Manhã adiantada do primeiro dia do ano de 1991. Mário saiu da casa da praia com a única intenção de tentar recuperar dos excessos da passagem do ano. Não dormira mais que três horas e, por esse motivo, sentia a cabeça nas nuvens. Não se embriagara mas tinha bebido fora das normas. Aconteceu e não era seu hábito. Talvez reflexo dos excessos prolongados ao longo da madrugada, sentia-se culpado de qualquer coisa e nada tinha feito de mal. Nem sequer bebeu para esquecer. A consciência dizia-lhe que, mais tarde ou mais cedo, devia sair duma situação insustentável. Bem tentara sem êxito. Começava a acreditar que Alguém lá em cima gostava pouco dele ou nem sequer o conhecia. O insucesso com a Madalena, uma mulher que nunca chegou a entender, parecia fazer prova. Eram águas passadas e tinha que dar uma volta por cima.
O movimento era grande nas ruas e isso atordoava-o ainda mais, decidindo de imediato afastar-se da zona do barulho, subindo a antiga estrada principal onde havia no cimo, e à esquerda, a estação de serviço. Claro que optou pelo passeio do lado direito, onde podia apreciar pela enésima vez as vivendas que se encostavam perigosamente ao alto da arriba originada em terrenos do Cretácico, ricos em fósseis, mas deformados pelas convulsões havidas no passado remoto, talvez ainda antes do cataclismo que veio do céu há sessenta e cinco milhões de anos e extinguiu os dinossauros.
Não encontrou ninguém conhecido, o que lhe agradou muito. Só queria que aquele horrível peso na cabeça desaparecesse e o mais rápido possível. Tinha-se deitado muito tarde, depois de mais uma simulação de festejo da entrada de mais um ano. Sentia-se cada vez mais um estranho numa terra estranha.
«Robert H. Heinlein.»
Recordou em voz baixa o escritor de ficção científica onde tinha ido buscar a última fase que assentava que nem uma luva no seu estado de espírito.
Passara por toda aquela gente, mais preocupado em observar o chão das ruas do que as próprias pessoas. Não que tivesse perdido alguma coisa.
Quando chegou ao sul era quase meio-dia. Tinha intenção de ir ao miradouro. Dali via-se o mar numa extensão enorme, até à linha do horizonte.
Tão extenso o mar e ele limitado a uma ilha...!
Estranhamente não entrara no ano novo a pensar na Madalena.
Estranhamente?
Afinal era o que podia esperar de uma mulher que lhe escapou sempre como uma enguia quando pensava que a tinha sua. Não que fosse predador. Ela, sim. Talvez fosse. E pensando bem, afinal a enguia foi ele quando descobriu os desígnios daquela mulher. Queria um financiamento para abrir uma loja de pronto a vestir. Mas era passado e safou-se de boa.
Deixou vir o ano como se fosse um acontecimento banal, mesmo depois das complicações que o tinham abalado no ano velho. Chegava o ano da capicua. O ano que podia ser o cimento que faltava para consolidar a forte vontade de atingir a sua verdade e iniciar uma fuga digna para a frente, onde moravam as concretizações dos sonhos de há muito. Por várias vezes tinha estado no limiar. Por várias vezes desistira.
Mil novecentos e noventa e um. E se os noves jogassem entre si e com os uns?
9+9=18 9-1=8 9-1=8 18...8...8 1888
Uma data sobejamente conhecida. Não. Queria ir por aí. Que o desculpasse o Fernando António...
Sentia-se entediado, mas não era o tédio sentido pelo outro. Teve muita sede na véspera, mas foi numa passagem do ano. O que podia considerar-se natural. Agora era outro dia que tinha que encarar com sobriedade.
Pensara na magia dos três oitos, minutos antes do ano acabar. Mas nunca em 1888.
Afinal não chegou ao miradouro. Era tarde. Tinha que voltar para trás.
Se bem o pensou, assim o fez e voltou ao centro em poucos minutos. Para mal dos seus pecados, cada vez havia mais gente nas ruas. E mais barulho. Os restaurantes estavam à cunha, sinal que dinheiro não faltava. Ou crédito nos cartões.
