Aquela manhã aleatória, trouxe-lhe uma perspetiva alicerçada na ausência de raízes e cem por cento dirigida para os caminhos do nada, o único beco que não lhe dava a hipótese de retorno.
Levantou-se de um salto e começou a cumprir as rotinas quase automáticas como tratar da higiene pessoal e alimentar o seu corpo grosseiro. Fê-lo com satisfação pois acreditava que o maldito stress ficaria preso na escuridão que guardava, nem que fosse por um só dia, todos os problemas pendentes.Não ia ficar deitado na cama de barriga para o ar, a ver televisão, ou a pensar em problemas por resolver ou então a descobrir outros.
Teve uma hesitação ligeira à saída de casa.
Para onde ir, ou para onde não ir?
Decidiu-se pela última opção. Segunda metodologia: não levar carro. Assim, anulava logo certas hipóteses como praias, centros comerciais e esplanadas com muita gente sentada, cacarejando, e outra deslocando-se para trás e para diante.
Fechou com força a porta da rua. Já no passeio, inspirou longamente o ar poluído da cidade e teve, de imediato, um acesso forte de tosse. No momento passava um daqueles muitos autocarros comunitários que precisavam de manutenção.
Sentiu-se livre, como um pássaro ao qual cortaram as asas, naquela rua cheia de gases e de vícios. Instintivamente apressou o passo e fugiu para além do azul, tomando um rumo orientado para onde não havia rumo.
À medida que se afastava de casa cada vez mais tinha a certeza que o seu destino era algures, se algures podia considerar-se uma finalidade. Mas claro que era. O próprio aleatório também era uma finalidade. O que interessava agora era esquecer-se dos outros, das perguntas que podiam fazer (onde fica isto, onde fica aquilo), tentar mesmo esquecer-se de si. Quem era, o que fazia e o que tinha por acabar. Mais uma vez, a necessidade de virar-se para o complementar: fazer tudo o que nunca faria nas situações normais.
Mas onde estava?
Ótimo. Não conheço esta rua…
O bloqueio até se estendia a qualquer tentativa de flashback. Precisava de se encher do vazio absoluto das boas intenções, também das más e das dúbias. Uma espécie de meditação transcendental feita em movimento, ainda mais difícil de atingir.
Finalmente uma rua silenciosa. Objetivo alcançado. Só que teve a primeira sensação de cansaço. As pernas pesavam-lhe como chumbo.
Falta de hábito. Tenho que fazer isto mais vezes.
«Se houver mais vezes.»
Ponto crítico. Pareceu-lhe que tinha ouvido uma voz. Ah!, mas ele não admitia interferências absurdas. O teorema que queria demonstrar não podia conter passos sem lógica.
«Olha para a tua esquerda.»
Um café. Afinal a voz era o reflexo do cansaço que tinha manifestado na véspera.
A bica soube-lhe bem. Chávena escaldada, café de bom aroma, suave, agradável ao paladar. Não precisou de muito açúcar.
Silêncio envolvente. Curiosamente era o único cliente, o que muito lhe agradou.
Se tivesse trazido o caderno talvez saísse obra. Mas tinha o pequeno bloco de notas, lembrou-se. Já não era mau de todo. Então, mãos à obra. Pegou na esferográfica e deixou que a ponta deslizasse sobre o papel, ao sabor da torrente de palavras que brotaram vindas do fundo mais desconhecido da mente não consciente. Não costumava ser assim. Normalmente era o senhor das ideias que as palavras traduziam e não a componente passiva. Mas tudo parecia obedecer ao plano subversivo com que saíra de casa e continuou a manter a tolerância absoluta em relação ao deslizar da ponta da esferográfica.
Notou que a escrita era rápida, não controlada pelo super censor. Linhas e linhas que se sucediam tecendo uma trama inconsequente. O mais estranho é que não conseguia parar a escrita anárquica de riscos verticais todos ligados como se formassem uma corrente que não quebrava. Não estava a gostar mesmo nada daquele modo estranho de escravidão.
«Larga-a, enquanto é tempo!»
