a vista o ato de pestanejar.
«Boa, Mário. Esses gajos precisam de baixar a garimpa...»
«Limito-me a cumprir os regulamentos.» Comentei com o Dinis.
Voltando ao mês experimental na tarefa do cuspo e dedo, nunca imaginei que ia descobrir um tesouro. Os selos. A paixão de sempre e talvez para sempre. Nunca juntei tantos selos durante os dezoito meses em que estive ao serviço da Caixa de Abono de Família.
Mas como? Muito simples. No exterior, precisamente na sala que dava acesso ao guichet havia um armário que continha, entre outros documentos, os sobrescritos enviados pelos beneficiários, todos com selos obliterados, registados e não registados. Havia um senão. Só se podia ter acesso aos selos seis meses passados a contar da data do envio. Não havia problema. Retirava os sobrescritos com mais de seis meses e zumba... recortava os mesmos. Eram tantos que, um dia, enchi a banheira de selos colados ao papel e fiz horas extraordinárias forçadas. 
Voltando a falar no Cintra, fui sempre um amigo de exceção para ele. Ao contrário dos outros, nunca brinquei com ele de forma a roçar o ofensivo. Alinhei em certas brincadeiras que não achei contundentes e essa conduta de que me orgulhei de ter criou nele uma imagem que me lisonjeou muito.
Houve um caso caricato em que intervim de forma involuntária e que o fez vacilar em relação à confiança que depositava em mim.
Aconteceu por volta das dez horas. Nessa manhã vinha de uma aula prática na Faculdade de Ciências, na altura ainda situada na rua da Escola Politécnica, quando fui recebido por uma comissão de três colegas: o Leonel, o Pedro e o Dinis.
«Estamos a preparar uma partida ao Cintra. Nada de ofensivo.» Disse o Dinis.
«E que querem da minha pessoa?»
«Ele tem muita confiança em ti. É importante que entregues este bilhete e fales com ele.»
«Vejam lá o que vão fazer ao desgraçado do homem!»
Pôs-me a mão no ombro.
«Acredita. Não é nada de mal. Só uma pequena brincadeira.»
«Pronto. Vou entregar-lhe o bilhete. Ai de vocês...»
Entrei na sala e dei os bons dias a todos. Notei logo um sorriso de cumplicidade. O próprio responsável pela secção fez-me um gesto de apoio. Ocupei o meu lugar na secretária e fingi observar os processos novos que tinha no cesto. De seguida, olhei de relance para os lados do Cintra.
Tão cedo a fazer boquinhas e a pôr a língua ao lado sempre que carimbava um papel?
O homem era a inocência em pessoa. Tive pena.
Vou? Não vou?
Talvez não fosse nada de mal.
Levantei-me e fui ter com ele.
«Olha o meu amigo Mário! Hoje temos entrega de ordens de pagamento. Queres ir comigo?»
«É dia grande para ti. Se o doutor deixar...»
«Já falei com o doutor e tu vais comigo depois do almoço.»
«E logo depois do almoço. Mas vou jogar à defesa, Cintra. Não tenho a tua pedalada.»
Referia-me aos copos de tinto que o esperavam nas muitas capelinhas e teria que o acompanhar em alguns.
«É a razão seguinte... tu bebes o que quiseres.»
«Claro, claro. Mas agora ouve uma coisa. Tenho um bilhete para ti. Estava na minha secretária.»
Fez um ar de pessoa importante.
«Dá cá. Sabes o que é?»
«Como havia de saber? Cheguei mesmo agora das aulas práticas e vi o bilhete. Tu é que deves saber. Ouve lá, meu malandreco, andas a engatar alguma contínua?»
«Bem, é a razão seguinte...»
«Pronto. A razão seguinte é uma dúvida. Quem será? Ou melhor: o que será, será...»
«Troca essa coisada por miúdos.»
«Deixa. Vê lá o que vais fazer depois de leres o bilhete.»
Coçou o queixo e mostrou um ar saudoso.
«É pá, tenho o moral muito em baixo. Não pode ser o que julgas. Isso foi há muito tempo.»
«Há quanto...?»
Limitou-se a encolher os ombros.