Depois de vários dias invernosos, o sol resolvera fazer a sua aparição. A data e o estado do tempo eram também dois fatores favoráveis para o ajuntamento de tanta gente.
O ano começava bem em termos de clima, mas ele saíra com mais intenções para além de apreciar o bom tempo. Não queria só aquecer o corpo ou abrir o apetite para o almoço. Decerto que havia outro motivo.
Mas qual?
Já no norte, perto do café onde teve um encontro imediato do terceiro grau com a mulher de vermelho, o celebérrimo café do norte onde viu uma mulher que mais ninguém viu, resolveu deter-se junto à montra duma antiga mercearia, e autêntico bazar onde nada faltara em tempos. Agora o estado de degradação era notório, sinal de um terramoto ocorrido na vida do proprietário (paz à sua alma).
Tudo ficou estranho a partir do momento em que fixou os olhos no chão. Também não foi assaltado por um pensamento repentino. Uma ideia daquelas que não lembrava ao diabo. Nada disso. Apenas observava um maço de cigarros que fora abandonado no chão. Vazio. Apenas isso.
Ganhava tempo para enfrentar o momento em que ia passar em frente ao café do norte?
«Mário, deixa-te parvoíces! Aquela mulher não existiu. Tudo não passou de alucinação…»
Continuava parado, olhando para o maço de cigarros, vazio.
Sem saber porquê, aguçou o olhar. Havia um papel entre o maço de cigarros e o plástico que o envolvia. Veio-lhe à cabeça logo a ideia que podia ser uma nota de mil, talvez porque tinha achado uma de vinte em idênticas condições, isto é, também num maço de cigarros.
«Uma nota de mil... Devo estar delirando!» pensou.
De facto, o que estavam vendo os seus olhos ainda cansados de uma noite mal dormida, era um simples papel escrito. O maço apresentava-se dobrado e nada, mesmo nada, havia nele de especial, segundo lhe dizia o infalível e maravilhoso consciente.
«Isso são restos de ontem. Segue o teu caminho, Mário!» sussurrou.
Mas afinal havia outro! Claro que não obedeceu à sua própria ordem porque o outro que se chamava subconsciente não deixou que seguisse caminho. Baixou-se de imediato e começou a desdobrar o maço de cigarros que, por sinal, era da marca “SG”. O pressentimento não o tinha enganado. O que estava a ver não era apenas um papel entre o maço e o plástico envolvente. Um papel escrito. Um papel que, quando dobrado, nada se parecia com uma nota de mil escudos e que... afinal era mesmo!
Que coisa o fez parar em frente à montra para ver um simples maço de cigarros sem os mesmos?
Ainda por cima já não fumava há muito.
E quem lhe segredou que naquele maço havia uma nota de mil?
Guardou a nota no bolso das calças e continuou a caminhada de regresso à casa da praia, por sinal uma casa muito visitada segundo a dona Ima dos arrotos cavernosos, uma médium, que igual ou melhor dotada nunca conheceu.
Observou então melhor a nota. Havia uma data e um nome.
3H31M
....... 30/12/90
CLARO
Três horas e trinta e um minutos. Alguém escreveu deliberadamente na nota e quase de certeza que a deitou fora no momento. Ou fumou o último cigarro e deitou fora o maço, esquecendo-se da nota de mil. Uma pessoa que se chamava Claro deitou fora a nota, talvez (quem sabe?) para colher mais tarde uma quantia avultada. Muito estranho. Muito estranho mesmo.
Ao mesmo tempo achou curioso. Sobretudo se relacionasse com uma previsão que leu dias antes num jornal de astrologia. A certa altura, depois de trá,lá,lá,lá, dizia a previsão:
«Pagamento inesperado, na terça-feira, de uma dívida antiga...»
Mais curioso ainda quando verificou que estava numa terça-feira e o nome da pessoa que escreveu na nota, era uma parte do nome duma pessoa que conhecia muito bem.
