sábado, 13 de maio de 2023

Violeta

 



A Violeta foi uma lufada de ar fresco que veio arejar os primeiros tempos insípidos dum caçador de histórias inexperiente num meio imprevisível em que tinha mergulhado, ainda sem estarem definidos os objectivos a que se propunha. Como nas outras conversas instantâneas que teve com mulheres que a sua intuição pesou, não chegou a saber com quem esteve falando. Mas gostou de conhecer a Violeta (nome com que a batizou) na "tela dos corações caídos"  e também das conversas que tiveram, sem pretensões e límpidas como as águas dos riachos que já não existem com tais predicados. 
Já lá vão quinze anos!

Violeta diz:
«Oi! Você é menino ou menina?»
Acho que a escolha foi aleatória. Há quinze minutos que se mantinha inactiva.
«Oi.»
«Ah... menino.»
Como descobriu? Pelo nick, claro. Não podia ter sido por outro processo. Nesse tempo ainda não me atrevia a mostrar-me com uma foto.
«Claro que sou menino. Um pouco crescido.»
«Quantos anos?»
«Quarenta e cinco. Não tenho o microfone em condições.»
Duas mentiras.
«Você é casado?»
«... Sou velho de mais para você? Não, não sou casado.»
«Para mim por que motivo?»
«Perguntou a idade...»
«Sim. O que há em ter quarenta e cinco anos?»
«Nada. Já agora qual é a tua idade, se não te importas, “girassol”?»
A sua imagem de apresentação era um girassol.
«Rsrs... trinta e dois. O que você faz?»
«Sou professor de Matemática. Trata-me por tu.»
«Eu sou professora também.»
«Disciplina?»
«Na Universidade. Teoria da literatura e história da literatura.»
«E onde?»
«No ensino Médio: Língua Portuguesa, Literatura e Redação.»
«No Brasil, ou em Havana?»
Tinha entrado a falar espanhol. Precisava de aprender espanhol num mês.
«No Brasil.»
Daí ter escrito “redação”.
«Tão longe!»
«Sim.»
«Sou professor de Matemática.»
«Sou professora de Português mas não gosto muito de escrever.»
«Não me digas! E de ler?»
«Adoro ler. Leio muito. Adoro os portugueses. Escritores. O meu marido escreve muito. Vivo tão cansada de dar aulas que não tenho ânimo nem para escrever.»
«Escrever faz bem à alma. Não cura os males, mas é um escape. Sobretudo para afugentar a solidão.»
«Eu trabalho das 7:00 às 22:30.»
«É duro!»
«Eu já estou abusada de dar aulas.»
«Se um dia tiveres paciência...»

Não tenho mais registos desta conversa introdutória. Provavelmente esqueci-me de gravar.
Em 20 de abril voltámos a encontrar-nos...
«Olá!»
«Oi... Tu estás bien?»
A praticar o espanhol.
«Desde ontem...?»
«Não. Rsrs.»
«Eu estou. Só que dormi pouco. Deitei-me às quatro da manhã e acordei às oito.»
«Estás em Portugal, não é?»
«Sim. Fui ao aniversário do Casino Lisboa e depois acabei na net.»
«Pois... Eu estou indo para o trabalho.»
«Então, bom trabalho. Beijos.»
«Beijos.»