Voltei para o meu lugar. Os outros sustinham o riso. Até a dactilógrafa, introvertida por natureza, tinha suspendido o matraquear na velhinha Azerty.
Passei a observar a vítima. Olhou e voltou a olhar o bilhete e notei nele um ar de interrogação. Muita dúvida ia naquela cabeça. Parecia não estar a acreditar no que lia. Pois não. Colocou o bilhete sobre a secretária. Desânimo na assembleia.
Mas a curiosidade acabou por sair vencedora. Pegou no telefone e discou o número. Estabeleceu-se um diálogo “de cá para lá e de lá para cá” que logicamente não ouvi. Só podia avaliar o evoluir da conversação através da expressão do rosto e dos gestos largos, pondo de parte as caretas nervosas e as tais inevitáveis boquinhas.
Começo: afabilidade. E a seguir: semblante sério e, segundos depois, perplexidade.
Que se passava?
A resposta à minha dúvida foi um brusco pousar do telefonar e um ar de poucos amigos na minha direção. Tudo se passou muito rapidamente.
E então?
Tinha ligado para o Jardim Zoológico e pretendia falar com o doutor Leão.
A avaliar pelo semblante carregado e pelo aumento das boquinhas a resposta que veio do lado de lá não deve ter sido muito agradável.
Tive alguma dificuldade em convencê-lo que me limitara a entregar-lhe o maldito do bilhete. O homem estava mesmo zangado comigo. Tão zangado que nessa tarde não quis que o acompanhasse na entrega das ordens de pagamento. Mas cedo fizemos as pazes.
Poucos dias depois aconteceu mais uma cena caricata, desta vez sem ter por personagem central o desgraçado do Cintra. Alguém, que ia no momento a passar em frente à casa de banho dos homens, ouviu uma voz dizer, em tom de alívio:
«Adeus, almoço.»
E seguiu-se a descarga do autoclismo. O aliviado era o Sobral. O seu adeus, almoço esteve nas bocas do mundo durante vários dias, com tal frequência que o seu autor afinou, deveras agastado.
Aliás, passavam-se coisas estranhas naquela casa de banho. Digamos que havia visões eventualmente chocantes, do interior para o exterior.
Ao lado da sanita havia uma pequena janela que dava para as traseiras do prédio, donde se podia ver tudo o que se passava do outro lado.
Uma vez, quando me dirigia para a sala das reuniões, estranhei ver a porta da casa de banho aberto e, no seu interior, o Caldeira, espreitando à janela.
«O que se passa?» perguntei, surpreendido.
Não chegou a voltar-se para trás, limitando-se a fazer um sinal para me aproximar.
«Olha só...»
Percebi logo o que se passava nas traseiras do prédio em frente que também davam para o pátio. No rés-do-chão.
«Mas o que é isto?»
Olhou para mim e riu-se.
«Espera pelo melhor...»
Uma mulher tinha o traseiro assente sobre o tampo da sanita da casa de banho. Não entendia como se tinha descuidado ao deixar aberta a janela. Talvez que o calor fosse o responsável. Talvez um ato de provocação.
«Ela sabe...?»
«Não é a primeira vez. Olha...»
«Que está a fazer agora a gaja?»
«A dedilhar nas cordas da guitarra.»
Entendi. Dedilhava a preceito, talvez com prazer.
«Esta agora!»
Uns minutos depois, levantou-se, mostrando o rabo branco durante uns segundos. Puxou as cuecas para cima, olhou na nossa direção e só depois fechou a janela.
«Foi mesmo de propósito! A cabra anda a provocar-me.» Disse ele.
«Talvez tenha sido. Aproveita. Vou andando. Daqui a pouco ainda temos o doutor à perna.»
O tempo que passei na Caixa de Abono foi fértil em pequenas histórias como esta, algo caricatas, na maior parte das quais o Cintra descansa o bico foi o principal visado, continuando a ser o simpático bonacheirão borracho, com muito fastio no que dizia respeito à alimentação, mas emérito bebedor de tinto à gaiola. No que dizia respeito à componente profissional talvez tivesse uma pontinha de inveja dos colegas pelos seus conhecimentos básicos e a situação hierárquica no emprego não lhe permitirem resolver os problemas dos benevisiários, mas não conseguiu evitar o desejo de assomar ao guichet, sempre que podia, para ouvir atentamente as suas reclamações, sempre de mão à cintura e a não dar qualquer seguimento ao assunto, senão perguntar:
«Disse que é do Fonsecas e Burnay? Eu já chamo o meu colega que o vai atender. Compreende...?, é a razão seguinte. Eu podia explicar-lhe, mas ele explica melhor essa coisada toda porque está mais dentro do assunto. É a razão seguinte: trata-se do seu banco.»