E aqueles sete pontos?, que significado podia dar?
Sete é um número importante na numerologia.
Mas havia mais sinais indecifráveis. As palavras tinham sido escritas no reverso da nota e numa posição invertida relativamente ao texto escrito na mesma.
Entrou em 1991 com o pé direito?
Nem sequer se lembrava.
Uma dívida de alguém...?
«Foi ontem e não me lembro...»
Tudo levava a crer que ia ter um bom ano.
E teve?
O movimento era grande nas ruas e isso atordoava-o ainda mais, decidindo de imediato afastar-se da zona do barulho, subindo a antiga estrada principal onde havia no cimo, e à esquerda, a estação de serviço. Claro que optou pelo passeio do lado direito, onde podia apreciar pela enésima vez as vivendas que se encostavam perigosamente ao alto da arriba originada em terrenos do Cretácico, ricos em fósseis, mas deformados pelas convulsões havidas no passado remoto, talvez ainda antes do cataclismo que veio do céu há sessenta e cinco milhões de anos e extinguiu os dinossauros.
Não encontrou ninguém conhecido, o que lhe agradou muito. Só queria que aquele horrível peso na cabeça desaparecesse e o mais rápido possível. Tinha-se deitado muito tarde, depois de mais uma simulação de festejo da entrada de mais um ano. Sentia-se cada vez mais um estranho numa terra estranha.
«Robert H. Heinlein.»
Recordou em voz baixa o escritor de ficção científica onde tinha ido buscar a última fase que assentava que nem uma luva no seu estado de espírito.
Passara por toda aquela gente, mais preocupado em observar o chão das ruas do que as próprias pessoas. Não que tivesse perdido alguma coisa.
Quando chegou ao sul era quase meio-dia. Tinha intenção de ir ao miradouro. Dali via-se o mar numa extensão enorme, até à linha do horizonte.
Tão extenso o mar e ele limitado a uma ilha...!
Estranhamente não entrara no ano novo a pensar na Madalena.
Estranhamente?
Afinal era o que podia esperar de uma mulher que lhe escapou sempre como uma enguia quando pensava que a tinha sua. Não que fosse predador. Ela, sim. Talvez fosse. E pensando bem, afinal a enguia foi ele quando descobriu os desígnios daquela mulher. Queria um financiamento para abrir uma loja de pronto a vestir. Mas era passado e safou-se de boa.
Deixou vir o ano como se fosse um acontecimento banal, mesmo depois das complicações que o tinham abalado no ano velho. Chegava o ano da capicua. O ano que podia ser o cimento que faltava para consolidar a forte vontade de atingir a sua verdade e iniciar uma fuga digna para a frente, onde moravam as concretizações dos sonhos de há muito. Por várias vezes tinha estado no limiar. Por várias vezes desistira.
Mil novecentos e noventa e um. E se os noves jogassem entre si e com os uns?
9+9=18 9-1=8 9-1=8 18...8...8 1888
Uma data sobejamente conhecida. Não. Queria ir por aí. Que o desculpasse o Fernando António...
Sentia-se entediado, mas não era o tédio sentido pelo outro. Teve muita sede na véspera, mas foi numa passagem do ano. O que podia considerar-se natural. Agora era outro dia que tinha que encarar com sobriedade.
Pensara na magia dos três oitos, minutos antes do ano acabar. Mas nunca em 1888.
Afinal não chegou ao miradouro. Era tarde. Tinha que voltar para trás.
Se bem o pensou, assim o fez e voltou ao centro em poucos minutos. Para mal dos seus pecados, cada vez havia mais gente nas ruas. E mais barulho. Os restaurantes estavam à cunha, sinal que dinheiro não faltava. Ou crédito nos cartões.
Depois de vários dias invernosos, o sol resolvera fazer a sua aparição. A data e o estado do tempo eram também dois fatores favoráveis para o ajuntamento de tanta gente.
O ano começava bem em termos de clima, mas ele saíra com mais intenções para além de apreciar o bom tempo. Não queria só aquecer o corpo ou abrir o apetite para o almoço. Decerto que havia outro motivo.