Levantou-se de repente. Não hesitou em dar dois ou três passos até chegar ao balcão. O dono do café estava a limpar copos que ia alinhando na primeira das cinco prateleiras em vidro dispostas com distâncias que permitiam colocar garrafas e que se estendiam a todo o comprimento. Quanto às garrafas estavam arrumadas a partir da terceira prateleira. Do seu lado direito havia uma pequena bancada com tampo em pedra mármore que suportava três máquinas: de café expresso, de cortar fiambre e queijo e a torradeira. Logo a seguir uma porta que devia dar acesso à cozinha.
«Deseja mais alguma coisa?»
«Pode ser outra bica. Parece que estou com sono.»
«É para já.»
Agradeceu e preparou-se para voltar à mesa.
Felizmente que larguei a maldita esferográfica. Parecia que tinha feitiço. Aquela voz que ouvi há pouco tinha razão. Assim está tudo melhor.
Surpresa!
Havia alguém na sua mesa. Uma mulher. Estava virada de costas para a entrada do café. Foi só o tempo de se dirigir ao balcão. Sentou-se na sua mesa inadvertidamente. Ou queria seduzi-lo ou pedir alguma coisa. A não ser que fosse a pessoa da voz.
Afastou logo a ideia. Quando se sentasse teria a resposta.
Parou a meio caminho, procurando conciliar as ideias que, entretanto, tinham ficado nubladas por estar a ver o que não queria. O melhor era enfrentar a nova realidade.
Deu os últimos passos em direção à mesa.
«Que faz aí sentada?»
Nova surpresa. Afinal a presença da mulher não passou de uma visão.
Olhou em volta. Ausência absoluta da mulher.
Mas que brincadeira é esta?
Não chegou a sentar-se. Ficou virado para o homem que começava a tirar o café.
«Passa-se alguma coisa, senhor?»
«Está a ver o mesmo que eu?» perguntou, apontando para a mesa.
«O quê?»
Teve que modificar a pergunta.
«Está uma mulher sentada na minha mesa.»
«Claro que sim. Mas onde quer chegar?»
Mesmo a propósito.
«Onde quero chegar? Claro que à mesa.»
«E já chegou.»
Estará a ver o mesmo que eu?
«Não deixe que ela fuja. É uma mulher com classe.»
«Se existisse.»
«Não brinque comigo, senhor!»
«Porquê? Volto a dizer: se existisse. Venha ter comigo à mesa e já vai dar-me razão.»
«Não entendo, mas faço-lhe a vontade.»
Regra fundamental que dono do café seguia religiosamente. Nunca se deviam contrariar os doidos.
«Mas o que é isto?!...»
«Tenho ou não tenho razão? Como vê, a mulher que ambos vimos à distância não existe. Mas vamos fazer uma experiência. Venha comigo.»
«Para onde, senhor?»
«Olhamos para a mesa do lado da porta da saída. Como se estivéssemos a entrar no café.»
O homem concordou.
«Isso mesmo, amigo... Como é o seu nome?»
«Chamo-me Anaclides. Vejamos então o que vai acontecer quando olharmos a partir da porta. Aposto que a vamos ver...»
«Perdi a aposta. Muito estranho!»
Não havia ninguém sentado na sua mesa.
Voltaram à zona do balcão.
«O seu café já arrefeceu.»
Pareceu não ouvir o Anaclides. Agora estava bem acordado, mesmo sem ter bebido a segunda bica.
«Nem quero acreditar!»
«Muito menos eu. Deixe ver, parece que ela está a ler qualquer coisa. Ah!, já sei. É o meu bloco de notas.»
«Acha?»
Irritou-se.
«Aquela mulher está a passar das marcas!»
«Volte para o seu lugar que eu fico alerta.»
Obedeceu. Já na mesa não viu a mulher. Nem o Anaclides a viu.
«Foi-se de vez...» Disse o dono do café. «Ainda bem. Isto estava a ficar muito confuso...»
«Bonito!»
«Que aconteceu mais?»
Estou a sonhar! Só pode ser…
Teve um pressentimento. Pegou no bloco e começou a folheá-lo.
Não encontrou os traços verticais e contínuos.
«Pareceu-me que ela escrevia uma coisa no seu caderno.»
«Não pode ser!»
«Que escreveu?»
«Volto amanhã, à mesma hora.»
«Só isso?»
«Só.»
Fechou o bloco.
«Vou para casa. Preciso de pôr a cabeça no sítio. Quanto lhe devo?»
Pagou e despediu-se.
É assim que se enlouquece?