Quanto às partidas que lhe faziam, eram frequentes e caía sempre como um patinho.
O doutor não era má pessoa. Continuou a tossir antes de aparecer na sala principal, dando tempo a que todo o pessoal voltasse aos lugares e pegasse num processo à mão.
Tinha um comportamento peculiar no que dizia respeito aos ofícios que chegavam às suas mãos para assinar. Podiam estar corretos no que dizia respeito à resposta a dar e ao texto explicativo, mas voltavam sempre para trás da primeira vez porque, segundo ele, faltava sempre qualquer coisa ou as palavras empregadas não eram como queria. A justificação era sempre a mesma, nada pedagógica.
«Deve dar uma volta ao texto, Mário...»
A princípio irritei-me. Com o tempo habituei-me "às voltas" e até descobri uma técnica eficaz quase a cem por cento para as ditas cujas. Deixava ficar o ofício durante dois ou três dias no cesto dos pendentes e voltava a enviá-lo ao doutor, sem a mínima alteração. 
«Já dei a volta, doutor.»
«Vamos lá a ver como ficou.»
E pouco depois:
«Agora está bem.»
Remédio santo! O homem assinava e eu respirava fundo ao libertar-me de mais um processo pronto a ser arquivado.
Depois do serviço, por volta das seis da tarde, íamos quase todos os dias para o lado da rua dos Bacalhoeiros beber um licor de pêssego e conversar um pouco sobre a nossa vida. A seguir a um pêssego vinha outro, até que, por volta das sete, cada um seguia para o seu destino. Aquela aparente perda de tempo tinha uma parte boa para mim, pois permitia evitar o metropolitano na hora de ponta, menos a abarrotar de gente com cheirinho a sovaco que não conhecia o sabão.
 No primeiro verão foi com grande pena que não tive férias. Para mal dos meus pecados, o trabalho aumentou porque acumulei o serviço de um colega que foi de férias.

O julho e o agosto foram meses quentes, não só em temperatura, como também em emoções. O fantasma do passado bateu-me mais uma vez à porta, agora de forma repentina.
Tinha passado o fim-de-semana em Mafra. Não me lembro o que aconteceu nesses sábado e domingo. Talvez nada. O habitual. Uma oportunidade para retemperar as forças.
Era segunda-feira e levantei-me cedo, pois tinha de ir para Lisboa. Esperava-me o trabalho. Depois dos habituais cuidados higiénicos, decidi não tomar o pequeno-almoço porque fazia-se tarde. Peguei no saco de viagem, desci as escadas e vi-me na rua. Estava uma manhã morna e a temperatura prometia subir acima dos valores que se consideravam normais para a época. Hesitei no caminho a seguir. A gare ficava a dois passos de casa, mas decidi ir pelo passeio, que marginava a avenida, em direção ao largo do convento. O autocarro fazia uma paragem nas imediações antes de partir com destino a Lisboa, seguindo pela estrada nacional que serpenteava e voltava a serpentear até à vila da Malveira. Depois, as curvas eram raras.
Mas fui apanhar o autocarro ao largo do convento, porquê?
Muito simples. Na gare havia um cheio intenso a gasóleo e gases queimados que incomodavam o mais comum dos mortais. E como a manhã estava agradável, não hesitei em tomar essa decisão.
Contra o que era hábito não esperei muito tempo. O autocarro chegou à hora, quase cheio e lamentei no momento não ter optado por esperar na garagem. Entrei com um pouco de sorte ao conseguir um lugar no banco que se destinava, noutros tempos, à fiscalização. Não sei se havia um segundo autocarro. O certo é que ficou muita gente em terra.
Enquanto pensava na sorte que tive, o autocarro tomou o rumo de Lisboa.