Mas qual?
Já no norte, perto do café onde teve um encontro imediato do terceiro grau com a mulher de vermelho, o celebérrimo café do norte onde viu uma mulher que mais ninguém viu, resolveu deter-se junto à montra duma antiga mercearia, e autêntico bazar onde nada faltara em tempos. Agora o estado de degradação era notório, sinal de um terramoto ocorrido na vida do proprietário (paz à sua alma).
Tudo ficou estranho a partir do momento em que fixou os olhos no chão. Também não foi assaltado por um pensamento repentino. Uma ideia daquelas que não lembrava ao diabo. Nada disso. Apenas observava um maço de cigarros que fora abandonado no chão. Vazio. Apenas isso.
Ganhava tempo para enfrentar o momento em que ia passar em frente ao café do norte?
«Mário, deixa-te parvoíces! Aquela mulher não existiu. Tudo não passou de alucinação…»
Continuava parado, olhando para o maço de cigarros, vazio.
Sem saber porquê, aguçou o olhar. Havia um papel entre o maço de cigarros e o plástico que o envolvia. Veio-lhe à cabeça logo a ideia que podia ser uma nota de mil, talvez porque tinha achado uma de vinte em idênticas condições, isto é, também num maço de cigarros.
«Uma nota de mil... Devo estar delirando!» pensou.
De facto, o que estavam vendo os seus olhos ainda cansados de uma noite mal dormida, era um simples papel escrito. O maço apresentava-se dobrado e nada, mesmo nada, havia nele de especial, segundo lhe dizia o infalível e maravilhoso consciente.
«Isso são restos de ontem. Segue o teu caminho, Mário!» sussurrou.
Mas afinal havia outro! Claro que não obedeceu à sua própria ordem porque o outro que se chamava subconsciente não deixou que seguisse caminho. Baixou-se de imediato e começou a desdobrar o maço de cigarros que, por sinal, era da marca “SG”. O pressentimento não o tinha enganado. O que estava a ver não era apenas um papel entre o maço e o plástico envolvente. Um papel escrito. Um papel que, quando dobrado, nada se parecia com uma nota de mil escudos e que... afinal era mesmo!
Que coisa o fez parar em frente à montra para ver um simples maço de cigarros sem os mesmos?
Ainda por cima já não fumava há muito.
E quem lhe segredou que naquele maço havia uma nota de mil?
Guardou a nota no bolso das calças e continuou a caminhada de regresso à casa da praia, por sinal uma casa muito visitada segundo a dona Ima dos arrotos cavernosos, uma médium, que igual ou melhor dotada nunca conheceu.
Observou então melhor a nota. Havia uma data e um nome.
3H31M
....... 30/12/90
CLARO
Três horas e trinta e um minutos. Alguém escreveu deliberadamente na nota e quase de certeza que a deitou fora no momento. Ou fumou o último cigarro e deitou fora o maço, esquecendo-se da nota de mil. Uma pessoa que se chamava Claro deitou fora a nota, talvez (quem sabe?) para colher mais tarde uma quantia avultada. Muito estranho. Muito estranho mesmo.
Ao mesmo tempo achou curioso. Sobretudo se relacionasse com uma previsão que leu dias antes num jornal de astrologia. A certa altura, depois de trá,lá,lá,lá, dizia a previsão:
«Pagamento inesperado, na terça-feira, de uma dívida antiga...»
Mais curioso ainda quando verificou que estava numa terça-feira e o nome da pessoa que escreveu na nota, era uma parte do nome duma pessoa que conhecia muito bem.
E aqueles sete pontos?, que significado podia dar?
Sete é um número importante na numerologia.
Mas havia mais sinais indecifráveis. As palavras tinham sido escritas no reverso da nota e numa posição invertida relativamente ao texto escrito na mesma.
Entrou em 1991 com o pé direito?
Nem sequer se lembrava.
Uma dívida de alguém...?
«Foi ontem e não me lembro...»
Tudo levava a crer que ia ter um bom ano.
E teve?

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