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arou o carro fora da estrada, no fim da subida. Dali desfrutava-se uma paisagem maravilhosa mas não era esse o seu ponto de vista nem, tão pouco o objetivo. Longe de tal. Muito longe. Mesmo assim, não conseguiu evitar sair do carro e olhar em frente.
O céu estava encoberto. Ao longe, o recorte mais escuro da serra parecia contrastar com o cinzento das nuvens. Aqui e ali, uma nesga de céu velho emprestava à paisagem a ideia que, para lá da negritude dos montes, havia um outro mundo e talvez um outro tempo. A esse mundo não podia chegar e, quanto ao tempo, que vinha de há treze mil e oitocentos milhões de anos, quando o big bang aconteceu, não o podia encerrar numa caixa hermética para outro tempo começar.
Cometeu tantos erros na sua vida! Ah!, se os pudesse corrigir como acontecia no tempo da tortura dos ditados na escola primária…
Aproximou-se do carro, abriu a porta e entrou. Definitivamente estava na posse da certeza de todas as certezas que lhe permitiam ler o futuro próximo.
Franziu o sobrolho e estranhou. Não devia ter acontecido aquela expressão, pois estava na posse e controle do que vinha a seguir.
Franziu o sobrolho e estranhou. Não devia ter acontecido aquela expressão, pois estava na posse e controle do que vinha a seguir.
Colocou o CD da cantora grega no leitor e esperou pela música. Do lado direito, muito abaixo, via-se o mar, adormecido, como um grande lago de águas em repouso. Pequenas ondas morriam, feitas em espuma, a beijarem a areia amarela ainda com ondulações. Dali não ouvia o que diziam as águas à areia e não podia saber se falavam de si ou da eternidade.
Qual a diferença?
Apenas um passo. A coragem de um passo.
Qual a diferença?
Apenas um passo. A coragem de um passo.
«Mas voltei para o carro!» pensou.
A tarde caía para dentro de si. Implacável, o crepúsculo. A sensação gélida de agonizar. O mergulho da hidra nas profundezas do seu laboratório secreto. O grito sem esperança, abafado pelo vazio que o envolvia.
Olhou as nuvens e quis perguntar que céu era aquele que não tinha gaivotas de asas feridas, voando em círculo. Era outro tempo e desconhecia onde estava aquele que levou consigo o céu das gaivotas que voavam no azul, embora em círculo, bem como as canções da mulher grega que tanto o deliciavam. Aquela sensação que lhe dizia que já nada tinha para fazer. A vontade obsessiva de viajar para um buraco negro insaciável, boqueirão de beber porque não tinha sede (peço desculpa, amigo Fernando António). O desejo de chegar, sem cumprir o destino, do passageiro só com bilhete de partida. O pesadelo. O martelar contínuo nos ouvidos. O vómito. Sentir que tinha culpa sem saber porquê. A cortina cerrada que queria abrir. E, mesmo que a abrisse, logo outra se mostrava.
Esfregou os olhos. Não. Não era possível. Aquilo era uma alucinação. Havia no céu uma gaivota. Graciosa. Cinzenta. De asas quedas. Olhos penetrantes, lembrando-lhe acontecimentos acusadores.A tarde caía para dentro de si. Implacável, o crepúsculo. A sensação gélida de agonizar. O mergulho da hidra nas profundezas do seu laboratório secreto. O grito sem esperança, abafado pelo vazio que o envolvia.
Olhou as nuvens e quis perguntar que céu era aquele que não tinha gaivotas de asas feridas, voando em círculo. Era outro tempo e desconhecia onde estava aquele que levou consigo o céu das gaivotas que voavam no azul, embora em círculo, bem como as canções da mulher grega que tanto o deliciavam. Aquela sensação que lhe dizia que já nada tinha para fazer. A vontade obsessiva de viajar para um buraco negro insaciável, boqueirão de beber porque não tinha sede (peço desculpa, amigo Fernando António). O desejo de chegar, sem cumprir o destino, do passageiro só com bilhete de partida. O pesadelo. O martelar contínuo nos ouvidos. O vómito. Sentir que tinha culpa sem saber porquê. A cortina cerrada que queria abrir. E, mesmo que a abrisse, logo outra se mostrava.
O tempo voltava. Os sons voltavam. O homem voltava de longe, duma viagem que parecia não ter retorno.
A gaivota, ou aquilo de gaivota, afastou-se. Ficou a vê-la. Cada vez estava mais longe. Mais pequena.
Para onde ia?
Pensou que podia continuar a vê-la. Talvez fosse fácil se conseguisse voar. Era só sair do carro e estender os braços. Seguir o voo da gaivota (“ensina-me a voar, gaivota de asas feridas”) no tempo que já foi o tempo do céu azul e que perdeu por culpa própria.
«Que pensamentos são estes? Não saias do carro. Há mais mulheres. Mais mundos para explorar.»
Tinha que o fazer. Depois daquele mundo não havia mais mundos com aquele.
Então, levou a mão ao manípulo da porta.
«Valerá a pena?»
«Claro que não.»
Agora até ouvia vozes. E ainda bem. Afinal, esta voz queria ouvir. Precisava das suas palavras de ajuda para o sortilégio dos pensamentos circulares se afastar. Afastando-se, deixava espaço para regressar das profundezas da sua negritude. De focar a visão nublada. Esquecer o tempo sem tempo do tempo que marcou o tempo que o perturbou. Esquecer também que existiram os sinais da hidra que devorava ferozmente nas profundezas inacessíveis à razão. A mágoa que afinal fabricara. Não. Não podia perder o odor caraterístico da maresia. A vontade de voltar para um começo qualquer em qualquer lugar e marcado por qualquer tempo.
E, a propósito de tempo, tinha chegado o tempo do carro entrar na estrada. Suavemente. Sem pressas para não deixar um sinal de que estava em fuga.
Iniciava-se no tempo zero uma descida para a vida. Quem sabia se para o tédio. Onde era o fim da descida.
Mas que se lixasse o tédio!


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