«Oi!»
«Tudo bom?»
«Há muito...»
«Pois, tenho trabalhado muito...»
«Lembra-se de mim?»
«Lembro, sim.»
«E essas aulas?»
«Estão bem. Estou um pouco cansada. Tenho trabalhado muito e saído. Sinto vontade de jogar tudo fora, procurar outra coisa para fazer.»
«Desculpe ter interrompido... Quando estiver mais disponível, contacte. Até lá, boa sorte.»
>:D< (aquele abraço)
«Eu posso falar agora.»
«Julgava que não.»
«Tenho alguns minutos. Tu tens trabalhado também muito?»
«Já viu os meus blogues?»
«Tem blogues?» 
«Sim. Penso que já lhe tinha dito.» 
«Não. Ah!!!!!!!»
«Mas já lhe dei o endereço? Não me recordo.»
«Vida boa.»
«Qual?»
«A sua. Rsrsrs...»
«Como sabe?»
«Sem muito trabalho.»
«Já trabalhei muito.»
«E agora?»
«Agora tenho o tempo mais livre para realizar o meu sonho de há anos. Escrever, quer tenha veia ou não.»
«Também só vou escrever quando parar de trabalhar...»
«É bom uma pessoa fazer o que quer. Ter liberdade. Sonhar...»
«... e quando estiver morando definitivamente no meu sítio.»
«Poesia?»
Não respondeu.
«Eu nunca fiz o que quis. Não estudei o que desejava. Não morei onde queria. Não casei com quem queria.»
«Não amou quem quis?»
«Não. O meu marido diz que não aguenta mais me ver com cara de tristeza.»
«Há sempre desencontros.»
«Fazes o quê? Quantos anos mesmo você tem?»
«Mais do que lhe disse da outra vez. Só minto na idade.»
«Diz. Vai, fala, por favor.»
«Sou novo de espírito, mas também não tenho cem anos!»
«Fala. Eu tenho trinta.»
«Já tirou dois anos.»
«Rsrsrsr... Mulher sempre tem trinta. Eu era louca de vontade de chegar nos trintas.»
«Homem é eternamente jovem.»
«Eu acho bonito dizer trinta. E trinta e cinco. Quando chegar aos trinta e cinco farei questão de falar. Ei... sinto-me velha, muito velha. Rsrsrs... Brincadeira. Se você me olhar vai pensar que tenho dezoito.»
Só mostrava tristeza quando se referia ao marido. Achava-a bem alegre. A tal lufada de ar fresco que referi atrás.
«Quer que me mostre há oito anos?»
«Sim.» Respondi.
«Meu marido diz que eu sou linda!»
«É bonita, é.»
«Diz até que eu sou uma princesa. Ele é o melhor marido que uma mulher pode querer. E eu sinto por isso.»
«Tenho na minha presença uma princesa encantada à espera que o príncipe a vá libertar...»
«Você é tão poético! Parece até meu marido! Meu marido escreve coisa lindas e publica-as. E para quem ele escreve? Pois eu sou a musa inspiradora.»
«Então não o perca...»
Ai solidão... ai dão... ai dão!
Continuei.
«Vivo só. Numa cama vazia. Sem cheiro de mulher. Sem beijo gostoso com sabor a morangos silvestres...»
«E eu estou um pouco tristinha. Pois... minha cama não é vazia, mas não tenho beijos gostosos.»
«Mulher brasileira não é tristinha.»
«Eu sou...»
«É um desperdício. Dá um chá de amor ao teu marido, princesa encantada!»
«Tenho também que tomar do chá. Meu lar, doce lar. Tá vendo? Eu de camisola ainda, saindo do quarto directa para a mesa do almoço.»
Uma nova fotografia. Sentada à mesa. Esperando que fosse servido o almoço. De facto parecia mais nova. Tinha um toque de mestiça. Índia. «Não o perca. Não faça como eu fiz à minha vida, princesa. Só há uma maré cheia na vida de cada um.»
«Com direito a vinho barato.»
Referia-se às férias que passou algures. Umas férias baratas porque o dinheiro não dava para mais.
«Mas está alegre.»
«Já tomei umas duas taças... Tá vendo a garrafa vazia?»
«Parece mais nova.»
«Essa foto é bem recente.»
«Ontem bebi um pouco mais do que o habitual. Tive um desgosto.» Simone...
«Tem um mês. Eu não bebo quando tenho desgosto. Só bebo quando estou alegre.»
Opção acertada. Beber para esquecer não dá resultado. Reforça a recordação.
«Ontem vi fugir mais uma maré.»
«A minha religião não permite bebida alcoólica. Nossa! Foi sério!»
«Deus dá com uma mão e tira com a outra. Qual é a sua religião?»
«Eu sou cristã protestante. Conheci meu marido na igreja.»
«Eu vou a caminhar para ateu. Já faltou mais. Estou saturado de ter sempre o deus menor comigo. Não há meio do verdadeiro Deus vir ao meu encontro, princesa.»
«Nossa! O almoço aqui em casa está cheirando. Ah... eu sou um pouco triste. Mas não sou revoltada. Olha que tenho muitos motivos para isso.» 
«É ele que está a fazer o almoço? Hoje almocei com um colega e ele pagou. Ganhei uma aposta. Comemos sardinhas assadas e bebemos vinho tinto...»
«Ele está pró trabalho. Temos uma secretária que faz comidas deliciosas. Adoro vinho.»
E a tua religião não permite que bebas bebidas alcoólicas? Violeta, Violeta!
«Já almoçaste? Que horas são aí?»
«Quase quatro horas da tarde.»
«Aqui deve ser meio-dia. Estou sem relógio. É bom estar sem relógio. Hoje não vou ao trabalho. Rsrs...»
«Muito bom.»
«Estou apenas esperando o marido para almoçar. Aqui é tudo pertinho. Dá sempre para almoçar em casa.»
«Tocantins, não é?»
«Diz uma coisa... Vocês tomam banho quantas vezes ao dia?»
«Uma, normalmente.»
«Você não fala nada certo. Rsrsrs... Não sou do Tocantins, nãooooooo! Mas eu tomo de três a quatro banhos por dia.» 
Outra Cibele.
«Donde é?»
«Mas o Tocantins fica aqui perto. Devem ser umas trinta horas de carro.»
Senti-me gozado.
«Rio de Janeiro, S. Paulo?»
«Só dá para ir de avião, ou então passar três dias dentro de um carro, ou dentro de um ónibus...»
«Diz donde és!»
«Eu sou de São Luís. Lembra. Vá lá... Brasil.»
«Fico na mesma. Região?»
«Nordeste. Maranhão. Aceita...»
«Repete. Não vai adiantar muito você saber. Eu só posso ouvir.»
«Oi.»
«Diz algo.»
«Estou a falar. Não me ouve?»
«Baixinho. Não consigo ouvir. Tá péssimo isso aqui. Vou desligar. Não deu certo. Vou comprar outro. Meu marido prometeu-me dar uma cam e nunca me deu. Vou cobrar dele hoje. Acabou de chegar.»
«Se o seu marido não fosse ciumento, enviava-lhe uma prosa falada. Assim, ouvia a minha voz, princesa.»
«Ele não é ciumento.»
«Por e-mail...»
«Mas eu tenho vergonha.»
«De quem?»
Digitou o e-mail que copiei para um papel.
«Dele. Do meu marido.»
«Quer que envie já?»
«Pode enviar. Eu vou sair. Ele chegou pró almoço.»