«Até amanhã.»
«Amanhã estou fechado. Fecho ao domingo.»
«Está bem.»
Despediu-se e saiu.
Já em casa sentiu fome. Consultou o relógio. Pudera! Passava das duas.
Ricas horas para almoçar!Entrou na cozinha. Hesitou entre fazer ovos mexidos com gambas ou aquecer o resto da véspera. Caldeirada. Bem bom. Ficava melhor de um dia para o outro.
Depois ainda aproveitava o molho e o resto para fazer uma sopa de estalo. Com um toque de piripiri…
Abriu a porta do frigorífico e retirou o tupperware onde guardava aquele petisco que tanto apreciava. Foi buscar um prato raso ao armário e deitou nele a caldeirada. Antes de pôr o prato dentro do microondas, não resistiu ao impulso de cheirar a caldeirada. Ficou satisfeito com o resultado.
Que cheiro bom! Deve estar gostosa…
Ligou a televisão. Enquanto comia, deliciado, mergulhou no mundo habitual das notícias. Os atentados suicidas, os golpes de estado e o aumento contínuo do preço do crude. E também um sismo na Turquia. Só não entendeu uma frase:
«Hoje, sexta-feira, foi a enterrar...»
Sexta-feira? Decerto que se enganou.
O resto do dia não lhe trouxe novos sobressaltos.
Deitou-se cedo. O dia fora muito agitado.
Levantou-se depois das oito e ligou logo a televisão. Confirmava-se. Era sábado.
Repetiu os preceitos da véspera. Nada de rotinas.
Olhou para o relógio. Dez e dez. Tal e qual como na véspera. Porta fechada à chave e descida pelas escadas. Já na rua, não hesitou. Deu meia dúzia de passadas decididas e deixou-se ir ao acaso, tal como fez na véspera. Tinha a certeza que encontrava de novo o café quando sentisse as pernas a pesarem-lhe.
E assim aconteceu. No interior do café o homem limpava os copos e alinhava-os na prateleira.
«Bom dia.»
«Bom dia, meu senhor» disse Anaclides, virando-se e levantando o olhar. «Que vai tomar?»
«Hoje pode ser uma imperial e uma sande de carne assada.»
«Muito bem. Vou já servi-lo. Com manteiga?»
«Se a manteiga for genuína.»
«Sim, senhor.»
Qualquer coisa não batia certo. Estranhou o comportamento do dono do
café ao fingir que não se lembrava dele.
Sentou-se na mesma mesa. O homem entrou na cozinha para preparar a sande.
Pouco depois apareceu na sua frente com a imperial e a sande.
«Obrigado.»
Nem mais um comentário. Voltou à tarefa que tinha interrompido.
Procede como se nunca me tivesse visto. Deixa ver como reage…
«Olhe uma coisa...»
O homem virou-se.
«A carne tem nervos?»
Ficaste impressionado com o que aconteceu ontem a ponto de fingires que não me conheces? Espera aí que já te tramo, Anaclides.
«Está ótima. Que salgados tem?»
«Tenho pastéis de bacalhau e croquetes. Os rissóis ainda não chegaram. Recomendo-lhe os pastéis de bacalhau. Estão óptimos.»
«Então podem ser dois pastéis e um sumo.»
«Compal?»
«Tanto faz.»
«O Compal pode ser de pêssego? Desculpe, não reparei que o senhor estava acompanhado. O sumo é fresco ou natural?»
«Pode ser de pêssego. E fresco»
Em breve o homem estava na sua frente, com os pastéis e um sumo de pêssego.
«É sumo de pêssego. Gostas, Marina?»
O homem coçou a cabeça, mas manteve-se calado. Com pessoas assim como ele era preciso prudência. Por outro lado, sentia-se confuso.
Parecia-lhe que tinha visto uma mulher sentada na frente do cliente. Tudo antes de levar à mesa os pastéis de bacalhau e o sumo.
Já no interior do balcão, virou-se.
«Oh!»
Perplexo, voltou à mesa.
«Passa-se alguma coisa, amigo?»
«Devo estar com alucinações. Ela aparece e desaparece!»
«A Marina?»
Já sabia que o problema não era só seu.
«Vamos fazer uma experiência. O senhor senta-se no meu lugar e eu vou para o balcão.»