Mesmo em frente ao convento, ouvi alguém gritar:
«Mário!»
«Sou eu.» Pensei.
Estava longe, muito longe, do que ia acontecer nos segundos a seguir. Quem chamava por mim? Pura coincidência. Não devia ser comigo. Havia mais Mários, claro. Mas uma mulher voltou-se para trás a reforçar a coincidência e lançou-me um olhar espantado. A tristeza na expressão do olhar, o rosto que estava a ver não me deixou dúvidas.
«Manuela!» sussurrei.
Emocionei-me. Não queria acreditar que era ela! A mulher única que perdi exclusivamente por minha culpa.

Mal te conhecia quando nos encontrámos neste jardim onde estou hoje a recordar. Foi muito estranho o que aconteceu. Tudo parou para ouvir o silêncio das nossas vozes e o diálogo ensurdecedor dos pensamentos entrelaçados. O agitar suave das folhas das árvores, embaladas pela brisa morna daquela tarde. O chilrear dos pardais. Os ruídos dos motores dos carros, tão em dissonância com o resto. Tudo chega aos meus ouvidos com uma intensidade e clareza tal que não sei explicar. Parece que está a acontecer de novo. Custa a acreditar, mas até sinto o odor intenso a café, oriundo dos lados da fábrica de torrefação, que existia na altura e que foi desativada. Na altura considerava o odor enjoativo, mas agora chegava a mim como um perfume daqueles que embriagam. Chega às minhas narinas pela força das feromonas que tudo reforçam. Foi neste ambiente de silêncio e alto astral que o nosso amor aconteceu. Natural­mente, como naturalmente acontecem todas as coisas simples e belas.
Lembras-te?, o encontro estava combinado nas cartas que trocámos. Tudo muito certo. Sem uma falha. Tu saías depois do almoço para te encontrares comigo e eu estava nas imediações da casa dos teus familiares. Foi assim que combinámos e assim aconteceu. Esperei um pouco. Meia hora? Talvez sim, talvez não. Mas para quem tinha esperado, pacientemente, mais que um ano, nada significava meia hora.
Vinhas com a tua prima e o namorado. Obstáculo, pensei. Obstáculo que podia ultrapassar sem qualquer problema. Com tempo. Bastavam alguns minutos e não um momento, porque estava invisível, encostado à parede, a ver-te passar. Assim, não me viste quando passaste por mim. De certa maneira até foi bom. Pude olhar-te longamente. Fixar o teu rosto. A expressão triste do olhar. Eras muito bonita. Graciosa no andar. E o teu rosto e pernas bronzeados por um mês de praia intensa, davam-te um outro encanto e frescura. Fiz um exame completo e pus-me a pensar:
«Grande obstáculo!»
Pretendentes não deviam faltar-te. Ias mandar-me passear. Ou talvez não. Eu também tinha atributos. Se perderas tempo a ler as minhas cartas enviadas e se tinhas sempre respondido a elas, por alguma razão fora. Parecia estar a viver os primeiros tempos em que te conheci, quando te seguia a uma distância prudente, como mandava na altura a força da minha timidez.
E que podia fazer?
Mais nada senão continuar a seguir-te, descendo por ruas muito estreitas e empedradas em paralelepípedos de granito já um tanto gastos. O Rossio, local importante porque foi aí que te vi pela primeira vez, não estava nos nossos planos. Um desvio para a direita e uma pequena subida. À esquerda, a velha fábrica de lanifícios. À direita, o jardim da Corredoura. Era o fim da caminhada.
Sentaram-se num banco. Fiquei, a cerca de vinte metros de distância, indeciso, a ganhar coragem para avançar. Felizmente olhaste para o meu lado e viste-me logo. Então levantaste-te e sorriste. E eu sorri também, ainda um pouco embaraçado. Certamente ia trocar os pés pelas mãos, tal o nervosismo que se apossara de mim.
O tempo parou. Ficámos especados, a olhar um para o outro.
«Está a avaliar-me.» Pensei.