Horas mais tarde...
«Oi!» «Princesa... Recebeu o e-mail?»
«Princezinhaaaaaaaaaa! Fugiu...»
«Volta logo. É a sobrinha dela.»
«O quê? Não brinca!»
«Sim. Tia Violeta não está.»
«A Princesa sorri e goza. Já bebeu o copinho todo? Vou-me embora? Paciência.»
«Que coisa horrível! Tia Violeta volta daqui a meia hora.»
«Sim, sobrinha da tia. Eu vou continuar por aqui. Diz a ela que falou o escritor das histórias tristes. Como te chamas, sobrinha da tia?»
«Eu não falo com os amigos da minha tia e também acho que você não é amigo dela.»
«São opiniões.»
O telefone do computador tocou. Era ela. Mas parou, sem que ouvisse a sua voz.
As coisas também correram mal com as mensagens.
E-mail falso? Sem dúvida. Acusou sempre erro na recepção.

Nunca mais falei com a Violeta. Não sei se foi para Cuba, se não era ela mas sim a tal secretária de que falava e que estava a preparar o almoço. Outra hipótese a considerar é ter sido apanhada em flagrante pelo marido no fim da nossa conversa. Ficou irado de tal maneira que lhe deu uma surra monumental, das que deixam sinal quase indelével.
Gostei do nosso diálogo leve e arejado. Foi pena o elo ter-se cortado de um momento para o outro porque soube-me a pouco.
Ri agora, Violeta, com a nossa brincadeira que ficou a meio e ficará para sempre. Eu também fiquei a rir porque passámos um bom momento sem que tivesses necessidade de recorrer a artifícios "tipo Selma" e eu me lembrasse de usar a arma da sedução.
Foi um prazer ter falado contigo, Violeta. Só não tive tempo de apreciar o odor do rasto perfumado que deixaste.
Boa sorte, Violeta.

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