O homem nem pestanejou. Trocaram de posições. Nem vestígios da mulher, tanto para um como para o outro. Mantinha-se, no entanto, o enigma.
Se queria encontrar-se com ele porquê o mistério das aparições e desaparições?
«Isto não está nada bom. Tenho que ir para casa. Antes de sair, só lhe peço uma coisa: descreva-me como era a mulher.»
«Só a vi de perfil. Pareceu-me não ter mais de trinta anos. Vestia uma t-shirt vermelha e calças de ganga...»
«Isso. Azuis claras. E sapatos a condizerem com a t-shirt e o cinto. Tudo vermelho. O cabelo era castanho.» Completou.
«Está tudo certo. Mas chamou-lhe Marina e perguntou se ela gostava do sumo. Portanto, concluo que houve um momento em que a viu quando estava sentado. O senhor está a faltar à verdade. Não existe nenhuma Marina.»
Sorriu.
«Foi uma pequena vingança. Simulei que ela estava presente. Só queria chamar-lhe a atenção porque o meu amigo fingiu que não me conhecia.» «Mas é a primeira vez que o vejo!»
«Desculpe, não vou acreditar. Estive cá ontem...»
«Juro que não o conheço, senhor.»
«E eu até sei como se chama! Não se chama Anaclides?»
«É verdade.»
«E como podia adivinhar que se chamava Anaclides?»
O outro encolheu os ombros.
Nada a fazer. Desisto.
«Bom, quanto lhe devo?»
«Mas que se passa com essa mulher que aparece e desaparece?»
«Amanhã digo-lhe.»
«Encerro aos domingos.»
Tenho cá o pressentimento que tudo se resolve amanhã.
«Diga, senhor?»
«Estava a falar com os meus botões.»
Fez um gesto de despedida com o braço e encaminhou-se para a porta. Só então deu conta que ainda não tinha pago a despesa.
«Afinal quanto lhe devo?»
O homem deu uma mirada rápida na mesa.
«Os pastéis que não comeu posso descontar. Mas o sumo não, porque abri a garrafa. Mas deixe ver melhor... Afinal o senhor comeu os pastéis...»
«Eu não. Claro que não!»
«Então quem os comeu?»
«Não sei. A Marina não existe!»
«Houve magia com os danados dos pastéis. Mas...»
«Sim?»
«Está aqui um papel.»
«Deixe ver...»
«Sinto-me muito só. Amanhã venho buscar-te.»
Pagou com uma nota de dez euros, recebeu o troco e despediu-se.
O dono do café ficou a falar com os seus botões que havia cada coisa mais estranha que não dava para acreditar. A hipótese de truque não se punha porque esteve atento o mais possível.
Não terminou o raciocínio. Ouviu um ruído de vozes vindo da rua e teve um flash.
Havia um ajuntamento de pessoas no passeio, perto da porta.
Aproximou-se, tomado por um pressentimento e então ouviu:
«Caiu no chão como um boneco articulado. Foi um caso de morte súbita. Nem soltou um ai.»
Era ele. O seu cliente. Baixou-se. O homem não dava sinais de vida.
Anaclides dormiu mal nessa noite. Uma ideia fixa atormentava-lhe a mente, como se alguém lhe soprasse que devia ir ao café.
Mas é domingo. Que vou lá fazer?Quando a manhã aclarou já estava a entrar para o carro. Em dez minutos chegou ao café. O pressentimento batera certo porque viu logo a porta entreaberta.
Querem ver que fui assaltado?
As luzes estavam acesas. Numa primeira observação parecia não haver sinais de assalto.
Mas quem tinha aberto a porta do café?
Ficou petrificado. Lá estavam, ele e ela, na mesma mesa, frente a frente.
«Essa agora!»
Tentou meter conversa com eles, mas já estavam a levantar-se.
«Coisa mais estranha!»
Não se dirigiram para a porta. A zona do balcão era o seu rumo.
Viu-os passarem de mãos dadas, sorrindo olhos nos olhos, até que desapareceram da sua vista por uma porta que se rasgou na parede, à esquerda da entrada para a cozinha, mesmo no local onde estavam as prateleiras com os copos e as garrafas.
Esfregou os olhos, estupefacto. Não queria acreditar no que via naquele momento. Os copos, bem como as garrafas, continuavam intactos sobre as prateleiras…
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