Impunha-se então fazer alguma coisa. Por exemplo, avançar, dar-te as boas tardes e ficar gago a cem por cento. Felizmente que vieste ao meu encontro. Senti medo de falhar, mas, ao mesmo tempo, fui invadido por uma enorme alegria interior. Foi essa alegria que me fez ir também ao teu encontro, até que ficámos frente a frente. Sorrimos de novo um para o outro e eu fiquei a sonhar. Tu, não sei. Acredito que sim, porque houve uma paragem no tempo antes de um de nós quebrar o encanto do silêncio. Era a primeira vez que estávamos juntos.
Apertámos as mãos, trocando algumas palavras de circunstância. Pois era. Faltava começar.
Mas como se começava?
Alvitrei que nos sentássemos num banco do jardim. E assim foi. Eu fiquei à tua direita e claro que tu à minha esquerda. O nosso banco do jardim. A alegria de falarmos a sós. A tua voz de alentejana que parecia cantar em cada palavra que dizias. O silêncio cúmplice de estarmos juntos num mundo feito à nossa medida, só para os dois. A magia do odor a café que excitava as feromonas em que nos entrelaçávamos.
Tinhas a pele a cair nas pernas. Disseste-me que estiveste na praia em julho. Uma justificação lógica.
Foram talvez as primeiras palavras que trocámos e num dos teus primeiros gestos tiraste das pernas morenas um ou outro resto de pele morta.
Que interessava a pele morta se estava a nascer nesse momento o nosso sonho azul?
As primeiras palavras trocadas de certeza que foram banais, mas aconteceu outro diálogo que ultrapassou as expectativas: o diálogo dos olhares trocados que não esqueci nem nunca esquecerei.
Depois, como foi?
Muito simples: eu entrei no teu mundo e tu também entraste no meu. Jurámos que esse mundo seria dos dois para sempre e de mais ninguém.
Uma ilusão aquele amanhã que foi ontem? 

Apanhado de surpresa, não reagi. Julgava que estava a viver em Évora, e, talvez por motivo, nem sequer esbocei uma simples reação. Dizer, por exemplo:
«Estou aqui, Manuela.»
Aqui. E ela perto de mim. O seu olhar denunciara grande surpresa e ansiedade porque, muito provavelmente, também não conseguia reagir.
A situação era delicada. A vida não estava a ser um mar de rosas. Precariedade de emprego, falta de dinheiro, desencanto. Apenas uma coisa a favor. O fim do curso estava próximo. Até lá, tinha que engolir os chamados sapos vivos ao aceitar um emprego nada consentâneo com as minhas habilitações académicas.
Fiquei sem saber o que fazer. Pela mente passavam, rápidas, mil e uma imagens negativas do passado que não conseguia evitar. Estranhamente os nossos destinos voltavam a cruzar-se, agora numa situação muito diferente. Estávamos tão perto e, ao mesmo tempo, tão longe!
Devia levantar-me e cumprimentá-la?
Optei por continuar ficar sentado no banco da fiscalização, enquanto o autocarro seguia o seu caminho habitual, encurtando cada vez mais a distância que nos separava de Lisboa. Logo se veria à chegada. Agora restava-me recordar todos os momentos bons que tivemos.
As ligações de curta duração foram sempre as mais marcantes. Se tivesse acontecido doutra maneira…
Não voltou a olhar para trás. Naquela hora infinita que durou a viagem imensas coisas passaram-me pela cabeça e sintetizaram-se em palavras-chave como amor, saudade, desencanto. No fundo ainda ardia a chama que julgava ter-se extinto. A sua presença trazia recordações que há muito não me vinham à memória.
E agora que podia fazer?
O mais natural era ser casada. Até podia ter filhos e uma situação amorosa estável. Mas não conseguia imaginar que vivia com outro homem. Cinismo o meu que tinha todas as culpas pela nossa relação ter fracassado.
O autocarro já descia a avenida da Liberdade. As grandes decisões aproximavam-se. Não era o rapaz da camisola azul que ela conheceu e amou. Mas o amor estava latente, como se tivesse acontecido ontem a nossa ligação.
Um mistério sem explicação lógica, o amor pela Manuela. Depois de um acontecimento que me marcou pela negativa, passei a trilhar caminhos inimagináveis que marcaram, cada vez mais, a distância do nosso afastamento. A vida que me estava destinada acabava de dar uma volta dramática ao descobrir que a Manuela continuava bem junto do meu coração, tendo emergido do subconsciente com a força própria dos grandes amores.
E ela?
Só podia responder por mim, embora houvesse um dado novo que considerava muito importante para os dois, já que Alguém acima de nós tinha decidido que ia acontecer um novo encontro entre duas almas condenadas por um karma impiedoso.
Pensei, pensei. Aquele encontro fortuito não podia passar ao lado. Morrer na praia, nunca!
O autocarro chegou aos Restauradores.
Levantou-se. Aguardei uns segundos e imitei-a. Deixei que saísse. A seguir apressei-me também a sair. Ouvi um resmungo do condutor por ter demorado mais do que devia.
Depois de uma ligeira indecisão, comecei a segui-la a uma distância prudente e pensei nos velhos tempos das perseguições.
Para onde ia?
Claro que para o emprego.
Mas onde trabalhava?
Espera, Mário. Tem calma que já vais saber. Não te precipites que a curiosidade não é só tua. Ela também quer saber até onde pode ir a tua audácia. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra. A minha parte pessimista lançou-me uma advertência que noutros tempos me obrigaria a rever a situação. Agora é diferente. Talvez esteja disposto a ir até aos limites, a correr riscos.
Parou. Deve pressentido a minha proximidade.
Aproximava-se o momento da verdade. Ainda não sabia quem ia atacar a presa. Se o meu real, se o fictício. Mas tinha quase a certeza que ia mesmo atacar.
Consultei o relógio. Em primeira análise ia chegar atrasado ao emprego. E se tudo corresse bem até admitia a hipótese de faltar.
«Olá, Manuela!»
Mas não foi assim que aconteceu. Desisti de lutar mal saí do autocarro.
Éramos de terras muito afastadas, mas os nossos destinos estiveram sempre à distância de estender o braço. Num banco de um jardim em que a vi, sentada, pela primeira vez e noutro banco de um jardim que a namorei. Num banco de um autocarro e noutro banco de crédito a reencontrei e num edifício que atendia os funcionários desse mesmo banco, e dos outros, a vi pela última vez. E havia tantos jardins, autocarros, edifícios, seres humanos!
As nossas vidas correram sempre em caminhos paralelos. Tantos destinos à espera e nenhum para o rapaz da camisola azul e para a rapariga do vestido branco.
As coincidências não ficaram por ali...
Como de costume, naquele fim de manhã dos últimos dias de agosto o besouro tocou muitas vezes a anunciar a entrada dos bancários, reformados e viúvas de bancários que iam entregar documentos, como certidões e requerimentos, e também esclarecer-se sobre as dúvidas que tinham. Inconscientemente olhava sempre a ver quem entrava no cubículo e levantava-me para atender. Se o assunto não era comigo, encaminhava a pessoa para o colega que tratava desse assunto.
Numa dessas vezes em que o besouro tocou tive uma grande surpresa. Contava com tudo menos o que estava a acontecer. Fiquei estarrecido.
Não podia ser. Era um sonho. Pior que um sonho. Um pesadelo.
Ela! 
Baixei de imediato a cabeça porque não podia fazer a outra coisa que era escorregar pela secretária abaixo. Mas os nossos olhares cruzaram-se. 
Incrível! A Manuela vinha entregar um documento.
Numa grande cidade como era Lisboa seria possível acontecerem coisas iguais a esta?
Falei em tom baixo ao Dinis e pedi para ser ele a atender pois estava a concluir um trabalho. Coisa importante entre mãos. Esquivei-te dela, claro. Do meu grande amor. Aliás, já não era a primeira vez que me comportava como um cobarde.
Só quando saiu é que fui ver os documentos que estavam na gaveta. Uma certidão de nascimento e um requerimento para pedir o subsídio de casamento!
Um ano e um mês mais tarde tive finalmente as minhas férias que aproveitei para preparar-me para a última cadeira do curso. Ao mesmo tempo, demiti-me do emprego.
Nunca mais vi a Manuela. Ainda hoje recordo com saudade os poucos momentos felizes que passámos.
Não consigo entender porque aconteceram aqueles dois encontros se cada um já tinha o seu rumo traçado.
Deus já sabia disso?

 


 


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